Ponto de Vista

Anatomia da infâmia

A única esperança é que todos os povos do mundo, tocados pelas imagens de espanto de Porto Príncipe, se unam para a real emancipação humana do povo do Haiti

O general da reserva norte-americano Russel Honoré, que participou das operações de socorro a Nova Orleans, depois do furacão Katrina, e se encontra em Porto Príncipe, resumiu a tragédia em um comentário seco: “As pessoas têm medo dos pobres”. A pobreza do Haiti foi construída nos últimos 500 anos, para que se acumulasse a riqueza dos colonizadores – daquele tempo e dos tempos recentes. É assim a história do mais sofrido povo da América. A descoberta da América e sua ocupação pelos europeus iniciaram a Idade Moderna. Sem o aumento da circulação monetária, graças ao ouro e à prata da América Latina, e sem os novos espaços do hemisfério ocidental, seria difícil, se não impossível, o homem atual.

A primeira terra americana a ser pisada por Colombo foi a ilha batizada de La Española, hoje dividida entre a República Dominicana e o Haiti

A crônica da conquista e do povoamento dos territórios americanos pelos europeus é de continuada brutalidade. A primeira terra americana a ser pisada por Colombo foi a ilha Quisqueya (na língua nativa dos tainos), que os conquistadores batizaram de La Española, hoje dividida entre a República Dominicana e o Haiti.

O primeiro governador-geral de La Española, Nicolas de Ovando, foi um dos mais cruéis delegados do poder real, agindo com tanta brutalidade contra os índios tainos que a própria metrópole o destituiu do cargo. Ovando chegou à ilha em 1502, tendo como principal assessor o jovem Bartolomeu de las Casas, que se tornaria frade dominicano. Las Casas, que a História registra como defensor dos indígenas (depois de tê-los como escravos), sentindo a dificuldade de sua “domesticação”, aconselhou Ovando a importar escravos da África – os primeiros chegaram dez anos depois de Colombo. Assim começou a história da escravidão na América, e a do povo mais desgraçado do continente, os negros do Haiti.

Como no Brasil e nas outras ilhas do Caribe, os negros foram usados no cultivo da cana-de-açúcar, então a mais cara das mercadorias, a primeira das commodities. A ela se uniriam, em seguida, o fumo da Virgínia, o cacau da América Central e o café do Iêmen e da Etiópia.

Em 1697, os espanhóis cederam à França um terço da ilha, onde hoje se encontra o Haiti. Os franceses intensificaram a exploração do território, aumentando o número de escravos e retirando o máximo de lucros das plantações dos engenhos. Em 1789, quando se iniciou a Revolução Francesa, os negros do Haiti acreditaram em sua redenção. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o anúncio da abolição da escravatura nas colônias francesas os estimularam ao movimento pela independência. O primeiro de seus líderes, que se alçou no início de 1790, Vincent Ogé, foi capturado, torturado e executado pelas autoridades francesas da colônia.

Toussaint Louverture retomou a campanha pela independência e conseguiu vencer, em 1802, as tropas napoleônicas. Os franceses o chamaram a Paris, para a reconciliação política, e o detiveram. Louverture nunca mais voltou ao Haiti. Em 1804, Jean-Jacques Dessalines venceu as tropas estrangeiras e declarou a independência.

A independência não significou nada para a imensa maioria do povo haitiano, que passou a ser explorado pelos mulatos nacionais e brancos estrangeiros. Os norte-americanos, logo que puderam, substituíram os franceses. Em 1915, ocuparam militarmente o país, alegando razões humanitárias, mas com o objetivo de garantir seus investimentos. Em 1934, Roosevelt, em sua política “de boa vizinhança”, retirou as tropas, mas continuou monitorando as finanças do Haiti.

Diante do sofrimento do povo daquele país, que o terremoto só agravou, para mostrar ao mundo a tragédia do colonialismo, é de esperar o pior. A única esperança é que todos os povos do mundo, tocados pelas duras imagens de espanto que chegam de Porto Príncipe, se unam para a real emancipação humana do povo do Haiti, explorado por uma minoria – de brancos, negros e mulatos –, a mais infame das elites da América. É necessário ouvir a voz do poeta turco Nazim Hikmet: “Se eu não ardo em chamas, se não ardes em chamas, se não ardemos em chamas, como querer que as trevas se dissipem?”.