Ponto de Vista

A santa aliança

Entre todos os crimes atribuídos aos EUA em sua cruzada contra a esquerda, soma-se a intervenção antidemocrática no destino da Itália, quando destruída pela guerra

Em 1942, um luxuoso transatlântico, o Normandie, explodiu no porto de Nova York. Os Estados Unidos, na guerra contra o Eixo, não haviam ainda organizado bem seus serviços de contraespionagem. Alguém, da Marinha, teve a ideia de negociar com o gangster Lucky Luciano sua colaboração. O capo da Máfia estava preso, condenado a uma sentença de 30 a 50 anos, mas continuava no comando da organização. Luciano, mediante o controle dos sindicatos de estivadores, organizou o serviço de vigilância que impediu qualquer tipo de sabotagem nos portos americanos.

Em 1943, mais uma vez, o gângster foi convocado. Com seus contatos na Sicília organizou grupos que ajudaram o desembarque de julho, e o deslocamento dos aliados pela ilha, até a conquista de Roma. Com a derrota da Itália e o apoio do Vaticano e dos aliados, o democrata-cristão Alcide de Gasperi assumiu a liderança conservadora e posição eminente no governo. Em 1946, depois da derrota definitiva dos nazistas, o rei Vittorio Emanuele III abdicou, em favor do filho, Umberto II. O governo decidiu convocar um plebiscito para decidir se a Itália continuaria no regime monárquico ou se estabeleceria a república.

O primeiro governo republicano foi de coalizão, chefiado por De Gasperi, com a presença dos comunistas. Os Estados Unidos, então, empregaram todos os recursos para impedir a vitória da esquerda nas eleições de 1948. Foi nesse momento que a CIA, a serviço do presidente Harry Truman e sua doutrina de contenção militar do comunismo, estabeleceu o grande eixo que, até hoje, encontra-se por trás do poder de fato na Itália, unindo o Vaticano, seu braço político, a direita da Democracia Cristã, e a Máfia.

Os norte-americanos despejaram centenas de milhões de dólares no país, que foram usados pela direita, a fim de comprar jornalistas, líderes locais e financiar operações da Máfia. Os italianos que votaram para a Assembleia Constituinte e, no ano seguinte, para o Parlamento, recebiam correspondência “dos amigos americanos” com o pedido de que votassem contra os comunistas. Esse vício de origem condenou a Itália à violência política e à corrupção generalizada, da qual é hoje expoente o governo de Berlusconi.

Depois da derrota eleitoral de De Gasperi (1953) e sua morte (1954), seu pupilo Giulio Andreotti assumiu o poder secreto na Itália, ao se colocar como o centro da aliança entre a Máfia e o Vaticano. Suas ligações foram comprovadas nas investigações realizadas pelos magistrados independentes Giovanni Falcone e Paulo Borsollini, assassinados em 1992, um depois do outro, quando estavam próximos de devassar a conspiração criminosa que tem mantido o poder de fato na Itália.

Andreotti entrara para o círculo mais fechado do poder na Itália, ainda em 1942, quando tinha apenas 23 anos, unindo-se a De Gasperi, então bibliotecário do Vaticano. Sete vezes primeiro-ministro e mais de 30 vezes ministro, Andreotti – absolvido das acusações de associação criminosa com a Máfia – foi condenado por ter mandado assassinar o jornalista Mino Picorelli em 1979, mas teve a sentença anulada pela Suprema Corte, tendo em vista sua idade. Aos 90 anos, é senador vitalício desde 1991.

No dia 18 de julho, o mais importante dos mafiosos vivos, Totó Riina, condenado à prisão perpétua pela execução dos dois magistrados, revelou a seu advogado que os juízes Falcone e Borsellini foram assassinados em complô de que faziam parte a Máfia, os serviços secretos italianos, o Vaticano e industriais de Milão, entre eles, Silvio Berlusconi.

De acordo com outras testemunhas, os serviços secretos da Itália ajudaram a Máfia a organizar o assassinato dos juízes e ocultar evidências que levassem aos executores. Esse texto foi escrito logo depois da confissão de Riina, e novas revelações podem ter surgido. Quaisquer que venham a ser, só servirão para confirmar que, entre todos os crimes atribuídos aos norte-americanos em sua cruzada contra a esquerda, deve somar-se sua intervenção antidemocrática no destino da Itália, quando destruída pela guerra. Eles instalaram a Máfia, a direita do Vaticano e os corruptos no poder – e condenaram o país a esse destino de farsa e violência.

Eles instalaram a Máfia, a direita do Vaticano e os corruptos no poder – e condenaram o país a esse destino de farsa e violência.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980