cultura

Aplausos!

O artista de rua não tem patrão e enfrenta dificuldades como qualquer trabalhador. A satisfação do público, seu maior reconhecimento, é o combustível para o dia seguinte

regina de grammont

Paulo Gaeta canta ópera na Avenida Paulista. Às vezes volta de mãos vazias para casa. Mas desistir, nunca

De segunda a segunda lá estão eles, em palcos improvisados nas calçadas e semáforos. O público, salvo as poucas exceções, quase sempre está apressado. Ou observa tudo de dentro dos carros, com a atenção da duração de um sinal vermelho. O artista é autônomo. Decide seu horário, não tem patrão, empresário, mas também enfrenta as dificuldades do dia a dia de um trabalhador “por conta”. Desdobra-se para intervir com música, mágica, teatro e cor na paisagem cinza das metrópoles e para despertar a atenção do público. Nem sempre o trabalho é respeitado, ainda existe preconceito e repressão. O reconhecimento é o principal combustível para os dias seguintes de quem optou por sobreviver de sua arte. O povo, como plateia, observa, absorve a arte para encarar a vida com mais som e graça. E retribui.

Nem o frio, nem a garoa impedem o trabalho. No Centro paulista, são comuns as rodinhas de pessoas que param um minutinho para o espetáculo. Na Praça da Sé, o sanfoneiro Luís Ramalho da Silva, o Piauí da Sanfona, de 33 anos, está abraçado ao instrumento, junto com os companheiros do grupo Luar do Sertão. O dono da banca de jornal grita: “Eaê! Esse forró começa ou não começa?”. Piauí explica que estão parados desde cedo, pois foram alertados pela Guarda Civil Metropolitana de que podem ter os instrumentos apreendidos. “Esse prefeito não tem moral” – diz, e mostra uma cópia plastificada do Diário Oficial do Estado de São Paulo que dizia que todo artista pode se apresentar livremente nas ruas. Na prática é bem diferente.

Nas ruas há oito anos, Piauí da Sanfona conta com os parceiros Luciano, Zé Irton, José Cícero, Francisco e Geraldo Oliveira do Nascimento, o Dengoso, seu braço direito que auxilia na venda de CDs e no contato com a imprensa. O apelido vem da fama com as moças e ele confirma: “Nas horas de folga a gente aproveita pra namorar”. Quando não estão na Sé, tentam outras cidades mais próximas. “Onde dá pra tocar a gente tá lá. Mas teve vezes que não tinha nem o da passagem”, afirma Piauí. Segundo ele, em dias bons chegam a tirar uns R$ 300, contando com a venda de CDs e uma jornada de trabalho de quase dez horas. Piauí sonha com o sucesso. O Luar do Sertão já esteve em programas de TV. “Eu sou nordestino e não desisto. A gente vive disso, é a nossa profissão.”

Em outro ponto da cidade, na Avenida Paulista, Fernando Loko, 21 anos, dedilha na guitarra um som de Bob Marley a pedido de uma turista francesa. Depois da primeira música, ele segue no reggae até ela ir embora, depois de tirar fotos e aplaudir o rapaz. No chão, o case da guitarra aberto mostra moedas e cédulas. A noite de trabalho estava apenas começando. De sobretudo preto e chapéu branco, canta Belchior: “Por isso, cuidado, meu bem, há perigo na esquina…”

Nascido em Itanhaém, litoral paulista, Fernando está na capital há um ano. Entre uma fala e outra, “filosofa”, ou entoa uma frase de Raul Seixas, Renato Russo ou Cazuza e um riff de guitarra. Tem orgulho de pagar seu aluguel com a música, mas o que mais gosta é de “tocar e trazer um sorriso, alegria ao coração das pessoas”. Por isso continua em São Paulo, mesmo com a reprovação de sua família. Para poder atender aos pedidos, seu repertório deve ser amplo. E se pudesse tocaria “24 horas por dia”, diz, mostrando os dedos calejados de tanto percorrer as cordas do instrumento. Em dias de semana também arrisca se apresentar dentro dos ônibus que circulam na própria Paulista.

O músico admite conviver com doses de preconceito diariamente. Conta que quando se apresentava na Teodoro Sampaio, rua conhecida pelas lojas de instrumentos musicais, já foi “botado pra correr por policiais” e xingado de vagabundo. “Não acredito tanto no sucesso. A mídia pode te levantar e te derrubar. Se eu ficar famoso, legal, mas eu penso mais em ser feliz, continuar fazendo o que gosto. Vou morrer, mas não vou parar de tocar. Muitos podem até saber tocar guitarra, mas poucos têm a coragem de tocar aqui.”

regina de grammontPraça da Sé
Na Praça da Sé, centro de São Paulo, o grupo Luar do Sertão arrasa no forró

Commedia dell’arte

Paulo Gaeta, de 59 anos, também acredita que expor a arte na rua é um ato de coragem. É levar para as pessoas aquilo em que você acredita. Travestido de mulher, com maquiagem e um vestido longo preto, Paulo canta antigas músicas de ópera que saem de um pequeno toca-fitas. Entre uma música e outra, clama: “Aplausos!”.

Com fala firme e um conhecimento amplo sobre inúmeras áreas, Paulo não tem meias-palavras. Comenta a história do teatro no Brasil, política, filosofia, arte. Como a maior parte dos artistas que opta pelas ruas, as dificuldades financeiras são sempre as primeiras a aparecer. “Tem dias que a gente consegue tirar uns R$ 40, R$ 50, mas em muitos voltei sem nada pra casa. Mas desistir? Nunca! Eu sou um artista”, conclui. Para incentivar as pessoas a contribuir, brinca: “Quem quiser pode por uma moedinha, uma maçã, uma pêra… A plateia, que se forma se desmancha em questão de minutos”, ri.

