Crônica

A carta de amor

Antônio escrevia cartas de amor, mas nunca as mandava para ela. Só mostrava aos colegas. Um dia me trouxe uma enorme, datilografada em espaço um

mendonça

Houve um ano, acho que 1970, em que cheguei à conclusão de que se desenvolvia um plano para acabar com a qualidade do ensino nos cursos da Faculdade de Filosofia. Os vestibulares foram reduzidos aos chamados “testes objetivos”, aqueles de pôr cruzinhas nas respostas que a gente julga certas. Nenhuma redação, nenhuma pergunta que exigisse que o candidato escrevesse uma frase sequer. Era a festa do “chutômetro”. Entraram muitas figuras esquisitas.

Um deles era um cara com mania de hinos. Logo de cara foi perguntando qual era o hino da Geografia. Dissemos que não havia nada disso lá e ele compôs um, para apresentar na festa de recepção aos calouros. Uma coisa completamente surrealista. Começava com gritos “É geo, é geo, é geo, é geo, é geo É geografia” (pronunciando géo… grafia). Pegou apelido de Geogeo.

Outro foi um logo apelidado de Bíblico, que andava com a Bíblia debaixo do braço, tentando converter os outros (sofreu muitas gozações e desistiu logo de sua pregação).

Outro, ainda, foi o Antônio. Apaixonou-se por uma nissei e escrevia cartas de amor, mas nunca as mandava para ela, só mostrava aos colegas. Um dia veio mostrar uma pra mim, longa, enorme, datilografada em espaço um. Começava com uma coisa do tipo “sonhei que estávamos num bosque encantado, dançando uma valsa…” Eu ia lendo e pensando: – Meu Deus, esse cara é mais louco do que eu imaginava. Acabei de ler, ele perguntou o que eu tinha achado. Desconversei, ele perguntou de supetão:

– Você sabe onde eu posso arrumar um emprego? Estou precisando de um emprego…

Não sabia. Nesse momento chegou o Edson. O Antônio mostrou a carta pra ele, que lia uma frase, olhava na cara do Antônio, com espanto, lia outra… Demorou quase meia hora para acabar a leitura, e o Antônio perguntou o que ele tinha achado.

– Esta, se você entregar pra Keiko, ela vai ficar apaixonada…

O Antônio ficou alegre e perguntou:

– Você sabe onde eu posso arrumar um emprego? Estou desempregado há um tempão…

O Edson era muito mais gozador e cruel do que eu:

– Fale com o professor Aziz. Ele está procurando alguém pra trabalhar num troço aí… – inventou. – Mas, antes de pedir o emprego, mostre a carta pra ele. O Aziz é muito romântico, vai te arrumar emprego na hora!

Ele foi. E nós o seguimos de longe, pra ver a reação do professor Aziz Ab’Saber, que na época era diretor do Departamento de Geografia e a porta da sua sala estava sempre cheia de gente, para resolver problemas. Saía uma pessoa, entrava outra, rapidamente, e continuava aquele bando, numa fila informal, pra falar com ele.

O Antônio foi chegando como quem não quer nada e quando saiu uma professora, antes do primeiro da fila bagunçada entrar, ele pulou pra dentro da sala, deixando todo mundo revoltado. A porta ficou entreaberta e vimos o Aziz recebê-lo.

– Pois não, seu Antônio?

– Leia esta carta – estendeu-lhe o calhamaço.

– Não tenho tempo, diga o que é.

– Leia…

Tanto insistiu que o ocupadíssimo professor Aziz acabou lendo. Lia uma frase e olhava para a cara do Antônio, que continuava impávido, olhando se o professor lia mesmo. E, do lado de fora, olhávamos com expectativa. O Edson tinha pedido pro pessoal fazer silêncio, porque ia acontecer algo interessante ali e valia a pena ouvir. Todo mundo ficou aguardando a reação do professor Aziz. Foi até o fim e, mudo, devolveu a carta pro Antônio, que sapecou:

– O senhor tem um emprego pra me arrumar?

– Tenho, sim… Você pode começar a trabalhar amanhã, como auxiliar de biblioteca?
E ficamos todos de queixo caído.

A versão original desta crônica integra o livro 1968, Por Aí – Memórias Burlescas da Ditadura (Publisher Brasil, recém-lançado)

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi