Antes do jogo

Com estádios quase prontos, obras atrasadas e muitas incertezas, a Copa das Confederações, em junho, servirá de teste para o torneio de 2014

O Brasil está próximo de ter seu primeiro grande teste oficial para a Copa do Mundo de 2014. De 15 a 30 de junho, seis cidades, com seus estádios novos em folha, receberão oito seleções que disputarão a Copa das Confederações. O torneio começa em Brasília e termina no Rio de Janeiro. Enquanto o time de Felipão, de volta à seleção brasileira, começa a se preparar, fora de campo sobram dúvidas quanto às obras de infraestrutura.

Brasília terá sete jogos da Copa. Depois, o estádio Mané Garrincha pode virar um elefante branco. Várias obras de infraestrutura foram canceladas, como a do Veículo Leve sobre Trilhos, uma das principais promessas para aliviar o superlotado sistema de transporte (Foto: ME/Portal da Copa/Tomás Faquini)

Rodoviária de Brasília (Foto: ME/Portal da Copa)Na capital federal, onde Brasil e Japão se enfrentarão na partida de abertura, a previsão é de que o Estádio Nacional de Brasília, mais conhecido como Mané Garrincha, esteja finalizado em março. Segundo os organizadores, é uma das cidades com os preparativos mais avançados. O estádio – autossustentável em termos ambientais, como ressaltam – e outros quatro projetos de mobilidade urbana em execução totalizam orçamentos entre R$ 1,8 bilhão e R$ 2,2 bilhões. Sem contar obras para a ampliação do centro de convenções e investimentos da iniciativa privada na rede hoteleira, na capacitação de profissionais e no setor de serviços.

Mas justamente o traçado e as curvas que chamam a atenção da capital desde o início são vistos, hoje, como dificuldades para a preparação da Copa: seu tombamento como cidade patrimônio da humanidade e os limites impostos, em consequência, aos projetos urbanísticos. O maior entrave é o novo setor hoteleiro, cujo plano de construção foi rejeitado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E depende, ainda, da aprovação de uma lei na Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Como em outros lugares que receberão jogos da Copa, há ainda o temor de que o estádio vire um elefante branco após a competição. Embora tenha sido projetada para ser um espaço multiuso, a arena – com capacidade para 70 mil pessoas – pode vir a ser pouco usada depois do evento e não trazer o retorno econômico esperado, pelo fato de Brasília não ter, nem de longe, a mesma quantidade de jogos de futebol que outras cidades anfitriãs.

O anúncio de que não haverá tempo para a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), conforme previsto, lançou luzes sobre as demais obras de mobilidade urbana e serviu de alerta para que o cronômetro dos trabalhos caminhe num ritmo mais adiantado. A implementação do VLT, orçada em R$ 277 milhões, foi tirada da lista de projetos previstos para o mundial porque o governo do Distrito Federal não conseguiu contratar a obra a tempo para que fosse concluída até 2014, devido à anulação, pela Justiça, de uma das licitações por causa de irregularidades envolvendo governos anteriores – o que atrasou a realização de uma nova concorrência.

Contra o tempo

Em Fortaleza, a estrutura de concreto e ferro aparentes já não é mais vista na fachada do Castelão. Recém-batizado de Arena, o estádio agora reluz à distância, com sua fachada de vidro espelhado. Por dentro, nada mais lembra o antigo campo. No lugar da velha arquibancada de cimento, poltronas com encosto e um amplo espaço sem divisórias, com capacidade para receber até 63.900 visitantes, margeiam o gramado, que deixou de ser protegido por um fosso. Após dois anos de reforma, desde a demolição de parte do antigo estádio, o Castelão foi o primeiro palco da Copa a ser entregue, em festa com a presença da presidenta Dilma Rousseff, em 16 de dezembro.

A beleza do estádio, porém, ainda é ofuscada por poeira, tapumes e barulho de escavadeiras e tratores do lado de fora. No entorno, obras de mobilidade seguem em execução, longe do término. Os trabalhos começaram com atraso e agora há uma verdadeira corrida contra o tempo para que pelo menos as vias que dão acesso direto ao Castelão fiquem prontas até junho deste ano, às vésperas da Copa das Confederações – Brasil e México jogarão lá em 19 de junho. Isso inclui a construção de um túnel e a ampliação de uma avenida.

