entrevista

A espinha ereta do guerrilheiro

Para Juca Kfouri, a mídia esportiva não é frouxa com as mazelas do esporte: é promíscua. “Uma semana de jornalismo correto no Jornal Nacional derrubava o Ricardo Teixeira”, diz

Jailton Garcia

O ex-jogador Tostão, hoje cronista esportivo, escreveu outro dia que Juca Kfouri é “mestre do jornalismo esportivo”. Para José Carlos do Amaral Kfouri, o Juca, um louco por futebol, o elogio pode valer tanto quanto um magnífico salário. Aliás, Juca é categórico em dizer que o fato de “nunca ter curvado a espinha e nunca ter ferido um princípio” é seu grande patrimônio profissional. Mesmo a “grande” mídia, que ele considera cúmplice dos conchavos que atravancam o desenvolvimento do esporte no Brasil, precisa de sua credibilidade para garantir um Ibope. Não é à toa que ele está no rádio (CBN), na TV (ESPN Brasil), no jornal (Folha) e na internet (UOL), e já comandou revistas como Placar (1979 a 1995) e Playboy (1990 a 1994). Aos 58 anos de idade e 38 de profissão, sempre jogou no ataque. E garante que, em essência, é hoje rigorosamente igual ao jovem que aos 18 anos queria pegar em armas para enfrentar a ditadura. Seu nome de guerra, Bira, aludia ao jogador de basquete Ubiratan, do Corinthians e da seleção brasileira. Juca admite que muita coisa mudou dos dias de clandestinidade para cá. Mas ainda vê o permanente embate entre as pessoas que não se conformam com a exclusão social e as que a consideram inevitável. E não acredita em jornalista que não queira melhorar o mundo.

Fale um pouco sobre o surgimento do “Bira”, o militante. E o que resta de Bira em você?
O Bira é fruto de um momento, de uma geração. Quem tinha o mínimo de caráter e informação tinha de fazer o que a minha geração fez, combater a ditadura. Hoje é muito fácil você dizer que era equívoco partir para a aventura da luta armada. Mas eu diria que era uma exigência da sensibilidade você resistir à ditadura. Acho que sempre a gente precisa ponderar que não são os militares os responsáveis pelo golpe de 64. Boa parte da nossa elite é responsável também, elite que até hoje infelicita o Brasil. Aos 58 anos, naquilo que é essencial, eu diria que sou rigorosamente igual ao que eu era quando tinha 18. Todos os conceitos podem ter mudado, o que é ser de esquerda, o que é ser de direita, os sonhos, o fim do comunismo, a queda do muro de Berlim, mas eu acho ainda que o mundo se divide entre as pessoas que não se conformam com a exclusão social e aquelas que acham que isso é inevitável. Virei jornalista, com militância na imprensa esportiva, para tentar fazer com que o esporte brasileiro seja minimamente decente. Quer dizer, antes de ser jornalista eu sou cidadão e eu não acredito em jornalista que não queira melhorar a esquina da rua onde mora, a cidade onde vive, o país onde nasceu e, com o perdão da pretensão, melhorar o mundo.

E sua passagem da Ciências Sociais para o jornalismo foi calculada? Você começou na Abril, não é?
Sim, arquivista e pesquisador do Departamento de Documentação. Fui lá para atender a revista Placar, que ia nascer. Continuava com meu projeto de fazer tese de mestrado sobre futebol como fator de mobilização social, e não de alienação, como tratava a esquerda. Em 1970 eu estou na Ciências Sociais da USP. Imagina assistir à Copa do Mundo torcendo pelo Brasil? Achavam que eu era um puta alienado.

E você ainda tentou se infiltrar no Exército?
Hoje só estou vivo porque existiu uma figura chamada Joaquim Ferreira Câmara, o Toledo, que era o segundo da ALN, depois do Marighela. Ele me convenceu a me alistar no CPOR, fazer a Infantaria, aprender a atirar, táticas de guerrilha etc. Quando apareceu esse emprego, fui conversar com ele que eu iria romper o compromisso. Diferente do que o filme O que é isso companheiro? enseja, ele era um encanto. E disse: “Se você for ler o jovem Marx, terá um momento em que diz: ‘Não queira resolver os problemas dos outros antes de resolver os seus’”. Saí do exército, comecei a trabalhar na Abril, subo pra redação, surge o convite da Placar para ser chefe de reportagem. Nessa altura já tinha acabado a ALN e eu estava no Partidão. Só não fui preso porque o Vlado (Vladimir Herzog, morto em 1975) morreu. Eu estava na lista (de jornalistas ligados ao clandestino PCB que seriam presos). Minha militância no Partidão pára quando é legalizado. Não achei graça nenhuma (risos).

