perfil

A eternidade de Getúlio

Da chegada ao poder ao tiro fatal que o eternizou como mito nacional, não houve gesto político de Getúlio Vargas que não tenha deixado seu impacto na história do Brasil

Fundação Getúlio Vargas/cpdoc

A política econômica de Vargas teve o Estado como o principal agente da modernização do país

Getúlio Vargas suicidou-se em agosto de 1954, mas continua sendo uma das figuras políticas mais vivas na memória nacional. Ora lembrado como “pai dos pobres”, ora como “manipulador das massas”. Grande ditador ou grande estadista. Seja como for, ele foi o governante de maior popularidade que o Brasil já teve. O mito é pauta obrigatória na agenda de quem investiga a história do Brasil. A professora Angela de Castro Gomes, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, analisa em seu trabalho A Última Cartada que o prestígio alcançado por Vargas resulta de sua obsessão pela construção de um Estado forte como estratégia de desenvolvimento.

A unidade nacional, demanda histórica para as décadas de 30 e 40 do século passado, acaba personificada na figura do líder. A propaganda de massa visando à construção do mito intensificou-se durante o Estado Novo (1937-45). O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, exercia forte censura sobre a imprensa com a finalidade explícita de proteger e promover a figura do presidente. O “pai dos pobres” soube como poucos se comunicar com o povo. Datas nacionais, como o 1º de Maio, eram um grande canal de acesso entre Vargas e o povo – sobretudo os comícios e sua transmissão radiofônica.

Porém, toda essa propaganda só teve efeito junto à população porque foi amparada na realização de políticas públicas pela primeira vez postas em prática no país, como lembra Angela de Castro. Na esfera do trabalho, uma nova forma de relacionamento entre os patrões e trabalhadores passou a ter a intervenção direta do Estado – com a criação, já em 1931, do Ministério do Trabalho, que se atribuiu poderes não só de formular leis, mas também de abrir e fechar sindicatos de classe, bem como de substituir suas diretorias de acordo com a circunstância. Com uma mão, Vargas atendia reivindicações dos trabalhadores; com a outra, monitorava rigorosamente o movimento operário para impedir guinadas à esquerda.

E assim avançava o Estado Novo. Gradualmente, ampliava direitos trabalhistas, como a regulamentação da jornada de trabalho, férias, do trabalho das mulheres e dos menores e a expansão da previdência social a diversas categorias de trabalhadores. Em igual ritmo, aprimorava os mecanismos de tutela sobre as relações de trabalho, com a criação da Justiça do Trabalho, em âmbito nacional; do imposto sindical, para garantir a sustentação financeira de sindicatos mesmo que sem associados; e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sistematizando a legislação trabalhista até então vigente.

Como a democracia e a participação social nas decisões do governo não estavam em voga, a introdução de direitos trabalhistas – reclamados pelo movimento operário desde o início do século 20 – foi capitalizada por Vargas. Ainda que a legislação tenha ficado restrita aos trabalhadores urbanos – excluindo a então maioria dos trabalhadores do campo –, até mesmo na população do meio rural havia a sensação de que, enfim, direitos do povo começavam a ser atendidos.

Na realidade, o mito Vargas é formado por muitas imagens, às vezes contraditórias. “Em muitos aspectos, tanto o ditador como o presidente eleito Getúlio Vargas realizaram reformas na economia e na sociedade brasileiras, sendo que muitas de suas diretrizes alcançaram sucesso e continuidade no tempo”, observa Angela de Castro Gomes.

Último ato

Ainda que a CLT seja considerada o maior legado do varguismo, é preciso lembrar também que a política econômica de Vargas teve o Estado como o principal agente da modernização do país. Sua meta principal foi superar o atraso por meio do impulso à indústria de base. São então nacionalizados vários ramos de produção, destacando-se a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional (1941) e a da Petrobras (1953).

A herança da era Vargas continua sendo uma referência fundamental para a compreensão da história política brasileira. Durante décadas, sua personalidade conseguiu gerar repulsa à direita e à esquerda. Hoje, parte da esquerda já reavalia o papel de Getúlio Vargas na história, sobretudo em virtude das conquistas decorrentes de seu traço nacionalista e do papel pioneiro atribuído ao Estado. A polarização entre o Estado influente e ativo e o ideário neoliberal – com sua tese de liberalização máxima e Estado mínimo –, favorece essa revisão.

Para a cientista política Maria Victoria Benevides, professora de Sociologia da Faculdade de Educação da USP, o importante é enfatizar que Getúlio Vargas tinha um projeto para o país. “Aquele desenvolvimentismo dele e de Juscelino Kubitschek não é mais possível atualmente. No entanto, creio que vale a pena tomar seu exemplo para exigir um projeto de desenvolvimento global – econômico e social – e sustentável, o que faz muita falta hoje. Vargas foi autoritário e uma figura carismática, mas o grande estadista brasileiro do século 20 foi ele. Certamente é a melhor lembrança para esses tempos de neoliberalismo.”

O derradeiro ato político de Vargas foi seu suicídio na madrugada do dia 24 de agosto de 1954. Sua morte provocou enorme comoção. O tiro perpetuou o mito.