cidadania

A turma do deixa disso

Para que pequenos atritos não agravem a dor de cabeça nem acabem em tragédia, os mediadores entram em cena sem medo de intervir na vida alheia. Eles ajudam muita gente a encontrar soluções pacíficas e ainda desafogam a Justiça

Paulo Pepe

Mesa de mediação do conflito entre as irmãs Maria das Graças e Lucinéia Maria: o cunhado, Norico (centro) foi quem procurou a assistência social em diadema

As brigas começaram quando a mãe de Maria das Graças Souza e Lucinéia Maria de Jesus Oliveira morreu, em janeiro de 2005. Das Graças morava com o marido, Norico, na parte superior da casa erguida pela mãe em Diadema (SP). Lucinéia, que vivia no andar de baixo, casou-se e foi morar com a sogra. Mas com a morte da mãe quis pôr o imóvel à venda. “Ela achava que, como eu já tinha a minha casa, aqueles cômodos onde nossa mãe morava não eram meus. Se ela quisesse morar, tudo bem, mas vender, não”, disse Das Graças, frente a frente com a irmã numa sala da Secretaria de Defesa Social de Diadema.

Elas estavam em uma reunião de mediação de conflitos, programa criado pelo município do ABC paulista como alternativa à via judicial para resolver atritos familiares, sociais e comunitários, com a missão de reduzir a violência e propagar a cultura da paz. Foi Norico quem procurou a assistência social da prefeitura em busca de uma solução para a desavença. Sentaram-se ao redor de uma mesa ao lado do mediador Orlando Vitoriano de Oliveira, advogado e ouvidor da Guarda Civil Municipal. Lucinéia queria vender a parte de baixo do imóvel e ficar com o valor total. Norico e Maria das Graças queriam metade. Ninguém arredava pé. Após a quarta sessão de conversas, o acordo foi firmado: Lucinéia iria morar na casa herdada e, se a vendesse, um terço do valor iria para a irmã.

“Sem a mediação a gente não conseguiria resolver nada. Tinha medo que o caso fosse parar na mão de um juiz, e a gente nunca sabe o que ele vai decidir. Melhor assim, sempre fomos muito unidos e esse problema me deixava mal”, disse Lucinéia, já desarmada e sorrindo para a irmã e o cunhado.

De acordo com a advogada Lia Justiniano dos Santos, presidente do Centro de Referência de Mediação e Arbitragem (Cerema), a mediação de conflitos resolve problemas como o de Maria das Graças e Lucinéia há cerca de 15 anos. Surgiu estimulada pela Lei de Arbitragem, de 1996, e hoje está presente em fóruns, organizações não-governamentais, faculdades e comunidades. “É um espaço onde alguém ouve o problema de verdade. O juiz não tem essa condição e o advogado sempre defende o lado que o contrata”, afirma. (Leia quadro à página 39 sobre outras alternativas de solução de conflitos.)

Gerardo LazzariDulcinéia e Mário Sérgio
A voluntária Mariângela procura levar Dulcinéia e Mário Sérgio a um acordo

Casais, vizinhos…

No Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, diariamente chegam casos indicados pela Defensoria Pública do Estado ou levados diretamente pelos interessados. O vigilante Mário Sérgio Neves do Desterro recorreu ao serviço com a ex-mulher, Dulcinéia, de quem se separou há dois anos. Desempregado, ele não paga a pensão dos dois filhos. Ela, diarista, amarga crise financeira e amorosa. Quer receber e ele não tem como pagar. (Quer também o marido de volta, mas isso a mediação não resolve.) No mês passado, após três encontros, o diálogo já era possível. Sérgio vislumbrava conseguir emprego para poder arcar com suas responsabilidades. “Mas mesmo assim tem que negociar o valor. E eu não quero voltar com ela.” Dulci não disfarçava a decepção.