Na política muita coisa mudou após a abertura. E no futebol, muita coisa mudou também?
Sou um afortunado de poder dizer que vi jogar o Garrincha, o Pelé. Nem por isso eu olho pros Ronaldinhos, pro Zidane, pro Kaká e vou dizer “ah, não serve para amarrar a chuteira do Rivelino”. São tão bons quanto. O Pelé é o Pelé, é um degrau acima, mas esses caras geniais que tem hoje são do nível daqueles do Platini, do Maradona. É a minha visão. Mas simplesmente os caras não param. Ser corintiano era ter certeza de que o Rivelino ia jogar no Corinthians 10 anos, palmeirense sabia que o Ademir da Guia ia jogar lá 15 anos. É essa coisa que o palmeirense tem com o Marcos, o são-paulino com o Rogério Ceni, mas com quem mais? O Pelé, que era o que era, jogou no Santos por 20 anos. Hoje a discussão na seleção é se convocaram Fulano do Barcelona ou Cicrano do Ajax. Tem um texto do Eric Hobsbawm que mostra como a globalização conseguiu transformar esses caras em cidadãos do mundo, perderam o vínculo com suas pátrias, mas precisam do reconhecimento da pátria para se transformar em internacionais. Precisa jogar na seleção para fazer fortuna lá fora, mas deixou de ter o vínculo com o que é nacional. Dialética interessante, né?

A imprensa esportiva é tímida com as mazelas?
Ela não é tímida. É promíscua, é cúmplice. A imprensa esportiva, principalmente de TV aberta, não existe. Não se pode contar quem é o senhor Nuzman (presidente do Comitê Olímpico Brasileiro), porque há o interesse na compra de Olimpíada e Pan-americanos. Não se pode contar quem é o Ricardo Teixeira (presidente da CBF), porque tem a seleção, o Brasileiro, a Copa do Mundo. É entretenimento, não é jornalismo. Eu acredito que uma semana de jornalismo correto no Jornal Nacional derrubava o Ricardo Teixeira. Durante todo o tempo que o Brasil conviveu com a inflação, nunca ninguém a defendeu. Mas se todo mundo fosse contra mesmo, ela acabava. Alguém devia ganhar com ela. Se você fizer um seminário para discutir o futebol brasileiro com jornalistas, jogadores, cartolas, todos vão fazer um diagnóstico pavoroso. Mas por que não muda? Alguém ganha com isso. Porque você acha que o Eurico Miranda mandou tantos anos no Vasco? E o Ricardo Teixeira na CBF? E o Dualib no Corinthians, e o Mustafá do Palmeiras?

E como você alcançou uma condição profissional confortável mesmo remando contra essa maré?
Essa é a pergunta que eu mais ouço quando vou falar em escolas de Jornalismo. Eles me falam “ah, para você é fácil falar que não faz propaganda, você é o Juca Kfouri”. E eu digo para eles: “Eu sou o Juca Kfouri 38 anos depois de ter começado na profissão, eu era só o Juca antes disso”. Fiz muita cagada na vida, todas que fiz e percebi tratei de tentar limpar. Eu nunca fiz nenhuma propositalmente. Nunca curvei a minha espinha, nunca feri um princípio meu. Então, as pessoas não chegam em você para fazer proposta indecorosa. Então a credibilidade passa a valer mais.

O profissional ético também dá Ibope.
É isso. Isso se conquista, sabe como? É aquilo que o Millôr Fernandes diz: “Quem se curva diante dos poderosos, mostra a bunda aos oprimidos”. Tenha uma espinha inflexível, é simplesmente isso. Agora, sabe o que eu digo para a garotada? “Faz assim que eu ‘se’ dei bem”. Vou ficar rico? Nunca. Mas tenho muito mais do que eu achei que teria no começo da profissão. Teve alguns momentos em que eu achei que eu era uma exceção. Hoje tem muito mais gente. E vou te falar uma coisa sobre isso de jornalista não gostar de levar furo. Eu adoro levar furo, adoro quando vejo algo que não fui eu que fiz. Quanto mais gente melhor.

