cultura

A graça está aqui

O tradicional e o moderno se encontram sob as lonas dos circos por todo o Brasil. Alguns aprendem a arte nas escolas que se espalham pelo país. Outros nascem com ela

paulo pepe

Espetáculo Stapafúrdio, do Circo Roda Brasil

A enorme lona colorida não passa despercebida, nem seu contorno de luzes. O circo chegou e trouxe a trupe da alegria. Palhaços, mágicos, equilibristas, acrobatas, dançarinos, contorcionistas e animais exóticos. O mais sisudo espectador não consegue conter o riso quando o palhaço desajeitado faz graça, nem a emoção quando a bela trapezista finge despencar. A alegria não tem idade. A psicóloga Márcia Malverdi, de 46 anos, que não ia ao circo desde criança, se diverte tanto quanto a filha Andressa, 9, no espetáculo Stapafúrdyo, do Circo Roda Brasil, em São Paulo. “Nem lembrava mais o quanto é bom.” Andressa, que já tinha ido ao circo Orlando Orfei, passou em frente ao Roda Brasil e pediu à mãe que a levasse. “Gostei dos dois circos, mas eles têm estilos bem diferentes. No Roda Brasil achei muito engraçadas a dança das águas e as palhaçadas. Os malabaristas também são muito legais”, contou a menina, de olhos fixos nas alturas do trapézio.

Nas capitais ou nas pequenas cidades do interior, o circo continua sendo um grande astro no cenário cultural brasileiro. Depois de passar por altos e baixos com a chegada do cinema e a da televisão, a arte circense se renovou e conseguiu manter um público fiel. É o que garante o pesquisador Mario Fernando Bolognese, membro da Câmara Setorial de Circo da Funarte, ligada ao Ministério da Cultura. “Em muitos lugares ele é a única opção diferenciada, além da benedicta telinha. Transformou-se numa espécie de centro cultural temporário em cidades pequenas, médias e grandes.”

Bolognese foi trapezista do grupo Tenda Tela Teatro na década de 70. Viajou por quase todo o país atrás de circos para escrever o livro Palhaços (Ed. Unesp, 2003). Encontrou pequenos e médios apresentando espetáculos mistos, com habilidades, teatro, shows musicais e de calouros; e os grandes, com os novos grupos teatrais utilizando muita tecnologia, cores e plasticidade, roupagem moderna e luxuosa. Mas a diferença entre os pequenos, médios e grandes está além da estética e da infra-estrutura. Para atender a todos os gostos e bolsos, há espetáculos de 50 centavos a 250 reais, como é o caso do Saltimbanco, do Cirque du Soleil, companhia canadense que está no Brasil até o final de novembro.

Para poder atender um público que o Soleil não contempla, a chilena Sonia Fatima Beltran Diaz cobra de 3 a 8 reais por ingresso do Míni-Circo Condor. “Sempre tive o desejo de ter um circo pequeno para trabalhar em lugares aonde os grandes não vão. Há muitas crianças que nem sabem o que é um circo. Por isso cobro preço popular”, afirma a empresária, que veio parar no Brasil para trabalhar no show do Beto Carrero World. Depois de sair, passou pelo Circo Stancovich e há um ano resolveu investir os 50 mil reais que ganhou por aqui e erguer a própria lona. “Minha família é circense há seis gerações e, mesmo com todas as dificuldades, é muito gostoso mostrar nossa arte.”

Escolas de arte

Não importa se são pequenos, médios ou grandes, tradicionais ou “modernos”. O segredo de qualquer circo é a qualidade dos artistas, construída à base de muito treino, carisma e dedicação. Fabiano Nogueira Coelho, o Fafá, de 24 anos, descobriu seu talento aos 9 anos na Escola Picolino, em Salvador. Com ela, viajou o país e parte da Europa fazendo show de tecido e malabares em banco de trapézio. Hoje trabalha no Circo Escola Picadeiro, em São Paulo, e treina pesado para participar da audição do Cirque du Soleil. “Nunca tive apoio da minha família, todos achavam que circo era para vagabundo. A minha meta é entrar no Cirque du Soleil. Quem sabe?”

