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A rapadura é doce, mas…

Trabalhador deve estar preparado para enfrentar desafios e ter planos de ascensão. Mas os direitos hoje considerados normais na sua vida foram alcançados coletivamente, e muita gente ralou muito para isso

Gregg Newton/reuters

O sol a pino de 1 hora da tarde deixava só um pedaço de sombra para o ajudante geral Daniel Araújo, de 23 anos, descansar em frente ao portão da indústria química onde trabalha, há dois meses, em São Bernardo, ABC paulista. Daniel bate papo com os colegas em frente ao portão durante pelo menos um quarto de sua hora de almoço. Sua jornada diária é de 7 horas e 48 minutos, cinco vezes por semana. Recebe vale-refeição, vale-transporte, 13º salário e participação nos lucros no final do ano.

Casado e pai de duas filhas, ele se diz satisfeito por trabalhar numa grande empresa, com carteira assinada. Mas fica um pouco sem jeito por não se dar conta de que, entre os direitos garantidos em seu contrato de trabalho, parte deles está na Constituição e foi conseguida após décadas de batalha do movimento sindical; outra parte, com avanços em relação à lei, integra o acordo de sua categoria, negociado por seu sindicato, que existe há quase 60 anos. O operário também não imaginava quantas lutas, greves, perseguições e discussões foram desencadeadas ao longo desse período em busca de melhores condições de trabalho. “Nunca tinha parado para pensar”, admite.

A jornada semanal é um exemplo disso. A de Daniel está abaixo da prevista pela Constituição, que é de 44 horas. A redução da carga horária de 48 para 44 horas semanais foi uma conquista dos trabalhadores durante a Constituinte. Na ocasião, o movimento sindical não conquistou as 40 horas reivindicadas, mas essa redução foi obtida depois, em vários casos, por meio de negociação coletiva.

Wesley Barcelos, 23 anos, entrou há pouco mais de um ano em uma montadora em São Bernardo, como pintor. À noite, cursa o 3º semestre de Engenharia Automobilística. É solteiro, mora com a família e tem planos de crescer dentro da empresa. Mas sabe que, coletivamente, a atuação sindical é importante. “Se não houvesse sindicato, a empresa poderia agir só pensando no lado dela”, afirma.

Gildete Menezes, o Gil, chega a se emocionar ao lembrar quando deixou Vitória e chegou a São Paulo. Sua experiência profissional em uma montadora durou quase a idade de Daniel e Wesley. “Tenho sustentado minha esposa e meus dois filhos. Através do sindicato fiz vários cursos e, com eles, as empresas mudaram a forma de tratar os funcionários”, diz o operário, que se aposentou em novembro. “Quando, na minha época, um funcionário ia imaginar ter PLR, um terço do salário quando sai de férias, batalhar por recontratação e não-demissão?”, questiona.

Há 100 anos, jornada de 16 horas

cartaz greve

Seja na lei, nas convenções ou acordos coletivos, a grande maioria dos direitos e benefícios alcançados não saiu da cabeça dos governantes nem dos departamentos de recursos humanos das empresas. A lei do 13º salário, sancionada em 1962, levou três anos para ser conquistada. A Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960, exigiu sete anos de luta.

No próximo mês de maio serão completados 100 anos de uma greve pioneira em São Paulo, que atingiu diversas categorias, pela jornada de oito horas diárias, movimento que levou um ano para ser organizado depois de ser discutido no 1º Congresso Operário Brasileiro, em abril de 1906. O dia de trabalho então chegava a 16 horas.

“Vieram das lutas sindicais e populares, e não da generosidade do Estado brasileiro, os direitos trabalhistas inscritos na CLT e na Constituição”, lembra o doutor em Sociologia e professor Giovanni Alves, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Sem sindicatos não há direitos trabalhistas e sem direitos trabalhistas não há nação nem civilização. É o que devemos ensinar à juventude tão imersa nos valores do mercado”, define Alves.

O aposentado Antonio Albuquerque puxa pela memória que toda conquista deve ser defendida. “Em 1963, houve 302 greves por causa do não-pagamento do 13º salário, aprovado no ano anterior. Agora, os trabalhadores lêem pouco e formam suas opiniões apenas pelo que recebem da grande mídia.”

Antonio começou cedo a trabalhar. Em 1953, quando deixou o Ceará para ir a São Paulo e conseguiu um emprego em uma multinacional da área química, a conjuntura era outra. “Havia mais empregados e a gente tinha mais ideais, queria uma sociedade melhor, mais igualitária”, afirma. Aos 74 anos, pai de dois filhos e viúvo, ele vê com indignação o que considera falta de mobilização e entendimento de política dos trabalhadores nos dias atuais. E recorda do processo de unificação de plásticos e químicos, em 1994. “Tivemos várias conquistas, como a diminuição da jornada, o esforço para combater o assédio moral e oferecer mais direitos para as mulheres, grandes vitórias que fizeram diferença na sociedade”, assinala.

Nos anos ‘990, com a crise estrutural das economias e as grandes transformações no mundo do trabalho – inclusive o crescimento assustador da mão-de-obra informal e não organizada –, a classe trabalhadora teve dificuldades em negociar devido ao avanço do desemprego. Agora, o cenário começa a mudar. No primeiro semestre de 2006, segundo o Dieese, 96% das negociações salariais foram fechadas com reajuste superior ou equivalente à inflação. A tendência se manteve no segundo semestre, com categorias numerosas como bancários, comerciários, metalúrgicos e químicos.

