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A guerra não acabou

Centrais sindicais mantêm pressão pelo veto à Emenda 3 e para que o poder da fiscalização seja tão eficaz para a legislação trabalhista como para a arrecadação da Receita e da Previdência

paulo pepe

A manutenção do veto de Lula à Emenda 3 foi um dos componentes políticos da pauta do Dia do Trabalho organizado pela CUT, no Centro de São Paulo

A Secretaria da Receita Federal do Brasil, a chamada Super-Receita, começou a funcionar neste 2 de maio. Gradativamente, o órgão contará com um sistema de informação que permitirá o cruzamento de dados previdenciários e tributários, tornando-se uma poderosa ferramenta de combate à sonegação. Embora as bases de dados permaneçam cada qual no seu quintal – as informações da Previdência no Dataprev e as tributárias no Serpro –, os técnicos da Super-Receita construíram uma ponte virtual que permite à Receita identificar dados previdenciários e checar se há, por exemplo, contradições entre o que uma empresa deveria recolher e o que de fato recolheu para um ou para o outro órgão. Além disso, para muitos casos, os contribuintes passarão a contar com um mesmo ponto de atendimento para resolver dúvidas ou pendências, seja com o INSS, seja com o Leão.

O principal efeito dessa integração, aposta o governo, é seu potencial de ampliar a arrecadação sem mexer na carga tributária. Para os técnicos, o próprio efeito “psicológico” – o temor de ser flagrado pelo fisco – já está influenciando na arrecadação, que cresceu 10% durante os três meses de vigência da Medida Provisória, quando experiências da fusão foram postas em prática. Ou seja, como não há outra razão lógica, como aumento da atividade econômica na mesma proporção, a Receita acredita que somente a expectativa de fiscalização já começou a mexer com a “consciência” do contribuinte.

Até aí, tudo parecia uma tacada certeira do governo, não fosse um pequeno problema de “redação”: é que, quando a MP que criava a Super-Receita foi apreciada no Congresso, seu texto final contrabandeou uma emenda, a famigerada Emenda 3, que misturou questão tributária com interesses trabalhistas – dos empresários. A emenda determinava que fiscais do Trabalho não poderiam mais autuar empregadores que utilizam contratação irregular de mão-de-obra. Ou seja, na prática a emenda afrouxaria todas as regras que estabelecem direitos básicos dos trabalhadores, uma vez que poderiam ser burlados sem que os contratantes precisassem temer a fiscalização. A “pegadinha” foi detectada. Quando o presidente Lula sancionou a lei da Super-Receita, vetou a Emenda 3.

Novas batalhas

A guerra, porém, não acabou. Batalhas agora continuam sendo travadas no Congresso. A oposição, de um lado, se organiza para derrubar o veto de Lula. De outro, governo e base aliada tentam construir um projeto alternativo para que o veto não precise ir a plenário. Em 25 de abril um suposto cachimbo da paz teria sido aceso, após uma reunião de mais de duas horas no gabinete do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), entre o ministro da Fazenda, Guido Mantega, o secretário da Receita, Jorge Rachid, e líderes partidários.

No caso da emenda, a solução encontrada foi elaborar um projeto para regulamentar o que se chamou de pessoas jurídicas “personalíssimas”, empresas formadas por apenas um trabalhador, nas áreas intelectuais e artísticas – um conceito a definir. Esses profissionais poderiam atuar em empresas como PJs, recolhendo uma contribuição previdenciária, provavelmente de 10%, além do Imposto de Renda habitual.

“Noventa e nove por cento dos trabalhadores, como advogados, dentistas, profissionais liberais, pequenos prestadores de serviço, não serão prejudicados. O que muda é só para o trabalho intelectual e artístico”, afirmou Mantega, logo depois do encontro no Senado. “Estão desobstruídos os canais de negociação entre o governo e a oposição e, como resultado, as votações dos vetos feitos ao projeto da Super-Receita deixam de ser prioridade. A oposição entende o acordo como satisfatório”, afirmou, já no dia 26, o presidente do Senado.

