diplomacia

A arte de desatar nós

A carreira diplomática é uma das mais organizadas, cobiçadas e respeitadas do país e seu prestígio externo está, possivelmente, no melhor momento de sua história

divulgação

Periodicamente o Itamaraty realiza processos de seleção. Os salários estão acima dos R$ 5 mil, mais benefícios

No final de janeiro, a revista alemã Der Spiegel publicou longa reportagem, “Der Grüne Tsunami” (O tsunami verde), associando a produção sucroalcooleira do Brasil ao trabalho degradante. “O Brasil espera fornecer aos motoristas de todo o mundo o combustível do futuro – etanol barato derivado da cana-de-açúcar. Ele é considerado um antídoto eficaz para a mudança climática, mas centenas de milhares de trabalhadores rurais brasileiros colhem a cana a salários de escravos”, escreveu o repórter Clemens Höges. No texto, contrasta declarações do presidente Lula – “O mundo precisa ficar mais limpo, o mundo precisa de empregos” –
com críticas de um padre ligado à Comissão Pastoral da Terra, Tiago, que conduz o repórter pela Zona da Mata de Pernambuco: “Qualquer um que compra etanol está injetando sangue em seu tanque”.

Com a missão de zelar pela imagem e pelos interesses do Brasil na Alemanha, o embaixador Tovar da Silva Nunes é acionado e imediatamente tem de responder à publicação. “O artigo poderia levar o leitor a acreditar que os casos descritos (que sem dúvida são condenáveis) tratam de um problema cotidiano de todos os cortadores de cana no Brasil. Segundo as leis do Código Penal Brasileiro, é um delito empregar alguém sob condições análogas à escravidão”, observa Nunes. “O relatório de 2005 da OIT reconhece os esforços do governo brasileiro na luta contra as condições de trabalho escravo. A situação descrita (na reportagem) lamentavelmente se deve às diferenças regionais existentes desde sempre no Brasil. O governo enfrenta esses problemas de forma resoluta e já vem conseguindo resultados concretos.”

Com sua função geralmente associada a privilégios e glamour, os profissionais da diplomacia são hoje um dos mais importantes elos do diálogo internacional e têm de estar prontos para agir em assuntos de todo tipo. “O diplomata precisa ter grande versatilidade e capacidade de adquirir informação rapidamente na área que se tornar relevante naquele momento. Tem de ser rápido para dominar temas complexos de origem política, científica, econômica ou jurídica”, ensina o embaixador Rubens Ricupero, 72 anos, formando da primeira turma do curso de Diplomacia do Instituto Rio Branco, onde teve como examinadores o escritor João Guimarães Rosa e amigos como os poetas Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto ou o economista Roberto Campos, todos também diplomatas.

Para ilustrar a versatilidade necessária a um diplomata, basta lembrar casos recentes: o do escritor Cesare Battisti, que teve seu pedido de asilo político aceito pelo Ministério da Justiça do Brasil e gerou protestos do governo da Itália, que exige sua extradição para que seja punido por atos de “terrorismo” de que é acusado de ter praticado nos anos 1970; o da advogada brasileira Paula Oliveira, que vive na Suíça e teve suas denúncias de agressão veiculadas pela mídia brasileira negadas por autoridades locais; ou do embaixador brasileiro em Quito, Equador, Antonino Marques Porto, que está orientado a não falar com a imprensa enquanto tenta fechar feridas abertas na boa relação entre os países devido ao calote do governo vizinho a uma dívida contraída com o BNDES para a construção de uma hidrelétrica.

“O diplomata terá sempre pouco tempo para estudar os antecedentes da crise em questão para poder agir. No momento em que tiver de intervir, receberá instruções do governo, mas terá de agir rápido e sozinho para representar o país”, diz Ricupero, que era chefe da divisão de Cultura do Itamaraty quando foi designado para representar o Brasil em Genebra, nos anos 1980, na missão que daria origem à Organização Mundial do Comércio.

A carreira

Eles são cerca de 1.300. Algumas centenas estão espalhadas em embaixadas, consulados, missões ou delegações especiais. Há também os que desempenham funções no Brasil, de administrativas a de formação do próprio pessoal. Os diplomatas brasileiros têm a seu encargo representar o país no exterior e acompanhar a execução da política externa do governo. Internamente, o Ministério de Relações Exteriores (MRE) mantém a Fundação Alexandre de Gusmão e o Instituto Rio Branco, órgãos de apoio e de formação dos futuros profissionais. O ministério é também chamado de Itamaraty –
nome do palácio que foi sede da Presidência da República, no Rio de Janeiro, logo após a proclamação, em 1889, e do MRE, de 1899 a 1970, quando este se transferiu para Brasília, instalando-se em um palácio de mesmo nome.

A carreira diplomática é antiga e de difícil ingresso. Periodicamente o Itamaraty realiza processos de seleção. Exige-se dos candidatos, brasileiros natos, a frequência a algum curso superior (antes predominavam cursos como Direito e Economia, mas hoje não é mais assim, embora essas áreas continuem importantes para a formação dos diplomatas). A seleção tem caráter de concurso público. O curso que se segue tem a duração de dois anos, e o aluno aprovado deve fazer estágio probatório em algum país da América Latina. Os postos da carreira são: terceiro, segundo e primeiro-secretário, conselheiro, ministro e embaixador.

O governo federal mantém uma publicação sobre todos os salários do serviço público brasileiro; por ali se pode ver que o salário-base bruto de um terceiro-secretário era de R$ 5.501,06 em 2008. O de embaixador, R$ 11.776,69. Há aportes de carreira e ajudas de custo, que variam conforme o padrão de vida do país em que o diplomata vai trabalhar. “O profissional tem de estar ciente de que pode levar uma vida confortável, mas não enriquecer”, afirma Ricupero.

