Análise

As cartas estão na mesa

Os neoliberais, a despeito da desmoralização de suas idéias que levaram à crise, propõem contenção de gasto público, mas sem exageros, claro. Agora, socializem-se as perdas. Depois, abram alas para os lucros privados

A evolução da crise financeira internacional recolocou na ordem do dia os debates que tiveram forte influência sobre a política econômica no século 20. A crise de 1929, e seus reflexos sobre o desemprego na Europa e nos Estados Unidos, desencadeou um conjunto de medidas econômicas apoiadas em forte intervenção do Estado. Esse debate sobre a importância do papel do Estado na economia teve a decisiva contribuição do inglês John Maynard Keynes (1883-1946), que com sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda transformou-se no principal economista do século 20.

A incapacidade que a teoria econômica dominante tinha para explicar a Grande Depressão e o alto desemprego estimulou o debate. Keynes compreendeu o funcionamento do capitalismo e, ao contrário do que afirmava o pensamento dominante, afirmou que a economia não caminhava naturalmente para o pleno uso dos recursos, incluído aí o emprego dos trabalhadores. Os economistas clássicos e neoclássicos afirmavam que o mercado estava sempre em equilíbrio e produzia o máximo bem-estar social para toda a população de um país. A Grande Depressão dos anos 1930 desmentiu cabalmente essa teoria.

Em 1936 foi publicada a Teoria Geral, de Keynes. Foram muitas as contribuições para a política econômica a partir dessa obra. A que teve a maior influência no combate à Depressão, e se estende até os dias atuais, diz respeito ao papel do Estado. Keynes afirmava que o funcionamento da economia capitalista era instável, em razão do comportamento do investimento privado. Em momentos como aquele, somente o Estado, por intermédio do gasto público, poderia suprir a ausência de investimento privado e estimular a geração de renda e emprego.

O que parece óbvio, hoje, teve profundas implicações para a teoria e a política econômica nas décadas seguintes. Na crise de 1929, os Estados Unidos e a Europa levaram alguns anos para adotar medidas keynesianas no enfrentamento da crise, que se aprofundou. A recuperação econômica só ocorreu a partir da segunda metade dos anos 1930. A contribuição do pensamento do inglês foi muito além da formulação sobre o papel do Estado. Como funcionário do Tesouro britânico, Keynes foi um dos principais arquitetos do sistema financeiro internacional que emergiu após a Segunda Guerra. A criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial tem, em grande medida, sua assinatura.

Keynes foi um grande defensor da economia de mercado. Alguns chegam a confundir suas idéias com idéias socialistas. Nada mais equivocado. Seu pensamento ajudou a desvendar o funcionamento do capitalismo e trouxe o Estado para o palco público. A reação neoliberal dos anos 1970 teve o objetivo de minimizar esse papel, apostando em menos Estado e mais mercado.

O que isso tem a ver com os trabalhadores hoje? Quase tudo.

As medidas que estão sendo tomadas pelos Estados nacionais no enfrentamento da atual crise têm forte inspiração keynesiana. Pressupõe-se que o gasto e o déficit público são instrumentos decisivos para evitar uma nova depressão e mais desemprego. Contudo, sem as contribuições do pensamento de Keynes talvez não estivessem sendo tomadas neste momento.

No plano internacional, espera-se que avance a discussão de uma nova arquitetura financeira internacional. E, para o Brasil, qual o impacto do pensamento keynesiano no enfrentamento da crise? As cartas estão na mesa! Os liberais ortodoxos, a despeito da desmoralização de suas idéias de auto-regulação dos mercados, entoam cantigas repetitivas que nos levaram a essa enorme crise. Propõem, agora, a contenção dos gastos públicos. Sem exageros, é claro, já que ninguém é de ferro! Primeiro, socializem-se as perdas, e nada melhor que o Estado para isso. Quando a crise passar, deixem espaço para os lucros privados.

Para os trabalhadores, esse debate é decisivo para preservar os empregos e a renda e para a adoção de contrapartidas sociais. As opções não são neutras e podem comprometer o atual estágio de crescimento nos próximos anos, com efeitos sobre o desemprego e a piora das condições de vida da população.