O líder do DEM (antigo PFL) na Câmara, Onyx Lorenzoni, disse que a reunião do dia 25 mudou completamente o cenário. “O grande óbice a qualquer tipo de entendimento era a teimosia de setores do governo, que queriam destruir relações de trabalho legalmente constituídas (por meio das PJs)”, garantiu, convicto de que o veto seria derrubado caso as discussões não fossem retomadas. Também o líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio, saiu da reunião avaliando que as chances de acordo haviam aumentado consideravelmente, mas não abandonou o tom ameaçador: “Se não for possível um acordo, faremos a votação do veto em curto espaço do tempo”. Se não houver acordo e caso o veto de Lula à emenda seja derrubado, o governo já sinalizou disposição em recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF).

josé Cruz/abrCalheiros e Mantega
Calheiros e Mantega buscam acordo entre líderes partidários: surge a figura da pessoa jurídica “personalíssima”

Debate acirrado

No mesmo dia em que o possível acordo foi anunciado, o ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, descarregava sua artilharia no Senado, em audiência conjunta das comissões de Direitos Humanos e de Assuntos Sociais. Para ele, a Emenda 3 criaria uma lacuna na legislação que abriria espaço, inclusive, para o trabalho escravo. “Sabemos que a demanda na Justiça do Trabalho é muito grande. Isso significa simplesmente, em alguns casos, esperar de dois a cinco anos para acionar a fiscalização e fazer cumprir a legislação trabalhista”, dizia Lupi. “Certamente teríamos alguns problemas: facilidade para burlar a legislação trabalhista e tributária e estímulo ao descumprimento dos direitos trabalhistas e terceirizações fraudulentas”, reforçou o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini.

O diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) Antônio Augusto de Queiroz lembra que as tentativas de alterar a legislação trabalhista não vêm de hoje. Começaram logo após a Constituinte, com um projeto do ex-presidente e hoje senador Fernando Collor sobre negociações coletivas, até chegar ao famoso projeto de flexibilização da CLT durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Depois de uma ligeira trégua, veio a Emenda 3. “No limite, qualquer relação de trabalho fraudulenta, desde que se faça por pessoa jurídica, não passa por fiscalização. Quem vai denunciar o acessório para perder o principal, que é a renda?”, questiona o diretor do Diap e analista político.

Queiroz vê sinais preocupantes em relação aos ataques contra os direitos trabalhistas. “Até hoje a presidência da Câmara não considerou a mensagem do presidente da República, de agosto de 2003, para a retirada de projeto de lei que trata de prestação de serviços de terceirização. Já passaram por lá João Paulo, Severino Cavalcanti, Aldo Rebelo, e agora está lá Arlindo Chinaglia, e até agora ninguém a retirou“, lembra. Outro exemplo citado por Queiroz é a recente iniciativa do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) de pedir ao Ministério do Trabalho que examine uma proposta de mudanças nas relações trabalhistas, já batizada de “alternativa à CLT”. No esboço, a carteira de trabalho seria substituída por um cartão magnético, as relações de trabalho não seriam mais submetidas ao Judiciário e empregados e empregadores negociariam diretamente, sem mediação sindical. Enfim, um liberou-geral.

O presidente da Central Única dos Trabalhadores, Artur Henrique, não vê como uma nova redação poderia tornar a Emenda 3 palatável nem acredita que um projeto alternativo tenha trânsito no Congresso. “Essa emenda não existe para garantir nada. Existe para desconstruir. O veto do presidente Lula tem de ser mantido”, alerta. “As formas de vínculo empregatício já são previstas em lei. Assim como a fiscalização permitiu crescimento da arrecadação previdenciária, precisa também assegurar cumprimento dos direitos. É preciso garantir a ação dos fiscais do Trabalho, tanto quanto os da Receita e da Previdência”, defende.

Centrais continuam no ataque à Emenda 3

manifestação

Para reagir à intensidade do lobby empresarial sobre o Congresso, as centrais sindicais prometem persistir em defesa do veto à Emenda 3. A agenda de protestos começou em todo o país em 10 de abril. No dia 23, às vésperas da reunião de integrantes do governo com parlamentares da oposição e da base aliada, ocorreram novas manifestações. Os sindicatos devem voltar à carga em maio, possivelmente no dia 23.
As centrais exigem também que o governador de São Paulo, José Serra, volte atrás da decisão de demitir cinco dirigentes do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, como retaliação à paralisação de uma hora e meia realizada pela categoria em 23 de abril. Em nota conjunta, as centrais CAT, CGT, CGTB, Conlutas, CUT, Força Sindical, Intersindical, Nova Central e SDS consideram as demissões “um ataque a todos os trabalhadores”.
Para Artur Henrique, presidente da CUT, o gesto dos metroviários não foi um ato isolado. “Foi parte de um movimento de todos os trabalhadores. Lamentamos que o governador tenha sido muito rápido em tentar punir quem promove uma luta legítima. A mesma agilidade não foi verificada para punir os responsáveis pelo acidente que matou sete pessoas nas obras da Linha 4 do Metrô, há quatro meses”, criticou.