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A riqueza da vida

Criado nos anos 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tornou-se referência para medir a evolução dos países e a qualidade de vida dos povos

Finbarr O’Reilly/Reuters
Finbarr O’Reilly/Reuters
Crianças retornam com roupas lavadas no rio Níger: pobreza, seca e instabilidade política
Finbarr O’Reilly/Reuters

Crianças retornam com roupas lavadas no rio Níger: pobreza, seca e instabilidade política

Dinheiro não é  tudo. Essa afirmação, que pode causar polêmica, não é  motivo de dúvida para a Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar de ter criado, em 1971, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para combater a pobreza, a preocupação principal da ONU nunca foi restrita a objetivos relacionados à renda das populações.

Foi com esse conceito que nasceu, duas décadas depois, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), tido hoje como uma referência internacional para definir a evolução de um país e a qualidade de vida de seu povo.

Austrália, Canadá  e Noruega, que ocupam as primeiras posições do IDH desde sua instituição, destacam-se não só pela renda alta, mas pelas expectativas e possibilidades de evolução profissional e pessoal oferecidas à população. Esses três países têm aspectos comuns relacionados à sua história e ao desenvolvimento com foco social.

A Noruega, por exemplo, primeiro lugar da lista no mais recente Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicado no final de 2009, garante a qualquer cidadão, no mínimo, 17 anos de estudos bancados pelo Estado.

Enriquecido principalmente pelas grandes jazidas de petróleo encontradas nos anos 1960 no mar, o país criou um sistema econômico conhecido como “capitalismo do bem-estar”, em que combina o controle de áreas-chave, como a educação e a exploração de riquezas naturais, com a liberdade de mercado.

Fruto dessa política, desenvolveu-se um sólido parque industrial, que produz 45% da riqueza do país e fez prevalecer distribuição de renda e de oportunidades à população. Embora ocupe um território sujeito a invernos rigorosos e prolongados, a Noruega tem cerca de 4,6 milhões de habitantes – todos alfabetizados e acima do que se considera a linha da pobreza. Além disso, praticamente toda a população tem acesso à internet e à telefonia – quase a totalidade utiliza telefones celulares.

Do lado oposto do RDH de 2009, os últimos colocados são os países africanos, que também vêm se revezando na posição ao longo dos anos. São nações que se livraram da dominação colonial recentemente – em geral na segunda metade do século 20 – e foram abandonadas à própria sorte, sem planejamento adequado. Sofrem conflitos étnicos e carência de recursos naturais – problemas ampliados pela má distribuição de renda e crises constantes nas áreas de saúde, saneamento básico e alimentação.

Uma deles é  Níger, pequeno país na região nordeste da África, colonizado pela França até a conquista da liberdade, em 1958. O rápido desenvolvimento de sua economia nos anos 1960, apoiado pela descoberta de minas de urânio, não foi suficiente para o país resistir ao rigor da seca que predominou na região entre 1968 e 1975, produzindo fome em aproximadamente 2 milhões de pessoas – mais de 20% da população no período.

Além disso, Níger vive instabilidades políticas, frequentemente reforçadas por regimes militares autoritários e conflitos entre o grupo étnico nômade, os tuaregues, e outras tribos do país, constituídas principalmente de negros. O trabalho escravo, ainda que abolido, perdura até os dias de hoje – calcula-se que haja cerca de 50 mil escravos ilegais no país.

Varrido por doenças causadas pela ausência de saneamento básico – hepatite, malária e meningite – e pela aids, Níger sofre um processo de desertificação, pela proximidade do Saara, no qual são frequentes secas impiedosas. Ainda assim, 90% da produção do país depende da agricultura e não é de estranhar que 63% da população esteja abaixo da linha da pobreza – a maioria não tem acesso a eletricidade ou a qualquer tipo de comunicação tecnológica. E, para piorar ainda mais a situação, enfrenta forte reivindicação da Líbia sobre parte do seu território. No ano passado, mais de um terço dos recursos do país foi fornecido pela ajuda externa.

O IDH do Brasil
No mais recente IDH, publicado no final do ano passado, com dados referentes a 2007, o Brasil ocupa a 75ª posição, com “nota” 0,813. Em 1975, a nota foi de 0,641. Apesar de ter sido criado em 1990, o índice foi recalculado para anos anteriores. Aparentemente, nesses 35 anos, o país conseguiu aumentar significativamente a qualidade de vida da sua população nos três aspectos que compõem o índice, mas não melhorou sua posição no ranking. Embora tenha elevado a renda média da população e os índices relacionados à educação, principalmente a partir dos anos 1990, o que mais compromete seu avanço no IDH é a distribuição de renda. A visão externa que se tem do país nos aspectos relacionados aos parâmetros do IDH é ainda muito próxima da expressão cunhada pelo economista Edmar Bacha em 1974 – “Belíndia”, uma mistura entre Bélgica e Índia. A prova disso está no próprio PIB. Somos o 10º colocado nesse índice, mas apenas o 103º quando o PIB é per capita. Para agravar a situação, constatou-se que essa má divisão de renda não ocorre apenas entre regiões do país, mas dentro das próprias cidades. Ou seja, às vezes basta atravessar a rua para ir da Bélgica à Índia.

