Militância de jornalista inspira contos de Kucinski

Ottoni Fernandes Jr., preso durante a ditadura, foi responsável por alguns avanços alcançados nos últimos anos em relação à democratização do acesso à informação

Ottoni foi secretário executivo da Secom na gestão de Franklin Martins (foto: ABr)

A vida militante do jornalista Ottoni Guimarães Fernandes Júnior, morto no último dia 28 de dezembro durante viagem à Argentina, inspirou algumas crônicas do escritor Bernardo Kucinski. Kucinski, nos últimos anos, tem se dedicado a produzir exclusivamente textos ficcionais, inspirados em fatos reais, como a violenta repressão a opositores da ditadura brasileira.

Ottoni era diretor internacional da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) desde março de 2012. Foi diretor de Comunicação do Instituto Lula, secretário executivo da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República entre 2007 e 2010, na gestão do ex-ministro Franklin Martins, e diretor de redação da revista Desafios do Desenvolvimento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Se houve poucos avanços em relação à democratização do acesso à informação nos últimos dez anos, os resultados poderiam ter sido ainda mais tímidos não fosse a atuação de Ottoni, um dos principais responsáveis pela diversificação das verbas de publicidade entre veículos de pequeno porte pelo Brasil adentro.

Ex-guerrilheiro, Ottoni militou na Ação Libertadora Nacional (ALN) durante os primeiros anos da ditadura militar, até ser preso. Em 2004, o jornalista lançou o livro O Baú do Guerrilheiro – Memórias da Luta Armada, com memórias dos anos de prisão.

Nesta edição de fevereiro, com o miniconto Um Homem Muito Alto, B.Kucinski brinca com a elevada estatura de Ottoni, responsável por facilitar a sua prisão pelos órgãos de repressão – o que na vida real ocorreu em 1970. Em outra oportunidade, na edição nº 58, de abril de 2011, Kucinski escreve A Mãe Rezadeira, segundo ele próprio também baseada na prisão do jornalista. Desta vez, escreve sobre a angústia da mãe, que primeiro reza muito para o filho guerrilheiro não ser preso, depois reza muito para que seja solto logo e, por fim, reza demais para… bem, confira você mesmo aqui.

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Um homem muito alto

Por B. Kucinski, para a Revista do Brasil

Home muito alto (Ilustração: Vicente Mendonça)Ao viajar de ônibus, em pé, curvava a cabeça para não bater no teto. Nos cinemas sentava-se na última fileira, para não aborrecer. Mas a despeito de situações como essas, sua altura desmesurada trazia-lhe vantagens. Já de pequeno, de tão maior que os outros ninguém se atrevia a desafiá-lo. E foi se agigantando. Aos 10 anos, já media um metro e sessenta, ganhou o apelido de Pernalonga e todos os moleques da rua queriam ser seus amigos. Aos 14 tornou-se goleiro festejado no time juvenil; dificilmente deixava entrar a bola. Já alcançavaum metro e oitenta e ganhou o apelido de King Kong.

Além de taludo, tinha garbo e cabelos encaracolados. As garotas o disputavam. Passou a ter dificuldades com as roupas e os sapatos – até então bastava comprar os de tamanho maior –, mas resolveu o problema encomendando regularmente roupas de alfaiates e sapatos de calçadistas. Aos 18 anos foi convidado para jogar basquete e se tornou a estrela do time. Não precisava atirar a bola para encestar, bastava erguê-la com a mão. Tinha então dois metros e oito centímetros de altura e ganhou novo apelido: Golias. Mas não parou aí, ainda cresceria mais cinco centímetros, atingindo dois metros e treze, sua altura de adulto estabilizada a partir dos 20 anos de idade.

Já então estava na faculdade, cursando Engenharia Eletrônica. Trocava muito de namorada, quase todas muito mais baixas que ele, ao ponto de ficar ridículo quando saíam de mãos dadas. Até encontrar a Regianne, mulher alta e corpulenta, embora ainda dentro dos padrões: um metro e oitenta. A faculdade o levou para a política clandestina. Logo se destacou na agremiação  pelo talento organizacional e em pouco tempo já fazia parte de um grupo de ação, formado para assaltar bancos. A Regianne afastou-se por discordar dessa forma de financiar o movimento, que considerava arriscada demais. Ele ficou. E o namoro dos dois acabou.

De fato, logo no segundo assalto, o sistema de segurança do banco conseguiu filmar a ação e ele foi identificado pelos serviços secretos, por sua altura desmesurada. Começou, então, uma implacável caça ao Grandão, o codinome dado a ele pelos serviços secretos, e a etapa de sua vida em que ele amaldiçoou ser tão alto. Seus companheiros podiam usar disfarces, deixar crescer o bigode, ou a barba, ou o cabelo, ou fazer o contrário, ou mesmo tingir o cabelo, enfim, dispunham de muitos recursos, mas com ele não adiantava: a altura o entregava.

Também não podia se valer dos esquemas de fuga para o exterior com papéis falsos, seus dois metros e treze centímetros o denunciariam em qualquer aeroporto ou posto de fronteira. A organização possuía esconderijos diversos, apartamentos discretos e casas alugadas em várias cidades. Ele podia ficar numa delas, depois em outra, mas ao pôr os pés na rua arriscava ser preso.

E assim aconteceu. Foi pego num subúrbio do Rio, ao tentar uma saída para comprar cigarros. Levado a julgamento em São Paulo, foi condenado a sete anos de prisão. Preso e condenado por sua altura. 

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