saúde

100 anos de descaso

Descoberta há um século, a doença de Chagas ainda afeta pessoas na fase mais produtiva da vida e só mata menos que as diarreias infecciosas e a aids

Gutemberg Brito/OC

A picada do Barbeiro é o meio mais comum de o parasita atingir o ser humano

Um procedimento experimental, que consiste em substituir o transplante cardíaco pela aplicação de células-tronco nas artérias coronárias, vasos que irrigam o coração, fez com que lesões cardíacas em pacientes com o mal de Chagas em estado avançado regredissem. Com isso, eles voltaram a ter uma vida mais ativa.

No entanto, a técnica não é 100% eficaz e os pesquisadores têm muito a estudar. “Ainda não sabemos qual é a quantidade necessária, o tipo de célula-tronco ideal para tratar o problema e qual o perfil dos doentes que serão mais beneficiados”, explica o médico patologista Ricardo Ribeiro dos Santos, coordenador do Laboratório de Engenharia Tecidual e Imunofarmacologia do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) localizada na Bahia.

Segundo ele, o bom resultado confirma outros também promissores, como os obtidos num estudo realizado em 2004. “Dos 30 pacientes em estado grave, nenhum apresentou efeitos colaterais e todos tiveram melhora na qualidade de vida. Seis deles ainda estão vivos”, relata. Pode parecer pouco, mas doentes nesse estágio não sobrevivem por mais de três anos. Além disso, são incapazes de subir três degraus, falar ou tomar banho devido à falta de ar. Para o médico, o caminho a seguir é longo. “Entretanto, o trem já saiu da estação e segue rumo a seu destino.” 

Como enfatiza o cientista, a terapia celular ainda não é a cura para todos os males, mas tem muito para ser uma nova modalidade terapêutica mais eficaz.
Esses resultados foram apresentados aos pesquisadores brasileiros e estrangeiros reunidos no Simpósio Internacional Comemorativo do Centenário da Descoberta da Doença de Chagas, que a Fiocruz realizou entre os dias 8 e 10 de julho, no Rio de Janeiro. Com pouco a comemorar e muito a pesquisar, os especialistas discutiram aspectos científicos e políticos do mal que o médico sanitarista brasileiro Carlos Chagas descobriu há um século e muita gente já considerava erradicado há décadas. O fato é que nunca foi estudado como deveria, apesar de sua importância. A Organização Mundial da Saúde estimou em 28 milhões os casos ocorridos no mundo em 2007, ante 18 milhões em 2005.

Cerca de 120 milhões de pessoas, 25% dos habitantes da América Latina, correm risco de contrair a infecção e cerca de 30% dos infectados vão avançar para a forma crônica cardíaca e/ou digestiva, que pode levar à morte. Dados da universidade americana de Colúmbia indicam que 70% das crianças bolivianas moradoras da zona rural estão infectadas pelo Trypanosoma cruzi – o parasita que, transmitido pelas fezes eliminadas pelo barbeiro, penetra no orifício da picada caso a pessoa se coce depois. Na Europa e nos Estados Unidos, há muito mais infectados do que apontam os registros oficiais. No Brasil há cerca de 2 milhões, 600 mil com complicações cardíacas e/ou digestivas, e 5 mil mortes anuais.

Em valores absolutos, Chagas mata tanto quanto tuberculose e dez vezes mais que esquistossomose, malária, hanseníase ou leishmaniose. Afeta pessoas na faixa etária mais produtiva – dos 30 aos 60 anos – e prejudica fortemente a capacidade de trabalho e, por consequência, de geração de renda. Segundo estudiosos, trata-se de um círculo vicioso perverso: a pobreza é determinante social da doença, que gera mais pobreza. Apenas as diarreias infecciosas e a epidemia de aids são mais impactantes.   

A força do mal

A doença cardíaca chagásica crônica é a forma mais comum de problema de coração na América Central e na do Sul e a principal causa de morte por motivo cardiovascular em áreas endêmicas. Quem tem Chagas pode morrer também na fase aguda devido a complicações diretas da infecção pelo parasita, como miocardite, meningoencefalite ou problemas secundários, como broncopneumonia. A miocardite, mais comum de todas, é uma lesão caracterizada por intensa inflamação e inchaço do miocárdio – a camada muscular grossa da parede do coração – provocada pelo parasita. O órgão fica flácido e tem o volume aumentado.

acervo da casa de oswaldo cruz/depto. de arquivo e doc./imagem ioccarlos chagas
Foi na cidade mineira de Lassance que Carlos Chagas identificou o Trypanosoma cruzi

Nos últimos anos, muitos programas governamentais até diminuíram as taxas de transmissão do Trypanosoma cruzi por meio do combate ao barbeiro, que se esconde em buracos na parede e telhado de casas humildes, mas não houve erradicação nas áreas endêmicas. Além do mais, as pessoas já infectadas que se tornarão doentes crônicos ainda não têm tratamento adequado. O mal de Chagas pode ser transmitido por transfusão de sangue, por via congênita (da gestante para o feto) e por meio de alimentos contaminados.

O benzonidazol e o nifurtimox, as duas drogas hoje disponíveis, têm efeitos colaterais, precisam ser tomadas durante muito tempo e não funcionam na fase crônica. Como a doença está associada à pobreza, ficou relegada a terceiro plano pela indústria farmacêutica. Tanto é que a Roche, que durante muitos anos fabricou o benzonidazol sem a margem de lucro desejada, doou a patente do medicamento ao governo brasileiro, que passou a fabricá-lo recentemente em Pernambuco.

Durante os últimos 20 anos, nenhum laboratório chegou a testar em humanos uma nova droga. Só agora, a partir deste semestre, é que doentes em estágio inicial testarão um novo medicamento contra os danos ao coração causados pela doença de Chagas. É uma formulação à base de selênio, um mineral antioxidante, que apresentou bons resultados tanto em experiências feitas com células em tubos de ensaio como em cobaias. “Nosso objetivo é barrar o avanço da infecção e reduzir os danos cardíacos, como conseguimos em laboratório”, explica a médica parasitologista Tânia de Araújo-Jorge, diretora do Instituto Oswaldo Cruz, responsável pelas pesquisas.

O remédio não representaria a cura porque não elimina do organismo o Trypanosoma cruzi. O ideal, segundo Tânia, seria combinar essa estratégia com outra capaz de erradicá-lo. O novo medicamento permitiria, porém, reduzir o número de mortes e as limitações provocadas pelo mal de Chagas.