O Estado poderia ser mais incisivo em relação ao esporte ou tem mais com que se preocupar?
Acho que poderia. Nos tempos da redemocratização, o idiota do Collor foi lá ver o Brasil estrear na Copa, escolheu o Zico para ser seu secretário de Esportes, o Zico logo percebeu que andaria muito pouco e caiu fora. Fernando Henrique, você conversava com ele de futebol, ele arregalava os olhos e era até capaz de entender que ali tinha alguma coisa sociologicamente interessante, mas te perguntava quem era a bola. Mas foi no governo Fernando Henrique que saiu a Lei Pelé – e que se estuprou a Lei Pelé –, e se gestou o Estatuto do Torcedor e a Lei da Moralização do Esporte.

No Congresso ou no Executivo?
O executivo propôs. São as duas únicas leis aprovadas por unanimidade nos anos FHC. O Lula teve como generosidade assinar essas duas leis como as duas primeiras de seu mandato. Antes disso, dois dias depois de ter ganhado a eleição, ele me telefonou, pediu para conversar. Ele me disse: “Juquinha, eu preciso até o dia da minha posse de um plano de política esportiva no Brasil porque nós não temos”. Em 25 dias, juntamos um grupo de quinze pessoas, que tinha Bebeto de Freitas, Sócrates, Paula, Ana Moser. Fizemos um projeto de 60 páginas de inclusão social por meio do esporte. A Constituição diz que esporte é um direito do povo e que é dever do Estado dar meios para que a população o pratique. O conceito é esse. Ele pegou, fez questão de receber em uma solenidade pública formal, entregou para o Agnelo (Queiroz, que seria o ministro) – o PT nunca deu palpite na política de esportes do governo Lula, aparelhado pelo PCdoB. E no dia em que o Lula ia assinar aquelas duas brilhantes leis, começou o discurso literalmente assim: “Nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil o torcedor é tratado feito gado”. E terminou dizendo mais ou menos: “A presença do Juca Kfouri aqui é para representar a crônica esportiva que por todo esse tempo foi perseguida pela cartolagem que nos infelicita”. Saí de lá esmurrando o ar. Pensava: “Estão fodidos, acabou, esse tem o fundilho das calças polido pelas arquibancadas, é um corintiano que sabe quem é A, B, C e D”. Seis meses depois, estava de braços dados (com Ricardo Teixeira)… O poder de sedução dessa gente do futebol…

Você chegou a ser convidado para ser ministro.
Na verdade, não existia Ministério. O Fernando Henrique me convidou para ser secretário de Esporte. Falei: “Professor, não vou. Primeiro, não tenho o menor talento para isso, só vou criar caso para o senhor. Segundo, tenho quatro filhos e um padrão que como secretário não dá para manter (e não sou ladrão…). Sabe o que aconteceria se eu fosse secretário de Esportes? Na hora que João Havelange ou Ricardo Teixeira quisesse falar com ele passaria por cima de mim. Ia dar merda. Acho que sou mais útil sendo jornalista. Para mim o ministério tinha de ser do esporte para a terceira idade, para as crianças carentes, o esporte escolar. A OMS mostrou que a cada dólar gasto com esporte economiza-se três com a saúde pública. Com a habilidade do brasileiro eu ponho em centro de excelência da iniciativa privada um bando de moleques que vão ser campeões. Você sabe quantos remadores da equipe olímpica vêm da região amazônica? Nenhum! Aquela molecada que com 5, 6 anos vai para a escola remando, nunca ninguém foi lá olhar. Eu só estaria preocupado com isso.

Apesar da dificuldade que você aponta, fazer política não sendo “da política”, o ministro Gilberto Gil tem mostrado que dá para fazer um bom trabalho.
Sem dúvida. Estou de pleno acordo com você. Por que o Gilberto Gil consegue aquilo que o Orlando Silva e o Agnelo Queiroz não conseguem? Porque esses precisam se fazer na vida. E o Gilberto Gil está feito.

