ambiente

Alta tensão na floresta

A necessidade de energia elétrica provocada pela nova onda de crescimento leva o país, mais uma vez, a voltar seus olhos para os rios da Amazônia. Agora com o desafio de evitar novas tragédias ambientais

marcello casal jr/ABr

O tom de Managu é angustiado. Baixo para os padrões brancos, braços fortes, pele queimada, “vermelha”, como se dizia nos tempos do faroeste, ele gesticula com intensidade ao falar. Está preocupado com o futuro de sua família e de todo o seu povo. “Outros índios que seguiram o caminho de aceitar esse ‘progresso’ estão sofrendo”, diz. “Depois que tudo mudar, quando chegarmos aqui na cidade para reclamar, vão nos dizer: ‘Agora você não é mais índio, já segue todo o costume do branco, então não podemos te ajudar’.”

Managu é uma das lideranças dos ikpengs – grupo de 320 índios de língua caribe, outrora conhecidos como txicões e habitantes de duas aldeias na região do Médio Xingu. Em fevereiro, protagonizou cena que expôs o desespero que vem se espalhando pelas comunidades indígenas de Mato Grosso, em especial as que vivem nas bacias dos Rios Xingu e Juruena. Como protesto pela falta de consulta às comunidades indígenas sobre os projetos de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) no Rio Culuene e em outros afluentes do Xingu, os ikpengs tomaram como reféns um grupo de funcionários da Funai e de pesquisadores que faziam estudos complementares sobre o impacto ambiental de uma dessas miniusinas, a Paranatinga II, atualmente em fase de testes.

A manifestação rendeu foto dos índios pintados para a guerra simulando ameaça com bordunas, arcos e flechas aos reféns. E terminou com a ida a Brasília de representantes das comunidades xinguanas, que obtiveram compromisso da Funai de que terão acesso aos estudos de impacto ambiental já realizados, antes que novas pesquisas sejam executadas. Os ikpengs, como vários outros grupos indígenas da região, estão preocupados com o futuro da base de sua alimentação, os peixes, que segundo eles já diminuem nas águas hoje turvas do Culuene (não há, ainda, como saber até que ponto a expansão da soja, com o assoreamento e a contaminação por agrotóxicos, também contribui para a situação).

A preocupação de Managu expressa um debate mais amplo. A retomada do crescimento está fazendo o país voltar a olhar para sua rede hidrográfica, de onde resultam quase 90% da eletricidade que consumimos. E agora em maio novos eventos devem turbinar o debate aceso. O leilão que definirá quem vai construir a usina de Jirau, a segunda do complexo do Rio Madeira, em Rondônia, com 3.300 megawatts, está previsto para dia 12 – o leilão da primeira usina, Santo Antônio, ocorreu em dezembro. Entre os dias 19 e 25, um encontro em Altamira (PA) deve chamar atenção para o próximo alvo dos planos de expansão do setor elétrico, o Xingu. Além das PCHs em seus afluentes, é nesse rio que se planeja construir a megausina de Belo Monte, fonte de conflitos desde os anos 80. O Encontro Xingu Vivo para Sempre pretende retomar uma mobilização de 19 anos atrás. Na época, o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu teve caráter emblemático – além da inusitada presença do músico inglês Sting.

Última fronteira

Se a economia crescer em torno de 5% anuais nos próximos dez anos, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, prevê que será necessário mais que dobrar o atual parque de geração de energia do país, passando de cerca de 90 mil para 220 mil megawatts até 2030 – dos quais 88 mil a partir de hidrelétricas, boa parte delas na Amazônia. A EPE considera que menos de 10% do potencial hidrelétrico da Região Norte é aproveitado atualmente.

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), por sua vez, prevê investimentos de R$ 24,3 bilhões até 2010 em geração de energia na Região Norte, incluindo as usinas do Madeira, de Belo Monte e mais seis na bacia do Rio Tocantins. Sem contar os R$ 5,4 bilhões para 4.700 quilômetros de linhas de transmissão de energia, inclusive o “linhão”, para levar a energia do Rio Madeira ao interior de São Paulo. “As usinas na Amazônia são imprescindíveis para que mantenhamos o alto nível de presença de fontes renováveis em nossa matriz energética, em torno de 45%”, diz o presidente da EPE, Maurício Tolmasquim. “Sem essas usinas, a tendência é que proliferem as termelétricas a carvão, muito mais poluentes.”

A dificuldade para os planejadores é que a legislação ambiental do país é hoje bem mais complexa e rigorosa do que no boom anterior das hidrelétricas na Amazônia, nos anos de chumbo da ditadura. O processo de autorização para a construção de uma usina pode durar vários anos. “Seguimos as orientações da ministra Marina (Silva, do Meio Ambiente): mais importante do que o ‘pode ou não pode’ é entendermos ‘como pode’”, diz o diretor de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco. “Impacto zero nunca vai haver, mas a idéia é que os projetos diminuam significativamente os impactos. Se não estiver bom, volta para o empreendedor até ficar. O presidente Lula não quer que se repitam as injustiças que foram feitas na implantação de hidrelétricas em períodos anteriores.”

Wilson Dias/ABrRio Madeira
Rio Madeira, ao fundo Porto Velho: o projeto da usina de Belo Monte é fonte de conflitos desde a década de 80

Minimizar a agressão

As injustiças não foram poucas, como lembra o físico Luiz Pinguelli Rosa, secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, presidente da Eletrobrás no início do governo Lula e um dos mentores do novo modelo do setor elétrico. Para ele o país precisa fazer usinas hidrelétricas na Amazônia, mas não qualquer usina: “A usina de Balbina (construída nos anos 80) tem índice pior que de uma termelétrica em termos de geração de gases do efeito estufa”. Balbina gera 250 megawatts com 2.300 quilômetros quadrados de área alagada. Com um lago de 1.300 quilômetros quadrados, Itaipu gera 14 mil megawatts. Pinguelli é crítico da atual gestão do setor elétrico. “O modelo vai mal não por causa das hidrelétricas, mas dos grandes interesses econômicos que continuam a dominá-lo”, afirma.