A diplomacia brasileira teve várias fases e tendências. As mais recentes, após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria, são explicadas no livro O Brasil nas Nações Unidas, de 768 páginas, organizado pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, hoje servindo no Vaticano. A obra reúne documentos que mostram, por exemplo, o alinhamento ideológico do Brasil com os Estados Unidos na Guerra Fria – e também por interesses econômicos, visando a vantagens e financiamentos em infraestrutura e no processo de industrialização. Como os Estados Unidos se voltaram sobretudo para a Europa e para o Japão, as vantagens não se realizaram.

Depois do governo Dutra (de relativa paralisia e conservador, durante o qual, por exemplo, não se deu um único reajuste de salário mínimo, levando à eclosão de grandes manifestações populares), o segundo governo de Vargas toma uma linha de distanciamento, sem ruptura, em relação aos Estados Unidos e afirma princípios de uma política externa mais independente. Essa política se mantém durante os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, quando o golpe de Estado de 1964, no auge da Guerra Fria e das lutas ideológicas na América Latina, realinha o Brasil aos norte-americanos, o que só começa a ser distendido a partir de 1974, no governo do general Ernesto Geisel.

“Temos sustentabilidade política”

Luiz Felipe de Seixas Corrêa

A Revista do Brasil conversou com o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Em julho de 1964, aos 19 anos, Seixas Corrêa ingressou no Instituto Rio Branco. Como naquela época a carreira diplomática era uma das mais atrativas e se encaixava como uma luva em sua predileção por temas sociais e jurídicos nas relações internacionais, o embaixador nunca se viu pensando em fazer outra coisa. “Sempre tive interesse pela história, em particular pela história do Brasil. E a nossa história, a nossa consolidação como país, sempre esteve muito ligada à diplomacia”, conta.

De acordo com Seixas Corrêa, o prestígio da carreira diplomática vem desde os tempos coloniais, cresce durante o período monárquico, com a demarcação das fronteiras, e chega ao apogeu com o barão do Rio Branco, quando de fato se delimitam todas as fronteiras do Brasil. “Essa carreira sempre esteve ligada à ideia de buscar objetivos nacionais de longo prazo. E nossas negociações sempre, ou quase sempre, chegaram a bom termo”, observa. Para ele, isso tem razões históricas precisas. “Ao contrário de outros países recém-independentes, países jovens, a partir do longo período de Rio Branco o Brasil teve uma carreira diplomática organizada. Isso proporcionou prestígio interno e externo.”

Seixas Corrêa correu vários países. Primeiro atuou na chamada “Divisão da América do Sul”. Depois, na Embaixada da ex-Alemanha Ocidental, em Bonn, na sede da ONU, em Nova York, em Buenos Aires, Washington, Paris. Após a redemocratização, nos anos 1980, tornou-se assessor internacional da Presidência da República, com José Sarney. Trabalhou ainda no México, em Madri e em Genebra e chegou à secretaria-geral do MRE. A partir de 2001 passou a representar o Brasil na Organização Mundial do Comércio. Em 2005 foi nomeado para a Embaixada em Berlim e este ano mudou-se para o Vaticano, onde deverá permanecer até 2012.

Perguntado sobre como lidar com o fato de responder a uma gama tão diversa de governos, desde aqueles do tempo da ditadura até o governo Lula, o embaixador ressaltou que o Itamaraty é uma “instituição permanente”. Isso confere ao diplomata continuidade e um sentido de lealdade aos interesses do seu país, com uma visão ampla de Estado. “Embora tenhamos vivido 21 anos sob um regime de exceção (1964-1985), esses valores essenciais da instituição foram preservados”, afirma.

A vida pessoal é que “não é fácil” e tem de ser sempre preparada para a única circunstância permanente do diplomata: “a certeza da mudança”, o que acaba por tornar as transferências até previsíveis. “O corpo diplomático tem uma certa estabilidade, as pessoas se conhecem, se reencontram em diferentes momentos e lugares”, diz.

Sua mulher, Marilu, também é da carreira diplomática, assim como a filha mais velha, que vive no Canadá. Toda semana eles procuram fazer uma reunião familiar pela internet e pelo menos uma vez por ano todos se encontram, em algum lugar do mundo, conforme as circunstâncias.

O embaixador Seixas Corrêa considera-se satisfeito: “Nosso país já teve vários ciclos de desenvolvimento, mas nunca, como agora, havia reunido três fatores de sustentabilidade: indicadores macroeconômicos mostram um crescimento sustentável da economia; temos a distribuição de renda mais notável dos últimos anos, com o poder aquisitivo da população em geral aumentando, assim como o número de pessoas incluídas na classe média; e temos sustentabilidade política, vivemos um longo ciclo democrático, depois de passar por ciclos autoritários extensos”.

Para o embaixador, é como se o Brasil tivesse mudado de categoria, ganhando inclusive novo nível de interlocução com outros países. Ele admite que os resultados de seu período como embaixador na Alemanha ficaram aquém do esperado nas áreas de energia, tema emperrado tanto na Europa como nos Estados Unidos, e de investimentos em infraestrutura. “Mas deve-se sempre evitar a sensação de que tudo começa quando a gente chega a um posto e tudo termina quando a gente vai embora”, ressalta. “Como diplomata, a gente faz parte da viagem”, define, em tom de conselheiro para os que querem se dedicar a essa carreira tão complexa como instigante.