O Juca não está feito?
Primeiro, não tem a mesma dimensão. Segundo, atingiria interesses muito maiores do que os que são atingidos pelo Gil. O Gil pode falar com qualquer um deles de igual para igual, na área de cultura e tal. Eu, no mundo do esporte, não.

Qual “furo” foi mais divertido, o escândalo da lotérica ou ter descoberto o Carlos Zéfiro?
Sem dúvida nenhuma o do Zéfiro. Ali eu acho que é uma demonstração de como, muitas vezes, se entende mal o que é o tal do jornalismo investigativo. Jornalismo investigativo não é necessariamente de denúncia. A “descoberta” foi convencer o Alcides Caminha a deixar publicar a matéria, mas acabou fazendo bem para ele. A matéria teve repercussão, ele ganhou fama, foi paraninfo dos alunos de comunicação da UFRJ daquele ano. Morreu em março do ano seguinte. Mais seis meses ele teria morrido e provavelmente ninguém saberia hoje quem ele era, a não ser que algum filho contasse, mas aí ficaria a dúvida se era verdade ou não. (Carlos Zéfiro era pseudônimo de Alcides Caminha, pioneiro dos chamados “catecismos”, que “influenciaram” gerações com seus gibis de sacanagem vendidos clandestinamente nos anos 1950/60/70. Foi descoberto pela Playboy em 1991. Caminha é também compositor. A Flor e o Espinho – “tire esse sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor” – é dele, com Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito.)

Você levou a discussão da camisinha para a redação da Playboy, não foi?
Quando eu entrei lá, no primeiro mês, deparei com uma matéria sobre sexo grupal sem nenhuma referência a camisinha. Eu disse pro chefe de redação: “Vocês estão malucos? É perigoso”. Aí ele veio com a conversa que era “política da Playboy internacional não associar sexo a doenças, a morte”. Eu levei a questão para cima e ouvi deles que era isso mesmo. Então falei “tá legal, vocês vão precisar de outro diretor, eu não vou ser cúmplice disso aí”. O máximo que eu consegui foi não publicarem a matéria imediatamente. Diante da minha irredutibilidade devem ter começado a pensar “será que esse moleque é louco?”, “ou será que o que ele está falando faz sentido?”. Quando liberaram para fazer a matéria, ela ganhou um prêmio da Organização Mundial da Saúde. E as Playboys do mundo inteiro passaram a falar sobre preservativos. Mudou a forma da revista. Foi também um período em que a revista mais investiu em bons jornalistas. Eugênio Bucci, Nirlando Beirão, Fernando Morais, Fernando Pacheco Jordão, Ricardo Boechat, Ruy Castro… Com esse time é fácil.

Você diz que é cidadão antes de jornalista. É também corintiano antes de jornalista?
Corinthians é outra coisa. Eu nasci corintiano, herança de pai. É um traço meu ser corintiano, como é ser brasileiro, paulistano, enfim. Torço mais pelo Corinthians do que pela seleção brasileira, mas isso não é novidade. Acho que você também torce mais pelo Palmeiras.

Até em jogo amistoso…
O que eu posso garantir é que não me atrapalha na profissão, nem um pouco, o fato de eu ter um time. Também não tenho essa coisa, que eu acho meio miserável, que é moderna, que a minha alegria é a sua tristeza. Eu torci pelo Palmeiras contra o Manchester United, eu torci pelo Palmeiras na Libertadores, vou torcer pelo Fluminense hoje. Falam-me “tá maluco? Mais um campeão da Libertadores antes do Corinthians?” Não estou nem aí. Torci para o São Paulo. Até porque não tem como não torcer pelo Marcos, pelo Telê Santana.

Você não acha que o Brasil tem espaço para crescer, com mais educação, mais inteligência, numa retomada do processo cultural interrompido em 1964, e que isso vá refletir também no mercado editorial?
Em 1995, a Folha vendia aos domingos um milhão de exemplares. Hoje, vende 480 mil. Em algum momento haverá uma retomada, haverá até uma pressão ao jornalismo diário impresso, cujo papel será o de aprofundamento, porque é bobagem competir com internet. O El País, por exemplo, faz isso brilhantemente na Espanha e aqui ninguém está fazendo. Aqui, se o Papa morre ontem, a manchete hoje é: “Morreu o Papa”.