O físico diz que para se abdicar das novas usinas seria preciso mudar todo o modelo econômico do país: “Teria de ser uma sociedade espartana. Se a classe média não abrir mão de todo o conforto, seria hipocrisia. Ainda temos no país 12 milhões de ‘miseráveis energéticos’, que não têm acesso a nenhuma energia elétrica”. Diante da impossibilidade dessa perspectiva, ele propõe o caminho do meio. “Não há como, numa civilização tecnológica, não haver nenhuma agressão. Temos de minimizá-las, chegar a um meio-termo, sem radicalização.”

Para o ativista Glenn Switkes, da ONG de origem norte-americana International Rivers Network (Rede Internacional de Rios), o problema é a falta de uma visão mais abrangente sobre o uso econômico dos cursos d’água. “Os rios só são avaliados pelos megawatts que podem gerar. Não se levam em conta os outros usos. No Brasil, a política é de que é preciso usar mais e mais energia, senão investidores vão desprezar o país. O apagão de 2001, que na verdade foi positivo, porque as pessoas prestaram mais atenção à necessidade de economizar, é visto como desastre porque assustou investidores”, reclama. Switkes defende que a discussão comece pela necessidade de evitar desperdício e aumentar a eficiência, com a troca de turbinas e equipamentos obsoletos das usinas, por exemplo.

Tolmasquim, da EPE, tem afirmado que não há como suprir a demanda adicional prevista apenas com o incentivo à economia, a adoção de novas tecnologias, fontes alternativas ou mesmo a atualização dos equipamentos já existentes. A EPE estima que apenas 10% da demanda adicional por energia no Brasil até 2030 será suprida por programas de eficiência energética.

Por enquanto, a solução para a controvérsia tem aparecido na forma de projetos menos agressivos e de novas alternativas tecnológicas para evitar a repetição de desastres como Balbina. O Plano Nacional de Expansão de Energia Elétrica 2006-2015, por exemplo, prevê apenas duas usinas com reservatório de área superior a 500 quilômetros quadrados. Há uma tendência a usar mais usinas “a fio d’água” (sem necessidade de construir barragens que parecem grandes muralhas, características dos projetos antigos) e tecnologias como as turbinas do tipo bulbo, já previstas para as usinas do Madeira.

As pequenas usinas, PCHs, também são defendidas como forma de minimizar impactos ambientais. O problema que aparece em episódios como o dos ikpengs é que o licenciamento delas é feito pelas Secretarias Estaduais de Meio Ambiente. Em Mato Grosso, a peculiar sinergia entre governo e agronegócio gera tensão, porque ainda há dúvidas sobre o impacto de projetos implantados em série. Só no Rio Juruena, em região com grande número de comunidades indígenas, há pelo menos oito em projeto, e a lei não exige estudo do seu impacto global, apenas do efeito isolado de cada uma delas. O Ibama diz que só vai agir a respeito quando houver denúncias.

Apesar de ainda haver dúvidas sobre sua eficiência, há também novos modelos para os canais que permitem aos peixes migratórios subir os rios para desovar. Nos projetos do Rio Madeira, por exemplo, segundo o Ibama, haverá um “canal seminatural”, dando condições para a subida e descida dos peixes, além do monitoramento dos cardumes – em caso de diminuição de alguma espécie, será providenciado um repovoamento. A expectativa é que se evitem estragos como a quase extinção do surubim no Rio São Francisco, devido às barragens construídas nos anos 70.

E no front paulista…
A região do Vale do Ribeira (SP) também enfrenta o debate trazido por um projeto de hidrelétrica, o de Tijuco Alto, que desde os anos 80 a Companhia Brasileira de Alumínio, do milionário Antonio Ermírio de Moraes, almeja construir. Ambientalistas protestam junto ao escritório do Ibama em São Paulo para exigir que haja consulta pública antes de o órgão decidir sobre o projeto. O coordenador da Campanha contra as Barragens no Ribeira, Nildo Tatto, defende o veto à construção de usinas no Ribeira, último rio de médio porte livre de barragens no estado. Três quartos da região são cobertos por floresta, onde restam 23% da Mata Atlântica no país. Existem mais de 400 cavernas, 59 grupos remanescentes de quilombos, duas aldeias indígenas e centenas de comunidades de agricultores familiares e caiçaras.

A usina pretendida pela CBA para aumentar sua produção de alumínio, com 130 megawatts de potência e 52 quilômetros quadrados de área alagada, desalojaria cerca de 500 famílias de agricultores. A empresa oferece “compensações ambientais” a serem determinadas pelo Ibama, empregos temporários para operários, que devem vir de fora com as empreiteiras, e royalties para os municípios. “Ainda temos a esperança de que se possa pensar em outro modelo de desenvolvimento para o Vale do Ribeira. Não podemos permanecer nessa lógica de sempre achar ‘uma saída’ para viabilizar empreendimentos, pois o resultado, invariavelmente, é a expulsão de populações tradicionais para a miséria na periferia das cidades. Basta olhar para trás que se vê o rastro de destruição que essa mentalidade já deixou no país”, conclui.

O repórter Spensy Pimentel viajou para Mato Grosso em pesquisa para a ONG Repórter Brasil, www.reporterbrasil.org.br