A celeridade já vinha sendo usada como argumento, nas negociações políticas extracampo, para atrair jogos e seleções para a cidade. A capital cearense vai sediar seis partidas da Copa de 2014 e receberá a seleção brasileira logo na primeira fase (no segundo jogo), com a possibilidade de repetir o feito nas oitavas ou nas quartas de final, dependendo do desempenho do Brasil. No quesito quantidade, Fortaleza perde apenas para Brasília e Rio de Janeiro, cada uma com sete jogos, e empata com Belo Horizonte, Salvador e São Paulo – fica à frente, por exemplo, de Porto Alegre e Recife.

O atraso dos outros oito empreendimentos destinados à Copa, contudo, preocupa, já que ainda há desapropriações a serem feitas. “Certamente, tudo será feito agora para mudar esse quadro, pois é uma grande oportunidade que Fortaleza não pode perder”, diz o secretário especial da Copa do governo estadual, Ferruccio Feitosa. Com o término das obras do Castelão, ele passará a coordenar os demais projetos, inclusive acompanhando os de responsabilidade da prefeitura.

Para Feitosa, só foi possível cumprir o prazo e o preço preestabelecidos para a obra do Castelão por dois fatores: o modelo do contrato, por parceria público-privada (PPP), e o acompanhamento sistemático de toda a construção. “Levei toda a equipe de servidores da secretaria para um contêiner na obra, para acompanhar todas as etapas.”

Ao todo, na matriz firmada com a Fifa, estão previstas em Fortaleza obras que somam R$ 1,579 bilhão. Um terço disso investido diretamente no estádio,

R$ 518,6 milhões, valor que não sofreu reajuste ao longo da reforma. Grande parte do dinheiro é financiamento federal, R$ 761 milhões, mas há também investimento direto da União, de R$ 499 milhões, além de R$ 319,3 milhões de recursos locais, tanto do município como do estado.

Tudo dependerá da ação do novo gestor da capital cearense, Roberto Cláudio (PSB), que se elegeu com o apoio do governador Cid Gomes (PSB), contra o candidato da prefeita Luizianne Lins (PT). “Roberto Cláudio já se comprometeu publicamente em entregar todas as obras da matriz de responsabilidade da Copa e assumiu um compromisso pessoal comigo de viabilizar tudo o quanto antes”, diz Feitosa.

A execução das obras, com a aplicação dos recursos públicos e o encaminhamento das desapropriações, também tem sido acompanhada pelo Ministério Público Federal (MPF). Para o procurador da República Alessander Sales, é alto o risco de que sejam feridos princípios legais e direitos humanos para acelerar o que está atrasado. “Entregamos recomendações ao estado e ao município com mais de um ano de antecedência para deixar claro que não vamos aceitar dispensa de licitação, reajustes indevidos dessas obras nem qualquer outro desvio de conduta para viabilizá-las. Não é aceitável que se diga agora que não há tempo de fazer tudo de acordo com a lei. Havia”, afirma.

Carnaval

Em Salvador, a organização do evento enfrenta um histórico de atraso estrutural em diversos aspectos, do transporte público à falta de mão de obra qualificada. Para tentar contornar esses problemas, o grupo que organiza o megaevento conta com a experiência da cidade em realizar outros encontros de massa, especialmente o carnaval. A capital baiana tem uma das obras de arena de jogos mais avançadas, mas intervenções de mobilidade urbana são quase inexistentes e desanimam cada vez mais os moradores, ansiosos por aproveitar as vantagens que o torneio poderia proporcionar.

A um ano e meio da Copa, apenas duas obras de mobilidade urbana e infraestrutura estão ativas em Salvador: a do Aeroporto Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães e a reforma do porto. Houve promessas de conclusão da primeira etapa do metrô e de construção de um novo trecho que atravessaria toda a Avenida Paralela em direção ao aeroporto. Mas já se sabe que, ainda que a obra comece nos próximos meses, não terminaria antes do evento.