O próprio Dieese, que assessora as entidades nas negociações e realiza estudos relacionados ao mundo do trabalho, foi resultado da organização dos trabalhadores. O instituto foi criado em 1955 por sindicalistas desconfiados dos índices oficiais de inflação. “O Dieese é filho do movimento sindical, que é a sua razão de ser para atendê-lo com pesquisas, assessoria e divulgação, a serviço da sociedade”, afirma o diretor-técnico do instituto, Clemente Ganz Lúcio.

Hugo, de 22 anos, trabalha há um ano e dois meses no Banco do Brasil e não é sindicalizado. Como estudante de Economia, pretende fazer carreira e tem como meta “ocupar um cargo de gerência antes dos 30 anos”. Apesar de não ter relação direta com o sindicato de seu ramo, sabe da atuação dentro e fora das agências: “O sindicato faz um monitoramento com os trabalhadores sobre os problemas internos e a cada campanha salarial briga por isonomia entre os trabalhadores novos e antigos, contra o assédio moral e por melhores condições de trabalho”.

Paulo, 49 anos, gerente de agência do mesmo banco, tem só nesse emprego mais tempo (28 anos) que a idade de Hugo. Casado e pai de dois filhos adultos, pensa em se aposentar no ano que vem, mas não em parar de trabalhar. Para ele, a atuação dos sindicatos com os banqueiros tem de ser diferente. “Com as tecnologias, o auto-atendimento e a internet, muitas pessoas não precisam mais ir às agências. Por isso, a greve não tem o mesmo impacto. Mais que o aspecto salarial, o trabalhador do ramo financeiro precisa de segurança, de assistência médica e psicológica contra o estresse”, avalia, referindo-se à cobrança “desumana” por metas.

Rosa, de 34 anos, é gerente em uma instituição privada em São Bernardo, onde trabalha há 14 anos. Casada com um metalúrgico, sindicalizada e com três filhos, voltou recentemente de licença-maternidade. Um direito que facilitou sua vida, assim como o auxílio-creche/babá de 170 reais que recebe mensalmente: “E, com minhas três crianças e trabalhando, sempre precisei de alguém que cuidasse delas, mesmo com a ajuda da minha mãe. Assim trabalho mais tranqüila”, comenta. Esse direito foi conquistado em 1986, depois de alguns anos de persistência, para filhos até 5 anos e 10 meses de idade, e alguns anos mais tarde foi estendido para até 6 anos e 11 meses.

O pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho da Unicamp Cláudio Dedecca analisa que o trabalhador não tem consciência do histórico de conquistas, mas é ciente da importância da pressão sindical: “A crise e a precarização no mercado de trabalho dificultam a relação do trabalhador com o sindicato e o envolvimento direto nas ações. Porém, ele sabe que sem sindicato não há conquistas, lembrando que toda a história do sindicalismo sempre foi conturbada e sua organização é tão recente quanto a democracia”.

No final da década de 70, as ações sindicais, antes sufocadas pelo golpe militar de 1964, voltaram a ganhar força. Tornaram-se importantes até para a volta da democracia. Em maio de 1978, os operários da fábrica de caminhões Scania, em São Bernardo do Campo, decidiram cruzar os braços. O movimento se estenderia a outras empresas e, em seguida, a outras categorias, tanto no setor público como no privado.

Em agosto de 1981 foi realizada a 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), na Praia Grande (SP). Nesse encontro começaram as discussões que resultariam na formação da CUT, em 1983, e da CGT, em 1986. Cinco anos depois surgiria a Força Sindical e em 1997, a Social Democracia Sindical.

O presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Carlos Ramiro de Castro, o Carlão, lembra que até a Constituição de 1988 os servidores públicos não podiam ter sindicatos. A partir de então, a associação pôde “se fortalecer para a luta pela qualidade de ensino no país”, argumenta. Carlão destaca conquistas como o Instituto do Magistério, a criação de uma data-base para renovação dos acordos e a organização da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).

“A tendência dos sindicatos é reunir os interesses de todo um ramo”, analisa o presidente da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Vagner Freitas, entidade criada para buscar a representação de cerca de 1 milhão de trabalhadores, incluindo promotores de vendas, securitários, pessoal de tecnologia da informação e de bolsas de valores.

Alguns entrevistados pediram para não ter o nome revelado e foram identificados por pseudônimo

Direito de se organizar

O aposentado Martisalém Covas Pontes, o Matu, de 61 anos, iniciou a militância sindical no ramo metalúrgico, justamente o alvo mais exposto no início dos anos 80. Perseguições e retaliações fizeram-no mudar de ramo. Matu ajudou a oposição no Sindicato dos Plásticos de São Paulo, participou dos primeiros trabalhos da construção da CUT e recorda com emoção as conquistas do seu ramo. “Em 1985 conseguimos fazer a campanha salarial unificada, reduzimos a jornada. O trabalhador viu que estávamos lá por eles”, observa.
Na visão de Claudio Dedecca, da Unicamp, ao longo dos últimos 25 anos o preconceito contra os sindicalistas vem se reduzindo. “O sindicalismo tem aparecido como organização legítima e importante.”
O presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Luiz Cláudio Marcolino, acredita que uma parte da sociedade ainda vê o papel dos sindicatos como o de fazer greve, enquanto dentro das corporações há um reconhecimento mais amplo. “Foram décadas de trabalhos da porta para fora. Hoje, temos acesso aos diretores para discutir e negociar”, argumenta. “Empresas que têm boa interlocução com seus trabalhadores acabam melhorando sua produtividade. E o sindicato é o canal mais legítimo para essa interlocução.

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