Pasquale

“Se lembra da fogueira…”

Se o uso é “Ninguém me ama”, a norma é “Ninguém me ama”, e não “Ninguém ama-me”. O pronome é colocado onde soa melhor, naturalmente

Mendonça

Jânio Quadros era especialista em dizer que não tinha dito o que muitas vezes de fato tinha dito. A conhecida frase “Fi-lo porque qui-lo” é uma das tantas que Jânio dizia que não dissera: “Nunca disse isso. Seria um erro de português”. Na verdade, não sei se Jânio um dia pronunciou a tal frase, mas lembro-me dele dizendo que não a disse e que, se tivesse sido necessário, teria optado por “Fi-lo porque o quis”.

Reporto-me ao fato porque volta e meia os leitores me perguntam sobre essa bendita frase, que põe em discussão a delicada questão da colocação pronominal. Se você já esqueceu o que é isso, lá vai: esse capítulo da gramática se ocupa do estudo da posição dos pronomes oblíquos átonos (“me”, “te”, “se”, “lhe”, “o”, “a”, “nos” etc.) em relação ao verbo.

Muitos professores ainda tratam do caso de forma equivocada. Numa de suas primeiras redações, a criança começa o texto ou uma frase com algo como “Me convidaram para uma festa na casa de…” ou “Me assustei quando vi…” E o(a) professor(a) perpetra um rabisco vermelho no “me”. Quando o aluno pergunta o motivo do rabisco, a resposta vem no piloto automático: “Porque está errado”. “E por que está errado?”, indaga a criança. “Porque o ‘me’ não pode iniciar uma frase”, responde a autoridade. “E por quê?”, insiste a criança. “Porque está errado”, diz o(a) professor(a), encerrando de vez a conversa. E o brasileiro cresce com “trauma pronominal”. Acha que, na escrita, é sempre mais chique ou sofisticado colocar os pronomes oblíquos depois do verbo. E escreve frases absolutamente artificiais, como “A chave não encontra-se em poder dos funcionários” (exposta em alguns carros-fortes, ônibus etc.) ou “Os jogadores já tinham apresentado-se…”

Boa parte dessa história de regras de colocação pronominal é puro ócio. Teoricamente, essas “regras” resultariam da observação do uso, ou seja, as regras seriam mero espelho do uso. O problema é que quase sempre a observação sobre o uso se restringe ao texto literário clássico e ao modo de falar dos portugueses. E aí se “condenam” construções como as que iniciam a memorável canção Maninha, de Chico Buarque (Se lembra da fogueira / Se lembra dos balões / Se lembra dos luares dos sertões…). Que queriam? Que Chico fosse lusitano e escrevesse “Lembra-se da fogueira / Lembra-se dos balões…”? Poderia até tê-lo feito, se quisesse imprimir ao poema matizes mais clássicos, mas, ao adotar a colocação pronominal brasileira, o poeta deixa o texto muito mais próximo da nossa linguagem oral, condizente com o tom intimista da tocante letra dessa bela canção.

Pois voltemos à questão do uso e da norma. Se o uso é “Ninguém me ama”, a norma é “Ninguém me ama”, e não “Ninguém ama-me”. E por que se diz “Ninguém me ama”? Simplesmente porque a colocação pronominal obedece à eufonia da frase. O pronome é colocado onde soa melhor − naturalmente. E qual é a sonoridade natural: “me convidaram” ou “convidaram-me”? Depende. Se se tratar de linguagem oral, a opção dos brasileiros é por “me convidaram”; a dos portugueses é por “convidaram-me”. Os modernistas brasileiros esgotaram o assunto no célebre poema “Pronominais”, de Oswald de Andrade: “Dê-me um cigarro, diz a gramática (…). Mas o bom negro e o bom branco da nação brasileira dizem todos os dias: Deixa disso, camarada. Me dá um cigarro”.

Parece absurdo manchar de vermelho a redação de uma criança por um “erro” de colocação pronominal. Quando muito, é razoável discutir esse assunto lá na frente, talvez no fim do segundo grau, explicando a questão pelo aspecto da diferença que há entre a sonoridade lusitana e a brasileira. E, então, mostrar o que de fato ocorre na escrita e na fala, no Brasil e em Portugal, analisar as diferenças entre a fala e a escrita, entre a linguagem formal e a espontânea etc.

Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura