em transe

A era digital das luzes

Digitalização de acervos e preservação da produção coletiva crescem e ampliam possibilidades educacionais e culturais na rede

divulgação

O mês de julho produziu um marco histórico para a cultura brasileira. No site da biblioteca Brasiliana, projeto da Universidade de São Paulo, que vem trabalhando sobre o acervo do bibliófilo José Mindlin, foram publicadas as primeiras edições de todas as obras de Machado de Assis.

Escrevo enquanto folheio, em PDF, Chrysalidas, o primeiro livro de poesias do bruxo do Cosme Velho. Como a maioria dos cidadãos, eu jamais teria acesso a essa preciosidade. E agora ela está aqui, nas minhas mãos.

Os mais entusiasmados defensores da internet costumam compará-la a uma biblioteca infinita. Mencionam, por exemplo, o escritor argentino Jorge Luis Borges e sua Biblioteca de Babel, criada no livro Ficções, cujos corredores e galerias não têm fim. Essa comparação carrega grande dose de desejo. No entanto, sonhos podem acontecer.

O projeto da Brasiliana é um entre vários esforços para tornar acessível o conhecimento que se produz no Brasil e no mundo. Este ano, a Unesco lançou a Biblioteca Digital Mundial (www.wdl.org/pt), que reúne esforços de bibliotecas de todo o planeta.

Esse empenho mundial começou em 2005, por iniciativa da Biblioteca do Congresso dos EUA, e envolve atualmente mais de 30 instituições mantenedoras de acervos. No Brasil, quem participa dessa iniciativa é a Biblioteca Nacional, cuja sede fica no Rio de Janeiro.

Os conteúdos da Biblioteca Digital Mundial estão disponíveis em árabe, chinês, inglês, francês, português, russo e espanhol. No texto oficial de apresentação, os organizadores afirmam que pretendem buscar qualidade, e não somente quantidade. De fato, ainda são poucas as opções. Do Brasil, por exemplo, são 157 itens.

Entro em um desses itens. Acabo de visualizar fotografias da coleção pessoal de dom Pedro II, entre elas a de um aqueduto construído pelo imperador e inaugurado em 1880. A imagem está diante de mim. Posso aproximá-la de meus olhos, procurar detalhes. Também tenho ao meu lado os dados e metadados. Entendo onde estou e os links me permitem novas descobertas.

A biblioteca Brasiliana da USP e a Biblioteca Digital Mundial comungam do esforço notável de produzir interfaces amigáveis ao usuário comum. Mais que reunir o acervo em listas infinitas, com dados incompletos (como ocorre normalmente), o que essas experiências fazem é transpor para o meio digital as obras que circularam fisicamente (em alguns casos, recriando-as).

Na Brasiliana, obras integrais em baixa e alta resolução, como as de Machado de Assis, estão vindo a público semanalmente. A princípio, oferecem acervos de domínio público, cujos direitos de propriedade já expiraram. No entanto, um debate central sobre o direito legítimo dos cidadãos de acessar obras “esgotadas” ou com finalidade pública vem ganhando força.

A era eletrônica da cultura, do rádio e da TV foi absolutamente negligente com a memória. Como fazer, por exemplo, para assistir a um programa da Rede Globo que foi ao ar em 1989? Não existem acervos públicos com esse fim. Nos anos 1990, com o avanço da digitalização e o crescimento da internet, alguns teóricos começaram a falar em uma era digital das sombras, na qual todo o conhecimento humano seria produzido para se dissipar.

Agora, o cenário começa a se inverter. Os esforços mundiais no sentido de garantir a preservação da memória estão crescendo, grandes instituições públicas e privadas despertaram para o tema, e isso pode originar uma era digital das luzes, na qual, efetivamente, todo o conhecimento esteja ao alcance de todo e qualquer ser humano.

Iniciativa do Ministério da Educação, o portal Domínio Público foi lançado em 2004, com cerca de 500 obras. Hoje, conta com mais de 120 mil itens: www.dominiopublico.gov.br.