Graças a um programa de combate ao HIV e tratamento da aids considerado de boa qualidade (entre os 20 melhores), o aspecto “longevidade” prejudica nossa posição menos do que poderia. A expectativa de vida no Brasil é, hoje, de quase 72 anos, ocupando a 123ª posição em relação aos outros países, o que não ajuda muito – assim como o índice de mortalidade infantil, que ocupa a 93ª. São aspectos que influenciam diretamente o IDH. Assim como na educação: a alta taxa de analfabetismo, combinada com a grande desistência da escola verificada principalmente entre adolescentes, compromete o conceito de evolução e perspectivas futuras do índice, impedindo que o país melhore de posição.

Mais adequado

Embora a economia de ambos os países tenha influência significativa na posição que cada um ocupa no ranking do IDH, há outros aspectos com o mesmo peso – que avaliam, principalmente, a perspectiva de evolução da população nesse momento. Diferentemente do Produto Interno Bruto (PIB), o IDH leva em conta outros dois fatores além do aspecto econômico.

“É um índice que desloca o foco da renda e considera também a educação e a longevidade”, explica Sabrina Galeno, consultora da ONU que integra a equipe do Pnud no Brasil. Assim, esses fatores, mais a renda, têm peso igual na composição final do índice – um terço para cada um.

Por essa característica é que o IDH vem sendo utilizado como uma alternativa mais adequada. “O PIB mede apenas o desembolso anual, parte do qual se deve à ocorrência de desastres naturais (terremotos, derramamento de petróleo etc.), sociais (gastos com epidemias, desemprego) ou políticos (guerra civil, campanhas eleitorais, corrupção em governos), e por isso não serve para verificar se de um ano a outro o bem-estar da população foi alterado. No Haiti, por exemplo, o PIB em 2010 é capaz de ter aumentado…”, ressalta o economista Paul Singer.

Essa era a principal preocupação do indiano Mahbub ul Haq, que, com outro indiano, Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, desenvolveu o índice. Mahbub percebeu que o desenvolvimento de um país não pode ser medido apenas pela sua riqueza, mas também pelas perspectivas oferecidas a seus cidadãos. “Hoje há gente trabalhando em vários países na construção de índices que incorporam outras variáveis, como a sustentabilidade ambiental do desenvolvimento ou o grau de concentração da renda e da propriedade versus a variação do número de pobres”, detalha Paul Singer.

O IDH procurou representar melhor essa realidade. “É um índice sintético, que busca refletir o conhecimento humano. E adquiriu tal importância que hoje pode determinar políticas públicas nas nações avaliadas”, observa Antonio Ibarra, do núcleo de informações do Dieese. Apesar desse caráter simplificado, os fatores que compõem o índice são ricos de informação. Na educação, por exemplo, são levadas em conta a taxa de alfabetização dos adultos e uma combinação das matrículas efetuadas nos três níveis de ensino. Com isso, obtém-se uma avaliação do que foi feito no passado em termos de alfabetização e, ao mesmo tempo, do presente.

Já a longevidade apura a esperança de vida, em anos, que o cidadão tem ao nascer e leva em conta fatores como mortalidade infantil e programas implantados agora para dar resultados no futuro. Se um país tem um programa de combate a aids, isso se reflete no índice da longevidade.

O IDH também utiliza o PIB, mas com uma avaliação mais realista, já que o valor desse índice, em dólares, passa por uma conversão segundo o poder aquisitivo da população. “O poder de compra é o que vale”, explica Sabrina Galeno. “Afinal, um litro de leite pode ser caro ou barato para a população, independentemente do valor absoluto dele.”

Busca de precisão

Também há  uma classificação do desenvolvimento humano: “muito elevado”, “elevado”, “médio” e “baixo”. Com esse conceito, o IDH tem se fortalecido como índice de referência de desenvolvimento ao longo do tempo – até porque suas avaliações sofrem melhorias a cada ano em busca de uma maior precisão de suas notas. Mas sempre mantendo o conceito de que o desenvolvimento não pode ser medido pela riqueza bruta.

Assim, países que são reconhecidamente muito ricos graças à grande produção de petróleo, como a Arábia Saudita, que está na 59ª posição, não conseguem uma colocação tão boa no ranking do IDH. A péssima distribuição de renda que apresentam prejudica os índices relativos a educação e expectativa de vida, empurrando-os para baixo.