Outra esperança que a população acalentava era de que toda a verba anunciada para investimentos na competição fosse utilizada pelo governo para promover uma grande reforma nos centros históricos da cidade, mas isso ainda não ocorreu. Com boa parte de suas belezas seculares relegada ao semiabandono, aumentam nessas regiões as taxas de criminalidade, e o número de turistas cai. O Pelourinho tornou-se local de frequência desaconselhado por guias e moradores.

Salvador também lida com um problema recente e crescente relativo à violência urbana. De janeiro a outubro de 2012, registrou 1.532 assassinatos, 32,41% acima de São Paulo. A cidade tenta compensar a frustração dos soteropolitanos valendo-se da tradição na organização do carnaval, que recebe centenas de milhares de turistas de todo o Brasil e do mundo. De acordo com os organizadores da Copa na capital, dificuldades como mobilidade e hospedagem de fãs do esporte não serão problema, uma vez que anualmente há a chegada de um contingente humano considerável.

A cidade espera receber na época da Copa do Mundo 70 mil turistas estrangeiros e 630 mil que virão de diversas partes do Brasil, incluindo o interior do estado. O período do Mundial também coincidirá com o da festa de São João, o que fará com que as demandas turísticas aumentem ainda mais. Em 2012, o carnaval de Salvador atraiu, segundo números do governo, 500 mil turistas em uma semana de festa. Esse público provocou uma lotação de 94% nos hotéis.

A Fonte Nova, além de obras em nível de execução adiantado, tem custo intermediário na comparação com as demais arenas. As obras intensas foram paralisadas poucas vezes, facilitaram o trabalho e garantiram a classificação da sede para a participação na Copa das Confederações. Não foi possível, porém, terminá-lo até o final de janeiro, como queria a Fifa. A reinauguração será em março, possivelmente com um duelo entre Bahia e Vitória.

Dinheiro público

No sul do país, Curitiba vê avançar relativamente bem as principais obras projetadas. De acordo com acompanhamento feito pelo site Portal 2014, das nove principais intervenções acompanhadas, oito estão com avaliação positiva. A principal delas, a reforma da Arena da Baixada, está 55% concluída, com previsão de entrega até agosto. A cidade não está no roteiro da Copa das Confederações.

Se a execução do projeto caminha bem, não se pode dizer o mesmo em relação a seu financiamento. Embora seja propriedade privada, a obra é bancada em boa parte pelos cofres públicos. Orçada em cerca de R$ 200 milhões, a reforma contou com financiamento do BNDES feito ao governo do estado e repassado ao Clube Atlético Paranaense. Para a garantia dos empréstimos, a prefeitura emitiu títulos de potencial construtivo, mecanismo que permite a uma construtora adquirir o direito de erguer um edifício mais alto e com maior área do que o tolerado pelo zoneamento. Em troca, repassa dinheiro a uma obra de interesse público – como a restauração de prédios históricos ou de valor cultural e social ou a preservação de uma área verde.

Para o secretário especial para Assuntos da Copa, Mario Celso Cunha, a preocupação do estado não está voltada para o gasto, mas para quanto será captado em investimentos e no legado deixado à cidade e ao Paraná. Ele calcula a captação de R$ 2 bilhões em áreas como mobilidade urbana, por meio de projetos financiados inclusive pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, por investimentos da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), pela qualificação da mão de obra e por incrementos no setor de turismo. “Teremos ainda avanços em segurança, saúde e qualificação profissional, entre outros setores”, afirma.

A professora Olga Firkowski, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Observatório das Metrópoles, que edita o boletim Copa em Discu$S/Ao, não é tão otimista. Para ela, em Curitiba vive-se uma situação particular, porque, com exceção da reforma da Arena da Baixada e da construção de uma ponte estaiada no corredor que levará do aeroporto ao centro da cidade, todos os outros projetos já existiam. Sobre as duas novidades, ela vê problemas em usar dinheiro público para reformar um estádio privado e na construção dessa ponte, que custará cerca de R$ 95 milhões com a finalidade de criar um “símbolo” para a cidade. ”É necessária a construção de uma ponte, mas a opção­ por uma estaiada é mais um apelo de marketing, porque é mais cara e utiliza tecnologia importada, italiana”, afirma.

