A dura hora da partilha

É difícil entender quem tem razão na polêmica disputa pela divisão dos royalties do petróleo. Até mesmo entre interessados parece faltar conhecimento sobre o conceito do pagamento dos ditos cujos

Os estados produtores não prestam contas de onde gastam os royalties (Foto: Wilson Dias/ABr)

Diz a sabedoria popular que “em casa onde falta pão, ninguém tem razão”. Algumas vezes, no entanto, a discórdia surge na fartura e, mais precisamente, na hora da partilha. É o que acontece no Brasil com a disputa pela divisão dos royalties provenientes da exploração e produção de petróleo. A prática vem desde 1953, quando, no governo de Getúlio Vargas, foi aprovada a lei que instituiu o monopólio do petróleo e criou a Petrobras. O objetivo era compensar estados, municípios e territórios afetados pela exploração e produção do óleo, gás natural e xisto betuminoso. Por afetados entenda-se: locais onde a extração, produção ou transporte das matérias-primas ocorram de forma direta, acarretando riscos sociais e ambientais e necessidade de investimentos em logística e infraestrutura.

Há 60 anos, a produção brasileira era de 2 mil barris por dia. Com o tempo, cresceu sobretudo quando a Petrobras passou a dominar tecnologias de exploração em alto-mar. As sucessivas descobertas de poços a partir da década de 1970 configuraram um quadro em que os estados litorâneos do Sudeste (RJ, ES e SP) se tornaram responsáveis pela quase totalidade da produção nacional. As regras foram sofrendo alterações, mas mantendo a essência. A Constituição de 1988, em seu artigo 20, “assegura aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios (…) participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração”.

No ano seguinte, a Lei nº 7.990 passou a determinar que “a compensação financeira pela exploração de recursos minerais, para fins de aproveitamento econômico, será de até 3% sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral, obtido após a última etapa do processo de beneficiamento adotado e antes de sua transformação industrial”. Essa lei estabelece ainda que “a sociedade e suas subsidiárias ficam obrigadas a pagar a compensação financeira aos estados, Distrito Federal e municípios, correspondente a 5% sobre o valor do óleo bruto, do xisto betuminoso e do gás extraído de seus respectivos territórios, onde se fixar a lavra do petróleo ou se localizarem instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque de óleo bruto ou de gás natural, operados pela Petrobras”. 

Regras de repartição dos royalties também foram redefinidas naquele momento: descontada a parte da União, 70% caberia aos estados produtores, 20% aos municípios produtores e 10% aos municípios “onde se localizarem instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque de óleo bruto e/ou gás natural”. Em 1997, já no período de forte orientação neoliberal do governo de Fernando Henrique Cardoso, a Emenda Constitucional nº 9 quebrou o monopólio do petróleo no Brasil e preparou o terreno para a aprovação da Lei do Petróleo um ano depois. Esta, em seu artigo 48, definiu que apenas os primeiros 5% do valor relativo aos royalties, correspondente ao montante mínimo, permaneceriam divididos como previa a lei de 1989. A parcela excedente a esses 5% passou a ser partilhada entre União (50%), estados produtores (40%) e municípios produtores (10%).

Outro critério usado na divisão dos royalties passou a ser o local da exploração. Se feita em terras, lagos, rios ou ilhas dentro dos limites de seu território, os estados e municípios receberiam, respectivamente, 52,5% e 15%. No caso de produção localizada na plataforma continental, os estados e municípios confrontantes teriam direito a 22,5% dos royalties e os diretamente afetados, 7,5%. Se a exploração ocorresse na plataforma continental, o Ministério da Marinha entraria na repartição (15%) para viabilizar despesas de fiscalização e proteção das áreas. 

A lei de 1998 trouxe também, pela primeira vez, a obrigatoriedade de aplicação de parte dos recursos dos royalties e determinou que, em qualquer caso, 25% do montante seja sempre destinado ao Ministério da Ciência e Tecnologia “para financiamento de pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico aplicados à indústria do petróleo, do gás natural, dos biocombustíveis e à indústria petroquímica de pesquisas”.