O malabarista Adriano José Bitu dos Santos, de 20 anos, também dá aula no Picadeiro, mas, ao contrário de Fafá, prefere as acrobacias em solo firme: “Nem todo circense encara as alturas. Sinto uma emoção tão grande quando entro no picadeiro que me transformo, a mão chega a suar, aí é perigoso deixar escorregar as claves. Você ainda tem de envolver o público no seu show. Essa é a arte”

Gilberto

Além dos riscos de se machucar e das mãos calejadas, alguns artistas são obrigados a parar ou mudar de atividade por causa da idade. O professor de trapézio Gilberto Alves, de 45 anos, cresceu no picadeiro. O pai era palhaço e trapezista, a mãe bailarina e o tio equilibrista. Seu filho Alexander trabalha numa companhia italiana. O circo e o trapézio são sua vida. “Agora dou aula porque a idade avançou. Cheguei a fazer o máximo no trapézio, dei triplo salto mortal e quatro voltas, mas os exercícios eram muito pesados e tive de parar”, lamenta, enquanto mostra na mão direita a tatuagem de um trapézio dentro de um coração com asas.

Assim como o Circo Escola Picadeiro, a Picolino, em Salvador, a Escola Nacional de Circo/Funarte, no Rio de Janeiro, entre outras, as escolas de circo começaram a surgir no país há mais de 20 anos e delas resultaram as principais mudanças do segmento. Antigamente, os cursos eram mais procurados por artistas interessados em aprender ou aperfeiçoar técnicas circenses, mas hoje esse perfil mudou bastante. Estudantes e profissionais liberais das mais diversas áreas buscam o circo para praticar atividades físicas com mais diversão e ludicidade. Ele funciona como uma alternativa às academias de ginástica.

A estudante Júlia Chama, de 19 anos e há três nas aulas de circo no Galpão do Circo, em São Paulo, treina seu equilíbrio no “arame”. Anda no cabo de aço a 1,2 metro do chão como que em terra. Com as mãos erguidas, desenha delicados movimentos em busca do equilíbrio. Júlia diz não ter pretensão de seguir carreira. “Faço as aulas apenas porque gosto, me sinto bem. Sempre fugi das aulas de Educação Física, odeio esportes e não faço circo porque quero ficar malhada, mas sim porque gosto dessa linguagem. Minha vida não é o circo, eu vou dar aula de História”, afirma.

Enquanto Júlia se equilibra, no andar de baixo da escola a atriz Patrícia Leonardelli, de 31 anos, aprende a desafiar os limites do corpo no chão, com as acrobacias que lembram exercícios de ginástica olímpica: pernas para cima, mãos numa espécie de cavalete chamado tlinto e, como se fosse muito fácil, a reversão, uma “estrela” em que a pessoa cai de pernas fechadas. Patrícia também é bailarina, mas garante que a leveza do balé não se encaixa no mundo circense. “Para tudo aqui é necessário ter força, e você acaba ganhando musculatura e um corpo não tão delicado. Eu mesma perdi sutiãs porque minhas costas ficaram gigantes. Mas eu não troco o circo por nada. Ele me ajuda muito a pensar cenas para o tea­tro de uma outra forma.” Apesar de ganhar a vida como atriz, Patrícia já fez alguns eventos em empresas e festas com a linguagem circense.

A presença feminina é muito forte nessa área. Quando começou, o estudante Ricardo Geiser, de 17 anos, achou estranho ter de vestir a calça justa e fazer as aulas ao lado de tanta mulher. Mas isso logo passou e, depois de um ano e meio de treinos, decidiu se profissionalizar assim que terminar o ensino médio, no próximo ano. Ele treina acrobacia e acrobalance, os números de pirâmides humanas. “Meus pais queriam que eu fizesse faculdade numa área que gostasse e pudesse ganhar dinheiro. No começo, eles estranharam minha decisão. Mas logo viram que pode haver oportunidade para quem é bom.”

PicolinoGraça congênita

Mas nem só acrobatas, malabaristas e contorcionistas fazem aulas nas escolas de circo. A arte de fazer rir também pode ser ensinada em oficinas e cursos de palhaços das centenas de escolas espalhadas pelo Brasil.

Em alguns casos, a graça é congênita. Roger Avanzi nasceu no circo e virou o palhaço Picolino, personagem que herdou do pai. Ele confirma a tese do pesquisador Mario Bolognese de que o paradigma do palhaço tradicional está morrendo. Para o acadêmico, o palhaço está se tornando um intelectual, um poeta, e adotando o inverso daquilo que é grotesco, corporal, improvisado, desajustado.

Avanzi garante que foi muito feliz como Picolino. “Comecei a trabalhar no circo nove meses antes de nascer, na barriga da minha mãe. Hoje sou um dos últimos palhaços tradicionais, se não o último. Circo é sinônimo de mudança. Desde de que circo é circo, ele muda e nunca vai morrer. Enquanto houver criança, haverá palhaço e, enquanto houver palhaço, haverá circo”, garante, do alto de seus 83 anos de idade e, segundo ele mesmo, de experiência.