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América Latina: conheça e descubra-se

Viajar no continente pelos países vizinhos é fascinante não só pelo que se pode encontrar de belo e emocionante, como de histórico e humano

gerardo lazzari

Mercado em El Alto, região da qual partiu o movimento popular que derrubou o governo boliviano no ano passado

Em 1493, Alexandre VI expediu uma bula papal fixando uma linha de fronteira de pólo a pólo do planeta a 100 léguas do arquipélago de Cabo Verde. A Espanha dominaria as terras a oeste dessa linha e Portugal, as do leste. Se tal recorte planetário tivesse prevalecido, o Brasil também teria sido colônia espanhola. Inconformados com a divisão, em 7 de junho de 1494, num pequeno burgo às margens do rio Douro, entre Salamanca e Valladolid, no noroeste da Espanha, em Tordesilhas, os portugueses conseguiram um novo acordo que empurrou a sua faixa de domínio 270 léguas mais a oeste de Cabo Verde.

Há muitos outros detalhes dessa história de posses e conquistas da época das navegações, mas o que talvez seja determinante para o Brasil estar tão próximo e ao mesmo tempo tão distante do restante da América Latina seja o fato de ser o único país a falar outra língua, por ter tido uma outra matriz colonizadora. E isso se deve ao tal Tratado de Tordesilhas. Além da língua, evidente, o resultado desse tratado produziu outro percurso histórico. Quantos brasileiros são capazes de dizer quem foram Simón Bolívar e Túpac Amaru – só para ficar em dois daqueles que, de diferentes maneiras e em épocas distantes, lutaram contra a dominação espanhola?

Nos últimos anos, o desdém brasileiro pelo que acontece no resto do continente mudou. Só no quesito comércio exterior, em 2002 exportava-se para os vizinhos latinos 60 bilhões de dólares; em 2005 foram 118 bilhões. E as importações passaram de 47,2 bilhões de dólares para 73,5 bi. Mas o nosso tema é outro.

gerardo lazzarilago titicaca
Lago Titicaca, com Copacabana ao fundo

Antes dos colonizadores

No dia 21 de janeiro, o boliviano Evo Morales chamava a atenção do mundo para um imenso vale, a 3.844 metros do nível do mar, onde se encontram as místicas ruínas de Tiwanacu. Celebrou-se ali o que veio a ser conhecida como a posse indígena na presidência de seu país. Tiwanacu é considerado um dos estados de maior importância dos povos originários do continente americano.

Calcula-se que tenha durado cinco séculos, terminando uns 300 anos antes da chegada dos colonizadores, em 1.180 d.C. Essa civilização dominava técnicas de agricultura com tecnologia hidráulica, o que a diferenciou de outros povos por permitir sua fixação num mesmo ponto geográfico por grande período de tempo. Há várias hipóteses para o fim desse império, mas ainda hoje é possível visitar suas ruínas. É um lugar mítico e próximo, bastante próximo, do lago Titicaca, que separa Bolívia e Peru e ocupa 8.400 km² do Altiplano. Há pontos em que chega a 283 metros de profundidade, a 176 km de comprimento e a 70 km de largura. Está a 3.812 metros de altitude, a maior do mundo para um lago navegável.

Para se conhecer o Titicaca pelo lado boliviano, o lugar a ficar é a cidade de Copacabana, a 160 km de La Paz. Estando lá é inevitável ir à Ilha do Sol e à da Lua. A história indígena diz que o primeiro inca, Manqo Q’hapaq, e sua esposa Mama Ocllo, emergiram das profundezas do lago Titicaca, por ordem do Deus Sol, para fundar o Império de Tawantinsuyo, que se estendia por toda a Cordilheira dos Andes.

De Copacabana para Puno, a cidade mais próxima do lado peruano, vai-se em uma hora e meia, de ônibus. De lá, o melhor é ir a Cuzco, um povoado aconchegante, estilo colonial, que preserva parte da história inca. Templos e palácios construídos em pedras milenares estão espalhados pela cidade, que foi a capital administrativa, militar e religiosa do Império Inca. Machu Picchu, a cidade perdida descoberta há menos de 100 anos, fica a aproximadamente 112 km de Cuzco. Dá para ir de trem. Ou encarar, na sola, a famosa trilha de quatro dias. Quem se aventurar a embarcar para uma viagem por essas bandas do continente, deve ter consciência de que não terá dias fáceis nem turismo convencional. Tudo é rude, simples e encantador.

Na Bolívia, mesmo na capital, La Paz, a pobreza é companheira inseparável de viagem. Se por um lado ela constrange, por outro chama a atenção para o apartheid vivido nos países hermanos em relação às populações originárias.

O melhor exemplo dessa exclusão é El Alto, de onde partiu o movimento popular que derrubou o governo de Gonzalo Sanchéz de Lozada e se abriu o caminho para a eleição de Evo. Fica a 12 km de La Paz, 4 mil metros acima do mar. Em El Alto, vivem 800 mil pessoas, quase todas de origem aymara. Suas ruas abrigam uma das maiores feiras livres do planeta. Nas centenas de tendas indígenas espalhadas, encontra-se de tudo e ouvem-se as histórias das tradições indígenas locais como em poucos cantos do mundo.