Calma, Mariângela Franco Coelho conduzia o encontro. Só intervinha nos pontos necessários para a conversa progredir, com cuidado para a mesa não virar divã. “Meu objetivo é ajudar na comunicação entre as pessoas para que elas consigam se resolver. Sou apaixonada por esse trabalho”, explica a voluntária, bancária aposentada.

Trabalhos como esse prestam um grande serviço à Justiça formal, abarrotada de processos. De acordo com o Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil (Imab), cerca de 75% dos casos terminam em acordo. Percebendo esse caminho pacificador, o secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Rogério Favreto, afirma que são estudadas maneiras de absorver práticas similares como política de Estado. “Vamos formar lideranças comunitárias para fazer mediação”, diz.

“Distanciamento emocional e imparcialidade são atributos primordiais para um mediador”, alerta Silvio Ribeiro, assistente social da ONG paulistana Pró-Mulher, que intervém em conflitos familiares. Ribeiro admite já ter passado um caso a outro mediador. “Teve um caso de negligência e violência com mulher e filhos que me tocou de tal forma que tive de passar.” Segundo a ONG, cerca de 80% dos casos encaminhados pela Defensoria Pública de São Paulo, Delegacias da Mulher e fóruns chegaram a acordos.

Ligado à Secretaria de Justiça do Estado, o Centro de Integração da Cidadania (CIC) possui seis unidades que promovem mediação – em Guarulhos, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Campinas e capital. O mediador Francisco Scipai afirma que não é incomum casos se resolverem na primeira reunião. “As pessoas chegam, discutem, contam o problema e na hora certa interfiro com a pergunta: ‘E agora? O que fazemos?’ Elas param, pensam aonde podem chegar e logo percebem que a briga não vale a pena.” Scipai, juiz de casamento, presta o serviço voluntariamente, todas as manhãs de quarta-feira, no CIC do Jaçanã, zona norte paulistana. “Os conflitos que ajudo a solucionar contribuem para a reestruturar famílias e aproximar as pessoas da
Justiça, com orientações sobre seus direitos de cidadãos.”

As vizinhas Lídia de Oliveira Santos e Vilma Conceição dos Santos já passaram por ele. Antes, ambas procuraram a delegacia para registrar seus entreveros, que estavam ganhando dimensões imprevisíveis. Encaminhadas para o CIC, na primeira reunião com Scipai comprometeram-se a selar a paz.

sarah eleutérioKatiane
A estudante Katiane chegou a um acordo de pensão com o ex-marido assistida pelo Balcão de Direitos, iniciativa do município de Olinda (PE)

Cidades de paz

A mediação não é muito difundida no Brasil, mas é sucesso onde é praticada. Em Diadema – com 12.496 habitantes por quilômetro quadrado, segunda maior densidade do país – um mapeamento da prefeitura em 2005 revelou que na grande maioria dos homicídios ocorridos os motivos eram banais – e quem mata e quem morre moram perto. “A alta densidade demográfica deixa as pessoas muito próximas, quase sem privacidade. Isso gera conflitos. Criamos um curso de formação de mediadores para lideranças comunitárias e vamos conseguir evitar que muitos conflitos tenham final trágico”, afirma a secretária de Defesa Social, Regina Miki.

Para a inspetora de alunos Elza Alves Braga, da escola municipal de educação especial Olga Benário Prestes, atritos familiares que as crianças levam para a escola serviram de laboratório para ela ser convidada a fazer o curso e praticar mediação. “É difícil, você não pode dar opinião, tem de ouvir e tentar reconciliar sem levar em conta suas crenças pessoais. E é um tipo de sacerdócio, não pode contar nada para ninguém”, declara.

Olinda (PE) criou o Programa Balcão de Direitos – Centro de Mediação de Conflitos, gratuito em dois núcleos: Carmo/Bairro Novo e Rio Doce. Segundo a coordenadora do Núcleo de Mediação Comunitária de Conflitos de Olinda, Cynthia Pinto, foi formada uma equipe de facilitadores recrutados nas próprias comunidades. “Eles sabem onde existem os conflitos e facilitam o acesso nas favelas, onde os técnicos têm dificuldade para entrar.”

