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A conquista do sertão

Universalizado pelas várias linguagens da arte, o espaço sertanejo, expressão da nossa identidade, é patrimônio geográfico e cultural do Brasil

masp/divulgação

Quadro da série Retirantes, de Cândido Portinari, do acervo do Masp

No ano que vem comemora-se o centenário do nascimento de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores de todos os tempos e de todas as línguas. Sua obra mais famosa, Grande Sertão: Veredas, publicada em 1956, está traduzida numa dezena ou mais de línguas e é conhecida nos cinco continentes. Ela ajudou a consagrar o sertão – inclusive no Brasil – como algo “brasileiro” e como uma região geográfica situada entre o norte de Minas Gerais e o sul do Piauí e do Maranhão, ladeada, a oeste, pelo Planalto Central, onde fica Brasília, e a leste pela aproximação da orla litorânea da Bahia e dos estados do Nordeste. Mas nem sempre foi assim.

Ao contrário do que se pensa, o sertão chegou de barco no (futuro) Brasil. Não havia sertão por aqui. Os tupis e outros povos habitantes do litoral não conheciam esse conceito. Foram os portugueses que o trouxeram, assim como trouxeram a casa, a cidade, a rua, a igreja, o galo e a galinha, os cachorros, o cavalo, o céu, o inferno.

A primeira vez em que o sertão aportou no (futuro) Brasil foi na pena de Pero Vaz de Caminha, na carta escrita ao rei dom Manuel dando conta de que as caravelas de Cabral tinham chegado a uma terra desconhecida. Caminha escreveu que se olhando sertão adentro (apontando para o interior, a oeste) viam-se terras e árvores a perder de vista. Pronto: assim como as quinas e padrões portugueses, que marcavam a nova conquista, o sertão fora assentado nas terras que Portugal iria ocupar, para o bem e também para muito mal, sobretudo das populações nativas e dos escravos trazidos da África.

Na carta de Caminha o sertão começava onde terminava a areia da praia. De lá para cá, o sertão pôs-se a caminhar, indo cada vez mais para dentro da “nova” terra, cada vez mais longe do litoral, e também foi se modificando. Ainda no século 16, quando o padre José de Anchieta se referia ao “sertón” (pois ele escrevia mais em espanhol, guarani e latim do que em português), ele falava de uma terra bravia, dominada pelos “gentios” (índios não cristianizados), que começava na fímbria das montanhas da Serra do Mar e se perdia terra adentro, sempre para oeste.

Quando o padre Vieira, em seus sermões, se referia ao sertão, já nos anos 1600, falava de uma terra bem distante, para os lados dos interiores da Bahia, do Maranhão, até da Amazônia. Entre esse século e o 18 o sertão passou por uma grande transformação. Era a terra do gentio, de “completamente estranho”, ou a terra “por desbravar”, ainda “por conquistar”. Em 1711 o padre João Antônio Andreoni tentou publicar em Portugal seu Cultura e Opulência do Brasil. Não conseguiu. O rei achou que o livro despertaria cobiça em outros países. A obra só foi publicada no século 19. Andreoni, cujo pseudônimo era Antonil, assim descrevia a vinda de boiadas do interior para o litoral, na Bahia: “Os que a trazem, são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com esse trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado, e outros vêm atrás das reses, tangendo-as, e tendo cuidado para que não saiam do caminho e se amontoem”.

Quer dizer, o sertão estava se tornando um mundo próprio, sim, dono de uma cultura peculiar, de uma produção econômica própria, e do que parecia aos olhos do padre (que era italiano) uma “gente própria”, acaboclada, com “cantos próprios”, que falava até para os animais, atraindo-os para seu destino (que não era dos melhores).

Daí até o século 20, durante a formação da sociedade brasileira, o sertão foi viajando e também se fixando. Lá nos séculos antigos, havia sertões em toda parte, pois a palavra designava essa terra “estranha” ou na sua fímbria, onde ela estivesse, e ela estava por todo lado. A única cidade brasileira chamada Sertão fica no Rio Grande do Sul. E em São Paulo há uma cidade chamada Sertãozinho. Em Ubatuba, litoral norte paulista, um bairro mais distante da praia, colado ao pé da serra, é chamado Sertão da Quina.

Com o tempo e a diferenciação da sociedade brasileira, o sertão foi se restringindo às inóspitas terras pouco povoadas ou da pecuária mais ao norte do país, mas antes da Amazônia. Foi para esse Sertão que viajou Euclides da Cunha, em 1897, para descrever a Guerra de Canudos, o sertanejo e sua terra em Os Sertões, publicado em dezembro de 1902.

O livro consagrou o sertão como um dos espaços privilegiados de formação da identidade nacional. Para o autor, essa identidade era de fato o palco de um conflito extremo, entre uma sociedade deslocada no tempo, isolada, a do sertanejo, e uma outra, aparentemente moderna, litorânea, que voltara as costas para a primeira e a destruíra por incompreensão e desconhecimento. O “Brasil moderno”, que dizimara a cidadela dos camponeses rebelados, afinal não era tão moderno assim, preso a costumes políticos tão violentos como os das terras sertanejas.