Fabio Marra/Folha Imagemcuzco
Crianças exibem seus animais aos turistas no parque arqueológico, em Cuzco, Peru

Um roteiro nobre

Mas não imagine que a América Latina é só um passado de ricas histórias em meio a um presente de pobreza. Para quem não dispensa o conforto, há opções de roteiro onde, se a aventura é menor, o passeio não é menos saboroso. O roteiro mais light pode começar por Punta del Este, no Uruguai, e chegar a Buenos Aires; ou ir ainda mais longe, a Bariloche, ou quem sabe ao Chile, onde se pode ir até Puerto Montt, Vinã Del Mar e Santiago, por exemplo, onde se conhecem as casas de Pablo Neruda e se encontram pescados e frutos do mar regados aos melhores vinhos.

Punta del Este é de fato uma “praiona”, como gostam de dizer os que a desdenham. É repleta de prédios à beira-mar e tem nos cassinos o atrativo principal. Mas não é só. Há duas cidades distintas. A do verão e a da atual época do ano. Nos meses de inverno, a temperatura de Punta dificilmente ultrapassa os 15 graus. O charme da cidade permanece o mesmo, mas os preços de pacotes turísticos e hospedagens são bem menores. Além dos cassinos, que mesmo para quem não gosta merecem uma visita pelo que têm de glamour, a Ilha dos Lobos é um passeio local de respeito. É habitada pela maior colônia de lobos-marinhos da América do Sul, algo próximo a 150 mil lobos, além de uns 10 mil leões-marinhos.

A próxima parada deve ser Montevidéu. Com população próxima a 1,5 milhão de habitantes, a cidade já foi chamada de Suíça latino-americana. Depois de mais de uma década de dificuldades, hoje não se pode dizer o mesmo. Mesmo assim, ela ainda está à frente da quase totalidade das capitais do continente. É uma das menos violentas da América do Sul e de maiores índices de alfabetização e de expectativa de vida. Caminhar pelas ruas arborizadas e admirar a arquitetura colonial local vale a visita. De Montevidéu, em aproximadamente três horas de travessia de barco pela baía do rio da Prata, chega-se a Buenos Aires, muito mais cosmopolita, mas que guarda lá suas semelhanças com a capital uruguaia.

Cláudia Mottatortoni
Café Tortoni se ouve o tradicional tango portenho

A capital argentina impressiona pelo charme, a organização e a limpeza. Sua região central tem ruas, como a Corrientes, que concentram um número de livrarias e espaços culturais incomparável a qualquer rua brasileira. E tradicionais casas de tango que vão da sofisticação ao discreto charme, como o obrigatório Café Tortoni, predileto de Garcia Lorca e de Borges.

Para quem vai a Buenos Aires, é praticamente obrigatório comer um bife de chouriço, tipo de corte que pode ser descrito como um contra-filé em postas;  passar pela frente da Casa Rosada; visitar alguns museus históricos; ir a uma casa de tango, ao estádio do Boca Juniors e ao Caminito; esticar até o bairro boêmio de Palermo. E abusar de andar de táxi. Embora o deslocamento de ônibus e metrô seja prático e barato, os táxis custam tão pouco que se tornam a melhor alternativa. E, acredite, os simpáticos argentinos que os conduzem sempre têm uma boa história para contar e sabem valorizar a importância dos visitantes.

Se for a Bariloche, vai deparar com uma cidade encantadora – um pouco mais cara do que os demais pontos turísticos latinos, mas nada assustador. Mas a pérola patagônica não é próxima de Buenos Aires, são 1.680 km – 20 horas de ônibus ou duas de avião. No inverno, ela se torna cidade dos esquiadores. No verão, verde, rende longas caminhadas, passeios de bike, raftings e o sempre presente teleférico que leva até o pico de Cerro Catedral, de onde o visual da Cordilheira dos Andes é ainda mais impactante.

Turismo e política

A história política e a formação de cada sociedade latino-americana são também fortes atrativos do continente. Nesse quesito, roteiros como Cuba, México e Venezuela são pratos cheios. A ida para qualquer um desses países é mais cara do que para os outros já citados. Na ilha de Fidel, que completa 80 anos neste agosto, Havana é de longe a capital mais preservada da América, entre outras coisas, porque o “germe” capitalista foi bloqueado por lá. E muito de sua beleza reside nessa vista para o passado, que ganha ainda mais valor simbólico pela presença dos carros antigos que circulam por todo o país.

Ir à Venezuela é uma opção para os que querem entender o que é a tal revolução bolivariana. Quem tiver disposição para essa aventura política, e quer conhecer de fato o que está acontecendo por lá, precisa subir os cierros (morros) de Caracas e ouvir as histórias daqueles que têm garantido a alta popularidade do atual presidente. Todos os projetos sociais bolivarianos estão nos rincões das cidades. De qualquer maneira, a salsa, presente nas danceterias locais, vai diverti-lo mesmo quando não estiver fuçando a política.

E no México? No México – e só no México – o turista que busca a história política contemporânea poderá conhecer in loco a luta dos zapatistas. Foi no estado de Chiapas, em San Cristobal de Las Casas, que em 1º de janeiro de 1994 o subcomandante Marcos liderou uma revolta indígena que até hoje sobrevive e chama a atenção do mundo para a imensa exclusão dos descendentes dos maias e astecas – civilizações em cujas histórias o curioso leitor não pode deixar de mergulhar. E aproveitar para tomar uma tequila ou um mescal, aquela bebida produzida no estado de Oaxaca e que vem com um verme, o guzano, que deve ser comido quando a garrafa chega ao fim.