Pré-sal

As regras de distribuição dos royalties jamais sofreram contestação organizada – até a confirmação da existência das reservas de petróleo abundante. Em relação aos 2 mil barris/dia de seis décadas atrás, muita coisa mudou. Até 2020, segundo o plano de negócios divulgado em março pela Petrobras, 2 milhões de barris de petróleo serão retirados diariamente apenas da camada pré-sal mapeada nas bacias de Campos (RJ) e de Santos (SP). E os olhos cresceram.

Em 2009, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva decidiu aumentar o controle da União sobre as novas riquezas descobertas e enviou ao Congresso quatro projetos de lei que puseram fim ao regime em vigor desde a quebra de monopólio, em 1997. Em seu lugar, foi instituído o regime de partilha, que extinguiu ou modificou regras de compensação aos estados e municípios. Ainda no governo Lula, cresceu no meio político a ideia de que os recursos gerados pelo pré-sal deveriam ser repartidos de forma mais igualitária entre todos os estados e municípios brasileiros, fossem ou não produtores de petróleo. Capitaneado por governadores como Cid Gomes, do Ceará, e Eduardo Campos, de Pernambuco, o movimento político ganhou a Câmara e o Senado, onde uma emenda que determinava a distribuição igualitária dos royalties – conhecida como Emenda Ibsen – foi aprovada, mas acabou vetada integralmente por Lula. 

Já no governo Dilma Rousseff, a batalha política ganhou contornos épicos e envolveu a presidenta, parlamentares, governadores e o Supremo Tribunal Federal. Em busca de um acordo que contemplasse a todos, o Planalto enviou uma proposta que, ressalvada a parte cabível à União (30%), dava nova destinação aos royalties. Os estados e municípios dividiriam 52,5% do bolo, de acordo com os critérios estabelecidos no Fundo de Participação dos Estados e no Fundo de Participação dos Municípios, enquanto a Marinha, os municípios afetados e um Fundo Especial de Meio Ambiente ficariam com o restante.

disputa

O Senado, no entanto, aprovou um projeto do senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), que reduziria a participação da União nos royalties de 30% para 20%, já a partir de 2013. No caso dos estados produtores, cairia de 26,25% para 20% e, nos dos municípios produtores, de 26,25% para 15% em 2013 e para 4% em 2020. Nos municípios afetados pela produção do petróleo, de 8,75% para 3% a partir de 2013 e 2% em 2020. O restante dos recursos dos royalties seria distribuído entre estados e municípios não produtores.

Batalha política ganhou contornos épicos no período Dilma (Foto: José Cruz/ABr)

Na intenção de virar o jogo, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) costurou em comum acordo com o Planalto um projeto que propunha nova divisão. Os estados produtores teriam assegurados 20% dos recursos até 2020, parcela igual à da União. A proposta determinava também que 100% de toda a participação de estados e municípios nos royalties fosse destinada à educação.

Para surpresa de todos, a Câmara derrubou essa projeto e aprovou o do senador Rêgo. A partir daí, cresceram as pressões dos governos de Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo e surgiram as primeiras ameaças de ida ao STF, já que a proposta aprovada no Congresso mexe nos contratos já em vigor, o que fere a Constituição. Diante disso, Dilma vetou os itens que se referiam à mudança nos contratos em vigor e restituiu a exigência de destinação integral à educação. Mas o Congresso derrubou os vetos de Dilma. 

Em seguida, o governo do Rio deu entrada no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que pede a anulação da votação que mudou as regras de distribuição dos royalties. Em 18 de março, a ministra Carmen Lúcia concedeu liminar que suspende a aplicação das novas regras de distribuição até que a ação seja julgada pelo plenário do Supremo. Caberá ao STF arbitrar a disputa entre os estados brasileiros e definir quem tem razão nessa casa onde os irmãos brigam hoje pelo excesso de pão, que ainda não saiu do forno.