Viagem

A Nice de Garibaldi

Na paisagem apertada entre as montanhas e o mar no sul francês, há rastros de história nas ruas, na arquitetura e nos museus. Mas é bom saber alguns truques para não sair depenado dessa região bela e cara

Flávio Aguiar

A cidade de Nice, no sul da França, junto ao mar Mediterrâneo, tem cerca de 400 mil habitantes e é a segunda mais visitada por turistas naquele país, depois de Paris. Fica na belíssima costa marítima conhecida como Côte d’Azur, onde se encontram nomes e lugares como Cannes e Mônaco, além de outros não menos belos, embora menos famosos, como Beaulieu-sur-Mer e Antibes. Uma região belíssima, sim… e também caríssima.

A melhor solução para quem quiser se aventurar por lá sem deixar uma fortuna é, primeiro, procurar um apartamento para alugar. Um hotel com uma acomodação boa, simples, apertada, com café da manhã, “sem luxo” (quer dizer, sem vista para o mar), não sairá por menos de € 100 (cerca de R$ 250) por noite para um casal, e isso fora da estação. Já um apartamento do tipo quitinete, confortável, com banheiro bom, bem localizado, com balcão para tomar café da manhã ou jantar, pode sair por € 50 a noite. E permite que a gente cozinhe, o que é fantástico. Porque, além de caros, os restaurantes da área turística vivem apinhados e a relação custo-benefício não é lá essas coisas.

Há exceções, é claro. Por exemplo: um prato de 12 ostras de excelente qualidade pode custar entre € 8 e € 10. Mas o melhor mesmo é ir ao restaurante fora da área turística, pedir ao encarregado para abrir as ostras e levar tudo para o apê alugado, com um bom vinho branco ou um espumante (talvez um champanhe…) comprado no supermercado. Ou nas lojas especializadas, cujo preço costuma ser bem em conta. O resto – água (mas pode-se beber a da torneira), refrigerante, café etc. – é tudo caro.

Outra exceção: o restaurante ao ar livre Lou Pilha Leva, na Cidade Velha, onde, entre os gritos dos atendentes chamando os fregueses para pegar seus pratos no balcão, pode-se degustar delícias regionais como o socca, uma espécie de panquecão feito com farinha de grão-de-bico, que se deve comer, de preferência, acompanhado de um vinho rosé seco bem gelado. Ou ainda a pissaladière, pizza coberta com cebola, azeitonas pretas e anchovas, perfeita com um bom vinho branco. Há ainda o pan bagnat, uma fatia de pão redondo coberta com azeite de oliva, vinagre, alho, tomate em rodelas, azeitonas pretas, atum, alcachofra, manjericão e mais uma série de pequenas iguarias e temperos, um conjunto imperdível.

Vander FornazieriMônaco
A marina principal de Mônaco

Para comprar

Resolvido o problema da comida, partamos para a cidade. Antes, ainda, um aviso: Nice é  a cidade das feiras. Todos os dias, até o meio-dia e meia, um mar delas se espraia por toda a cidade. Há o tradicional Mercado das Flores, belo, com suas tendas coloridas, onde se compra de tudo, até flores. O lugar deve ser visitado, mas ali os preços são salgados demais. Além de ficar de olho no seu bolso, para não gastar demais, fique de olho na sua bolsa. As feiras de Nice são um convite aos olhos e às compras. São relativamente baratas e também se compra de tudo. Portanto, um bom modo de começar o dia é ir à feira perto de onde você estiver, fazer as compras para o jantar e, depois de trazer tudo para casa, sair para passear.

Uma das principais atrações de Nice é a paisagem, apertada entre as montanhas escarpadas e o mar. Este e o céu são de um azul – o chamado azur – profundo, brilhante e forte. A cidade é cheia de altos e baixos, com praias bonitas, embora, para nós, possam deixar a desejar: o chão é todo de pedras. O clima é ameno – temperaturas assim como as de Porto Alegre. O sistema de transporte é ótimo e barato. Com € 1 vai-se a qualquer parte, até ao Principado de Mônaco, de ônibus ou bonde. Ou de trem, que custa mais caro. Pode-se também comprar um passe diário por € 4.

O primeiro barato em Nice é andar na Cidade Velha (Viéia Villa, em provençal-niçardo, a língua original da região). É um trançado de ruas labirínticas, de desenho medieval, em meio a prédios cuja forma arquitetônica, além de bela, é surpreendente. Nice é um verdadeiro mercado persa, um carrefour (cruzamento de vários caminhos), como dizem os franceses, entre a França e a Itália, a Europa, a África e agora a Ásia, e isso se reflete também nas ruelas da Viéia Villa. Elas são uma verdadeira babel de mercadinhos, ateliês, armarinhos, lojas sofisticadas de azeites, vinhos, azeitonas, restaurantes mais ou menos sofisticados e caros, cafés, armazéns, tudo encimado por residências em cujas janelas tremulam ou repousam roupas – desde as íntimas até as de festa – em varais que atestam o travo popular do bairro.