Euclides criou uma matriz não só para o sertão, mas para o Brasil, que adentrou e percorreu toda a cultura e a arte do país, concebendo também, ao lado de outras, imagens fundamentais para o autoconhecimento e para a projeção do nosso país diante de outras culturas. Nesse campo, o sertão teve uma “época de ouro”. Isso se deu ao fim da Segunda Guerra, num processo que envolveu a literatura, a música, o teatro, o cinema e as artes plásticas. Bem antes da televisão.

Nos anos 30 e 40 o sertão se recobrira de reivindicações sociais. Levadas ao conhecimento de todos os brasileiros, as condições de pobreza das terras sertanejas foram tema de uma literatura ao mesmo tempo comovida, comovente, combativa e revoltada, como em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Também as artes plásticas se ocuparam dos dramas dessas terras, flageladas pelo latifúndio e pela seca, como no caso dos quadros (Retirantes, por exemplo) de Cândido Portinari, que alcançaram fama mundial.

Ao terminar a guerra, o Brasil entrou num processo acelerado de modernização econômica, política e cultural. Desenvolveram-se enormemente o cinema, o rádio e a indústria fonográfica, com a produção dos antigos discos de vinil, os LPs ou bolachões, em 33, 45 ou 78 rotações por minuto. O teatro passou por uma revolução temática e estética, e a literatura pôs-se mais uma vez a rever a História. Dessa vez tudo aconteceu com alcance mundial, levando junto, nessa viagem espacial e temporal, a paisagem dos sertões brasileiros, transformada em palco de dramas universalizantes.

A indústria fonográfica e o rádio catapultaram para o Brasil inteiro a música de Luiz Gonzaga, Rei do Baião antes que Pelé o fosse do futebol. O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu para o teatro, a pedido de Maria Clara Machado, um “auto de Natal”, Morte e Vida Severina. O auto, de 1952, só chegaria ao palco em 1964, com música de Chico Buarque, e consagraria o Teatro da Pontifícia Universidade Católica (Tuca), de São Paulo, no Festival Mundial do Teatro de Estudantes em Nancy, na França. A fuga do retirante Severino pelo sertão brasileiro tornava-se a imagem da peregrinação do homem despossuído de todos os quadrantes do mundo, em busca de paz e justiça social.

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz, instalada em São Bernardo do Campo pelo empresário Franco Zampari para ser a nossa Hollywood, produz em 1952 O Cangaceiro, de Lima Barreto, com Milton Ribeiro, Alberto Ruschel (grande galã da época), Marisa Prado e Vanja Orico. Ruschel era gaúcho, o que deu uma cor especial ao sotaque do sertanejo. Mas de qualquer modo O Cangaceiro ganhou o prêmio de melhor filme de aventuras no Festival de Cannes, na França. Percorreu o mundo, distribuído pela Columbia Pictures e popularizou a canção Mulher Rendeira, dos tempos e do bando de Lampião e Maria Bonita. O roteiro era do próprio Lima Barreto e da escritora cearense Rachel de Queiroz.

globo filmes/divulgaçãoMatheus Nachtergaele
Matheus Nachtergaele como João Grilo, no filme O Auto da Compadecida

Em 1955 estreava no Recife a comédia O Auto da Compadecida, do paraibano Ariano Suassuna, escrita quatro anos antes. Em 1957 a peça chegava a São Paulo, e tornou-se sucesso nacional, que dura até hoje, com as posteriores transposições para o cinema e a televisão. Na ocasião, estava quente o lançamento do livro de Guimarães Rosa sobre os sertões mineiros. A obra ganhou projeção nacional e internacional pela inovadora concepção lingüística, que mesclava o falar das populações rústicas com neologismos e a criatividade solta do escritor erudito.

Em 1957 se dá a inauguração dos painéis Guerra e Paz, de Cândido Portinari, na sede da ONU, em Nova York. As obras não têm como tema propriamente o sertão brasileiro, mas o levaram junto com o estilo consagrado do autor. Ainda mais que o fato gerou uma repercussão política enorme, porque o governo dos Estados Unidos negou o visto ao pintor, por ser ele membro do Partido Comunista.

Em 1962 o filme O Pagador de Promessas, com Leonardo Villar, Glória Menezes, Norma Bengell, dirigido por Anselmo Duarte, vence a Palma de Ouro em Cannes. Baseado numa peça de Dias Gomes, o filme tem como protagonista o peregrino Zé do Burro, que vai do sertão para Salvador cumprir uma promessa. Pouco depois Nelson Pereira dos Santos adapta para o cinema Vidas Secas, de Graciliano.

Quando Glauber Rocha lança Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964, projeta no mundo uma linguagem cinematográfica original como a de Guimarães na literatura. E o sertão brasileiro já era uma espécie de patrimônio cultural internacional. E assim ficou até hoje, consagrando até mesmo a palavra “sertão” como contribuição brasileira ao vocabulário mundial. A premiada tradução do livro de Euclides para o alemão pelo professor Berthold Zilly, do Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim, tem como título Krieg (luta, guerra) im Sertão. Assentado pelo mundo afora, diga-se “sertón”, “sehhhtao”, “sertáo” ou como se queira, o sertão é mesmo brasileiro.

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