Paulo segue a linha da commedia dell’arte, uma forma de teatro surgida no século 15, na Itália, que se contrapunha à comédia erudita, com estilo popular e improvisado. Um teatro originalmente feito em praças públicas e ruas. Uma forma de protesto. “Chamar a atenção de uma pessoa na rua pra mim é superimportante, considerando esse estado de anestesia em que vivemos hoje em dia. Não é preciso aglomerar multidões.”

Nessa trajetória de quase 20 anos, já foi expulso pelos feirantes da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, zona oeste paulistana, que reclamavam do “barulho”. Mas encontrou o seu lugar na Avenida Paulista, na altura do número 1.000. E compartilha de um de seus momentos mais alegres, quando duas senhoras habituadas a passar por ali falaram: “O senhor nos dá muito prazer e, quando morrer, que os anjos o recebam com a mesma alegria que você nos dá aqui na Terra”.

Rodrigo QueirozShaolin
Shaolin desenha há 30 anos em frente ao Municipal do Rio

Entre traços

Com fala mansa e muita história para contar, Leônidas Silva, 52 anos, é conhecido pelo nome artístico de Shaolin. Desenhista, músico, ator… aos poucos vai-se descobrindo suas habilidades. Em frente ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Shaolin há 30 anos é famoso por seus desenhos e pinturas. Desenha pessoas com os mínimos detalhes. Por encomenda, baseando-se em retrato, ou ao vivo. Mora em Duque de Caxias, mais precisamente no Xerém, “a comunidade do Zeca Pagodinho”, faz questão de frisar.

Gaúcho, teve uma bolsa para estudar teatro no Rio de Janeiro em 1985. Os projetos foram surgindo, nunca mais voltou. Fama? Shaolin diz que as pessoas o reconhecem na comunidade e no centro da cidade, e vão falar com ele. “Mas fama é uma coisa, fazer dinheiro é outra”, conta. “A gente sofre, mas se diverte. Arte é pintar o que eu gosto.”

Prazer é o que também move o artista plástico Walter Silva, 32 anos.

Nascido em Maringá (PR), nos últimos seis anos já passou por diversos estados, e sua rota prevê a travessia do país em direção à Guiana Francesa. Trabalhou como tatuador até sofrer um acidente nas mãos. A fisioterapia o incentivou a lidar com cerâmica. “Tinha um pouco de vergonha, até que um dia uma mulher elogiou muito meus quadros e pediu que eu fizesse mais dois para ela comprar”, conta. “Uma vez uma moça me pediu para fazer um quadro com paisagem de praia. Eu fiz, todo mundo aplaudiu, e ela, com cara de desapontada, disse que iria levar para me ajudar. Quando ela abaixou a cabeça para pegar o dinheiro na carteira, eu apaguei o desenho todinho. Eu vendo arte para quem a aprecia e não pra quem quer ajudar… Faço de coração.”

andréa graizAlexander
Alexander gosta de pensar que o público imagina o que quer na figura que representa na Rua dos Andradas, em Porto Alegre

Transe

No centro de Porto Alegre, Alexander Rodrigo, 30 anos, está imóvel enquanto as pessoas passam ao seu redor no ritmo frenético da Rua dos Andradas (mais conhecida como Rua da Praia), o local que o adotou. Ele começou fazendo uma múmia e foi adaptando o seu personagem, até se encontrar nessa figura prateada, “meio garçom, meio robô”, como ele mesmo define, mas gosta mesmo é de pensar que o público imagina o que quer na figura que representa.

Em dias próximos ao do pagamento dos salários e nos períodos festivos, como Natal, Dia das Mães, Alexander consegue tirar até um pouco mais de R$ 50. A cada moeda depositada na latinha, ele sai do transe e entrega um papel decorado com mensagens positivas de autores diversos. “Num gesto robótico, entrego para a pessoa uma mensagem de paz, de otimismo, que é o que me faz mais presente ali.”

Como ele não enxerga o que está acontecendo ao seu redor, algumas pessoas depositam pedras, moedas antigas e tudo o mais. Teve uma vez que alguns meninos ainda se atreveram a roubar a sua latinha e ele, com toda a vestimenta prateada, correu atrás da molecada. “Eu não busco a fama, eu busco envolver, e a alegria do público é o meu reconhecimento.”

Para isso, o trabalho requer prática, ensaio, dedicação. Camila Pessoa, de 34 anos, teve seu primeiro contato com a arte circense em 2005. Desde então, treina técnicas e se desafia a trabalhar com diversas linguagens para atingir seu objetivo. Música, mímica, circo. Nos semáforos de Fortaleza, em ruas conhecidas, desconhecidas, em teatros ou circos. Segundo ela, a reação aos malabares em semáforos vai do preconceito – de quem a vê como pedinte – ao olhar gratificado: “Eu faço semáforo e entendo como uma experiência para desenvolver a coragem, a autoconfiança. O novo circo não é o circo do picadeiro, mas também não é o do semáforo”.

Para ela, atuar nos sinais é uma demonstração de habilidade em troca de uma recompensa. Se a exibição é numa roda de rua, a forma de expressar e a reação do público são outras. Em todo caso, as pessoas retribuem com o que acreditam que o artista merece. Camila faz de seu ofício também estudo, um ato de zelo com o corpo e a mente, um exercício de autoconhecimento, explica: “Sou muito feliz com o que faço. E estando feliz, isso me fortalece muito. O artista é uma figura, uma representação. Não sei exatamente o que espero, talvez seja comunicar bem a minha felicidade”.

jr. PanelaCamila
Para Camila, de Fortaleza, atuar nos sinais é uma demonstração de habilidade em troca de uma recompensa