José Ricardo Vargas, também professor da UFPR e consultor da Ambiens Sociedade Cooperativa, que participa do Comitê Popular da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba, reforça a crítica em relação à utilização dos títulos de potencial construtivo para a reforma do estádio, já que o mecanismo está em desacordo com o que prevê a legislação, cujo objetivo é financiar habitação social, equipamentos comunitários (desde que haja doação do terreno por particulares) e a preservação de patrimônio cultural e ambiental. “A Copa do Mundo e outros megaeventos acabam sendo justificativas para projetos e atividades orientados pelo interesse do capital, que associam o interesse econômico com o interesse público por intermédio do projeto esportivo”, analisa.

Em relação aos interesses econômicos, a professora Olga Firkowski também lembra que na Copa ocorrerão problemas em relação a vendedores ambulantes. “Muita gente ganha a vida assim e imagina potencializar seus ganhos na Copa. Mas não ocorrerá isso. Na Copa da África do Sul, por exemplo, muitos camelôs acumularam produtos e foram impedidos de vender numa área de exclusão imposta pela Fifa no entorno do estádio”, diz. Destaca ainda que se um morador dessa região de exclusão estender em casa um banner de uma empresa que não seja parceira da Fifa estará infringindo a Lei Geral da Copa. E aí vem o dilema: quem vai fiscalizar, como serão punidos os infratores? Na África do Sul foram criados tribunais sumários, numa clara afronta a normas legais. “A Fifa é uma empresa. E como o Estado irá se relacionar com essa empresa?”, questiona Olga.

Belo Horizonte corre igualmente contra o tempo para não fazer feio no maior evento do futebol mundial. Apesar de o Mineirão, arena que hospedará os jogos da Fifa, já estar pronto, a cidade ainda encontra desafios na mobilidade urbana e na estrutura para atender os milhares de torcedores esperados.

Montagem BH

 

O Mineirão está pronto. Agora, Belo Horizonte corre para concluir o corredor de ônibus, já que o projeto de ampliação do metrô foi abandonado (ME/Portal da Copa)

O evento que antecede 2014 será um teste para os belo-horizontinos. O secretário Extraordinário para a Copa do Mundo de Minas Gerais (Secopa-MG), Tiago Lacerda, vê a Copa das Confederações como uma chance para avaliar as estratégias adotadas até aqui. “Será a oportunidade de aprimoramento. Não só para a cidade, mas para o comitê organizador local e para a Fifa, que também vai aprender a organizar uma Copa no Brasil”, afirma. Pelo cronograma dos organizadores, alguns pontos-chave dos preparativos não estarão prontos até junho.

Se Belo Horizonte vai poder aprimorar suas estratégias para a Copa do Mundo, um desses testes vai ser na área da mobilidade urbana. A ampliação do metrô – promessa da década de 1970 para a cidade – mais uma vez saiu de campo e a aposta da prefeitura é a construção de linhas de BRT (sigla em inglês para Bus Rapid Transit) para a locomoção rápida de pessoas. O projeto já é reconhecido em outros países, como Alemanha e Colômbia, e também em cidades brasileiras como Curitiba e Uberlândia, no interior de Minas. Trata-se de um sistema de transporte público baseado em corredores exclusivos para ônibus com maior capacidade de passageiros.

Para o professor Ronaldo Guimarães Gouvêa, coordenador do Núcleo de Transportes (Nucletrans), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os belo-horizontinos perderam a oportunidade de deixar um legado maior com a Copa do Mundo. Para ele, o BRT será uma herança positiva, mas a cidade desperdiçou a chance de conquistar melhorias significativas na área da mobilidade urbana. “Nossa estrutura de transporte público é muito deficiente. Eu prefiro não estar em BH na Copa. Vai ser constrangedor”, enfatiza.

Autor do gol inaugural no Mineirão, em 1965, o ex-jogador José Alberto Bougleaux, o Buglê, hoje com 77 anos, é mais otimista. “Basta focarmos como fazemos no futebol. O brasileiro, quando faz uma coisa séria, faz muito benfeito.”

Este texto resume uma série de reportagens de Celso Filho (Belo Horizonte), Frédi Vasconcelos (Curitiba), Hylda Cavalcanti (Brasília), Kamila Fernandes (Fortaleza) e Lucas Esteves (Salvador). Leia tudo em: bit.ly/rba_copa2104