Por outro lado, países que são notoriamente pobres, com fraco desempenho no comércio internacional e PIB per capita muito baixo, podem conseguir posições relativamente altas porque oferecem à sua população condições de educação superiores a muitos países ricos. É o caso de Cuba. Por força de seu regime, focado, principalmente, no desenvolvimento educacional mais horizontal, ou seja, acessível a toda a população, a pequena ilha é o quarto país da América Latina mais bem colocado no ranking, ocupando a 51ª posição (acima da Arábia Saudita), com nota 0,863. Faz sentido.

Mas as distorções são inevitáveis. Assim como esses casos isolados escapam de uma avaliação padrão, outros também podem provocar distorções motivadas por aspectos culturais. Não se pode julgar o poder aquisitivo de uma população oriental baseando-se nos alimentos mais consumidos, por exemplo. Se na Tailândia há um consumo extraordinário de arroz – alimento considerado relativamente pobre para os padrões ocidentais, –, não se pode atribuir esse fato exclusivamente a um baixo poder aquisitivo, e sim à cultura de comer arroz.

Um mundo de diferenças

 NígerNoruegaBrasil
Expectativa escolar (em anos)4,017,014,0
População abaixo da linha da pobreza (%)63,00,026,0
Expectativa de vida (em anos)52,679,572,0
População alfabetizada (%)28,7100,088,6
Gasto com educação (% PIB)3,47,24,0
Mortalidade infantil (por 1.000)116,63,622,

Burkina Faso: pobreza relativa
Entre os dez últimos colocados da lista do Relatório de Desenvolvimento Humano do Pnud, nove são países africanos. Há poucas diferenças entre eles, prevalecendo sempre notas muito baixas em todos os três critérios utilizados. São países pouco conhecidos, que viveram sob a dominação colonial de europeus e, após a independência, se viram relegados à própria sorte. Mas, apesar disso, conservam sua cultura, um fator determinante na qualidade de vida da população. É o caso de Burkina Faso, localizado na parte mais ocidental da África, sem acesso ao mar, e com população praticamente toda negra. E com uma forte personalidade.

Atraído por essa força, o músico e cineasta Carlinhos Medeiros produziu dois documentários sobre o país, com apoio da Sesc TV, no qual procura mostrar que, apesar de toda a pobreza, Burkina Faso mantém sua dignidade e até uma relativa qualidade de vida. No dialeto local, Burkina Faso quer dizer “país de homens íntegros”, e é justamente essa a primeira impressão mais eloquente que Carlinhos Medeiros constatou durante as filmagens.

“A população é feita de negros altos, elegantes e fortes”, diz ele. Na capital, Uagadugu, com 1 milhão de habitantes, é possível ver cenas de muito desamparo à população, como ausência de coleta de lixo e saneamento básico. “Os hospitais públicos são pagos e têm cadeia dentro deles, para que aqueles que não possam pagar fiquem presos. As escolas públicas também são pagas. Não há água encanada em praticamente todo o país”, conta Carlinhos. “E a dieta básica da população é o angu – que eles comem uma vez por dia –, feito com água e farinha de milho, eventualmente misturado com arroz ou, na melhor das hipóteses, com pedaços de carne”, descreve.

Apesar disso, a impressão do cineasta é muito positiva. “É um país especial. Não há guerras étnicas e não se vê violência nas ruas. Talvez porque todos sejam pobres. Parece que a pobreza, de certo modo, produz uma situação favorável para a harmonia e a qualidade de vida do povo. Por exemplo, o açúcar é muito caro lá e, portanto, pouco usado. O resultado é uma população de dentes lindos.”

Segundo Medeiros, 80% da economia do país vive na informalidade e a produção agrícola sofre com o rigor do clima do deserto – as chuvas ocorrem apenas durante dois ou três meses por ano. “Mas é alentador ver uma criança construir o próprio brinquedo, usando a imaginação e a criatividade, e se divertir com ele, quando nos países ricos as crianças já não têm essa capacidade.”

Depois de conquistar a independência da França, em 1960, conduzido por Thomas Sankara, seu primeiro presidente e considerado uma espécie de Che Guevara africano, Burkina Faso veio praticando, às vezes usando a força do governo, uma política de valorização da sua cultura e identidade. O que não foi suficiente para melhorar seu IDH – o país tem o pior índice de alfabetização do mundo. Ainda assim, o visitante parece sair bem impressionado com o estado de espírito da população: “Apesar das dificuldades, os habitantes mostram uma alegria maior do que se encontra na Suíça”, diz Carlinhos Medeiros, que já morou no país europeu.