O estudante de direito Ramon Ribeiro, que faz estágio em Rio Doce há oito meses, conta que o contato com o público e os problemas que surgem ajudam na sua formação: “Aprendo muito aqui e fico feliz quando conseguimos resolver uma desavença”, relata. O presidente da associação local dos moradores, Edmilson Fernandes da Silva, diz que delegacias não conseguem lidar com atendimento social e a própria polícia encaminha casos. “A violência e os casos de homicídio diminuíram.”

A estudante Katiane Alves está virando “freguesa”. Separou-se há quase dois anos, após o nascimento do primeiro filho e ainda grávida da mais nova. Com ex-marido desempregado, conseguiu chegar a um acordo de pensão de 80 reais. Depois voltou ao Balcão quando ele parou de pagar e, em seguida, quando fez pedido do divórcio para legalizar a situação. “Acho que vamos voltar a brigar, pois ele já está há um ano de carteira assinada e não quer atualizar o valor da pensão”, prevê.

A prática de mediação também é prestada em escritórios particulares especializados. A advogada Cecília Manara contratou o mediador Adolfo Braga, presidente do Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, quando problemas de relacionamento com o namorado, e sócio, começaram a se refletir no escritório de advocacia que mantinham. Estava difícil acabar com a sociedade e dividir a clientela e, após seis sessões de conversas, Cecília não agüentava mais brigar. “Percebi que ele não cederia e eu tinha capacidade para seguir meus negócios sozinha.” Ela não gostou da negociação, mas garante que a mediação a ajudou a ver a luz no fim do túnel: “Aplico o que aprendi na mediação em tudo e enxergo a vida de outra maneira. Hoje meu escritório está bem”.

O advogado Orlando Vitoriano, mediador em Diadema, concorda. A prática o ajuda dentro da própria família: “Qualquer conflito com minha mulher ou meus filhos é mais fácil de resolver. A gente que trabalha com isso o dia todo acaba levando essa boa lição pra casa”.

Colaborou: Karla Roque

Alternativas pacificadoras

Mediação
Processo confidencial e voluntário em que a responsabilidade pela construção das decisões cabe às partes envolvidas. O mediador, imparcial, facilita a comunicação entre as pessoas, identifica os interesses comuns e divergentes e detecta as chances de solução dos impasses. Pode ser aplicado a qualquer contexto de convivência que possa produzir conflitos.

Conciliação
O conciliador, indicado pelas partes, tem a missão de aproximá-las, controlar as negociações e sugerir propostas depois de analisar suas conseqüências para os dois lados. Também é uma pessoa que atua de forma voluntária. A conciliação pode ser processual, quando já há pleito judicial, pré-processual ou informal, quando o conflito ainda não foi à Justiça.

Arbitragem
Processo extrajudicial e voluntário feito entre pessoas físicas ou jurídicas que elegem uma ou mais pessoas de confiança das partes para solucionar uma pendência. O árbitro, especialista da matéria em questão, atua de modo similar ao processo judicial, só que menos formal, mais rápido e barato. As partes assinam compromisso arbitral, que passa a ter força judicial. Não cabe recurso.

Todos os casos requerem treinamento. E, claro, que as partes envolvidas tenham interesse em solução negociada, e não litigiosa, aquela cuja decisão caberá à Justiça, após um processo em geral lento, desgastante, caro e nem sempre justo.

Sites de interesse
Ministério da Justiça – A página da Secretaria de Reforma do Judiciário − www.mj.gov.br/reforma – contém cartilhas sobre arbitragem e justiça comunitária.

Secretaria de Justiça de SP – Relação dos Centros de Integração da Cidadania − www.justica.sp.gov.br/Modulo.asp?Modulo=371&Cod=52

Centro de Referência em Mediação e Arbitragem – www.cerema.org.br

Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil – www.imab-br.org