Flávio AguiarMercado persa
Quem se embrenha nas ruas estreitas da Cidade Velha conhece uma Nice acolhedora e encontra comida e compras que pesam menos no bolso

Herói de dois mundos

Navegando-se pela Viéia Villa pode-se sair da Place de L’Opéra, cartão de visitas, até outra onde está um dos corações históricos da cidade: a Praça Garibaldi. Nela, uma imponente estátua de Giuseppe Garibaldi – o “herói de dois mundos” – olha em direção à Itália. Nice é a sua cidade. Lá ele nasceu, no tempo em que Nice era Nizza, e pertencia ao Reino do Piemonte, e revolucionários começavam a luta pela unificação da Itália, contra o papado, o Império Austro-Húngaro e a aristocracia, que em grande parte apoiava essa situação submissa. Foi só em 1860, através de um tratado e de um plebiscito, que Nice foi incorporada à França. O jovem caudilho italiano se envolveu num atentado contra o rei do Piemonte e por isso teve de se exilar – indo parar no Rio Grande do Sul, na Revolução Farroupilha, e em Laguna, Santa Catarina, onde conheceu a grande paixão de sua vida, Ana de Jesus Ribeiro, que se tornou Anita Garibaldi.

Para quem for peregrino da história, uma visita interessante é ao túmulo da mãe de Garibaldi, Rosa, no cemitério que fica no alto do morro do Castelo. Ali também esteve enterrada Anita, morta em 1849, antes que seus despojos fossem removidos para Roma. Isso implica subir o morro, o que se pode fazer a pé ou de elevador, junto ao mar, próximo ao Mercado das Flores. O morro é na verdade um parque, de vistas deslumbrantes sobre a cidade, que permite ver os famosos conjuntos de telhados vermelhos da Cidade Velha. Passeando pelas alamedas, entre fontes e ruínas de uma fortaleza medieval, pode-se chegar ao porto da cidade, onde fica a casa (reconstruída) de nascimento de Garibaldi.

E, das mulheres legendárias de Nice, a mãe de Garibaldi não é a única. Outra é Catherine Segurana, uma cidadã que, diz-se, salvou a cidade de um ataque dos turcos, no século 16, de um modo muito original. Nas muralhas da cidade ela prostrou um porta-estandarte turco com seu pau de bater roupas, tomando-lhe a bandeira. A seguir, virou-se de costas para o exército inimigo e levantou as saias, exibindo-lhes o traseiro, um gesto de desprezo comum na época. E por isso o exército turco – não se sabe exatamente se ultrajado ou extasiado – bateu em retirada… Uma bala de canhão, dita do inimigo, exposta numa esquina, rememora o feito.

Em Nice, há  pelo menos mais um morro a subir. O Cimiez, uma das origens da cidade, onde há 2.000 anos havia uma cidadela romana. No caminho encontra-se o Museu Nacional Mensagem Bíblica de Chagall, no qual está reunida uma vintena de suas pinturas com temas da Escritura Sagrada. É único, belo, indescritível. No alto do morro, junto às ruínas romanas, há o Museu Matisse, com obras de Henri Matisse, pintor francês que viveu em Nice.

Visite também os arredores, onde não faltam paisagens deslumbrantes e momentos culturais de grande valor. Se quiser cumprir a peregrinação dos endinheirados, tome o ônibus 100 e, por € 1, vá visitar o Principado de Mônaco e o Cassino de Monte Carlo. Vá: poderá dizer que esteve no lugar em que Grace Kelly se apaixonou pelo príncipe Rainier, durante as filmagens de Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock, e onde com ele se casou em 1956. Mas não tenha sede nem fome: se quiser comer e beber algo, vai deixar um salário.

Vale mais a pena, por exemplo, visitar a elegante e exótica Villa Kérylos, em Beaulieu-sur-Mer, a meia hora de trem de Nice, na direção de Mônaco. A Villa – uma mansão construída de 1902 a 1908 segundo o estilo grego antigo – pertencia a Theodore Reinach (1860-1928). É um testemunho original dos ideais burgueses e aristocráticos da Belle Époque, que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Mas é um testemunho de bom gosto e beleza arquitetônica para repousar os olhos e o espírito depois dos galopes necessários para descobrir as incontáveis belezas da Nice de Garibaldi e daquela que ficará na mente do viajante, para contar a filhos, netos e bisnetos.