cultura

Arte de mudar

Parecia reunião de família. Com pessoas espalhadas pelo quintal, zanzando sem cerimônia. Era uma celebração artística pra lá da ponte que liga o lado rico da zona sul de São Paulo à periferia

Mauricio Morais

Chapinha: “Na periferia está a matéria-prima, da melhor qualidade”

Vários pontos da “zona sul pobre” receberam manifestações da Semana de Arte Moderna da Periferia, uma vontade antiga do idealizador do movimento cultural Cooperifa, Sérgio Vaz. Ele ocupou uma fábrica em 2000 e começou a promover saraus. Veio o despejo, mas o pólo de cultura mudou de lugar e ganhou força. Transformou um bar em espaço artístico oficial. Todas as quartas-feiras o Zé Batidão acolhe algumas centenas de pessoas que querem declamar e ouvir literatura.

Os saraus, garante Vaz, ampliaram o horizonte de muitos jovens da região. Das ruas estreitas e íngremes brotou poesia. Quarenta livros já foram lançados lá. Dessa efervescência cultural surgiu a Semana de Arte Moderna da Periferia, um mix de literatura, artes plásticas, teatro, dança, música e cinema made in periferia. Sete dias, 300 artistas e sucesso de público. A cada apresentação o microfone circulava em mãos ansiosas por mostrar versos românticos, de protesto, ou simplesmente retratar o cotidiano.

O nome e a identidade visual do evento aludiam à Semana de Arte Moderna de 1922, mas, no lugar da árvore com galhos secos, a logomarca da semana da periferia traz um baobá, frondoso, repleto de frutos. “Somos abusados mesmo. Usamos o nome e o símbolo para chamar a atenção, nos apropriamos de algo consagrado e burguês porque, se fizéssemos apenas uma ‘Mostra de Arte da Periferia’, ninguém viria. A sociedade não olha para a periferia, muito menos para a arte produzida aqui”, explica Sérgio Vaz. Para ele, não adianta ficar reclamando. “Não somos coitadinhos. Além de tudo e apesar de tudo estamos desenvolvendo um belo trabalho de levar arte para o povo, não como uma maneira de salvar ninguém, mas para contribuir para a formação de um caráter e como garantia de um direito de todos, um complemento da cidadania.”

Priscila Preta, Débora Marçal, Flávia Rosa e Adriana Paixão, do grupo As Capulanas, se apresentaram no Espaço Gente Jovem da comunidade Monte Azul na sexta-feira 9. As atrizes e dançarinas estudaram juntas numa universidade particular de São Paulo e sofreram o preconceito por ser negras, pobres e do subúrbio. “Levamos chibatada, mas conseguimos mostrar o afoxé e mobilizar a universidade. Nós nos juntamos para falar dos marginalizados, e isso incomoda. Mostrar nosso trabalho aqui é muito prazeroso”, declara Priscila, ofegante, depois do espetáculo que tinha como tema a mulher negra.

Na platéia estava a estilista Fernanda Coimbra, de 19 anos, grávida de oito meses. Moradora do Casa Blanca, freqüenta os saraus da Cooperifa há dois anos e vez ou outra declama seus versos, apesar de não se considerar exatamente poeta. “Vejo que a Semana de Arte Moderna da Periferia é motivo de crítica, de riso, mas é sempre assim: quando a gente de alguma forma ultrapassa a ponte, é vista como ameaça. Isso tudo é moderno para o nosso tempo e é história, porque vai ser contado para e pela minha filha, por exemplo. Estamos quebrando barreiras com a arte”, acredita.

Mauricio MoraisAs Capulanas
As Capulanas: “Nós nos juntamos para falar dos marginalizados, e isso incomoda”

Para todos

O diretor do espetáculo X, Robson Moisés, convidado para participar da Semana, adorou. Acredita que está levando o teatro aonde ele geralmente não é visto. “Nossa companhia é da periferia e também tem o objetivo de levar teatro para quem não tem acesso. Já que o poder público não faz o papel dele, a gente se reúne e faz. É uma aula de produção independente, pois não tem patrocínio.”

No sábado 10, encerramento, foi dia de música na Casa de Cultura M’Boi Mirim, em Piraporinha. O ambiente, com famílias, jovens, catadores de latinhas e até um bêbado dançando em frente ao palco, era de festa comunitária e de paz. A cada apresentação, alguém subia ao palco para lembrar da barreira invisível, do “outro lado da ponte”, o que chamam de segregação.

O funcionário público Reginaldo Barreto, 40 anos, veio do Rio de Janeiro só para acompanhar o evento. Gosta do que vê, mas com ressalvas. “Acho a idéia genial, mas esse discurso sobre ‘o outro lado da ponte’ é muito agressivo para quem vê de fora. Aparta ainda mais, ao invés de unir. Na minha opinião, tem de receber bem quem vem do outro lado. Foi isso que o funk carioca fez. Tem muita gente boa querendo vir”, afirma, enfatizando o que pensa de cultura para todos.

O ajudante-geral Décio Ferreira dos Santos, de 23 anos, estava indo para casa, a duas quadras do evento. Ouviu música boa e parou para conferir. Nem sabia do que se tratava. Quando soube, disse que achava importante. “Isso tem que ser valorizado para as pessoas associarem a periferia a coisas boas também. Tem muito mais coisas boas que ruins. A prova é isso aqui”, bradou, já que as caixas explodiam Saudosa Maloca, com o grupo Trio Porão, nascido ali ao lado, no Jardim Lídia.

Empolgada, logo à frente, dançava a assistente contábil Iara Melo Gouveia, que morou muitos anos entre o Jardim Ângela e o Capão Redondo, mudou-se, mas sempre aparece com o marido, André Luiz Gouveia, vocalista do Trio Porão, para os ensaios da banda e uma cervejinha com os amigos. “Isso é uma opção de cultura e lazer para as pessoas da periferia. É também um jeito de superar um pouco os problemas.” André disse que o trio nasceu num porão da periferia e conhece bem a dificuldade de propagar o trabalho de músico: “A elite favorece os artistas que interessam a ela. Nós temos CD gravado, participamos de vários projetos, mas é difícil conseguir espaço”.

Chapinha, músico e um dos idealizadores do tradicional Samba da Vela, roda de samba semanal feita lá mesmo, na zona sul, cantou seus sambas para outro público que não aquele que freqüenta a Casa de Cultura Santo Amaro às segundas-feiras.

Uma quadra e um palco eram o cenário que foi “bombando” com o passar das horas. Os pés paulistanos são de samba e ziguezaguearam bonito. “A cultura está aqui. Na periferia está a matéria-prima, da melhor qualidade. Cultura não é só orquestra sinfônica. É também. É por isso que tem de haver vontade política para trazer teatros e museus, pois, se tiverem acesso, as pessoas podem gostar. Mas é preciso valorizar o que já temos.”

Sambas, maracatus, hip-hop, soul. No ambiente era possível perceber que a Semana de Arte Moderna da Periferia fica para a história. Pela ousadia de mostrar que dali vertem versos, notas musicais, cenas, gestos, grafites e pinceladas que vão muito além da importância que se dá à arte como moeda. Ali está o valor da mudança.