O progresso e as ilusões

Para o escritor paraense Daniel Munduruku, autor de 42 livros, indígenas podem ajudar o país a despertar para os engodos do desenvolvimento capitalista e do consumismo

Daniel: “Os indígenas não criam conceitos para definir a existência nem inventar teorias sobre o sentido da vida” (Foto: Jonas Barbetta/Netnews.com Soluções)

Ele não costuma aparecer nas listas de mais vendidos em jornais e revistas, mas é presença obrigatória nas bibliotecas infanto-juvenis. De forma discreta, mas contundente, foi a partir das crianças, o “coração” da nossa sociedade, que Daniel Munduruku e um grupo de escritores de vários povos, de norte a sul do país – como o guarani Olívio Jekupé, o maraguá Yaguarê Yamã e René Nambikuara –, traçaram sua estratégia para transformar a visão dos brasileiros a respeito dos indígenas do Brasil.

Tudo indica que já começaram a ter sucesso. Daniel calcula que seus 42 livros, lançados por 14 editoras, já venderam 2 milhões de exemplares – muitos deles, como lembra, adquiridos pelo sistema público de ensino. São títulos como Meu Avô Apolinário, premiado pelas Nações Unidas, O Segredo da Chuva ou O Olho Bom do Menino, entre os mais conhecidos. Histórias de Índio, o primeiro da carreira, de 1996, já tem 17 edições. Hoje, segundo ele, a chamada literatura indígena brasileira tem mais de 40 escritores e cerca de 120 livros lançados.

Nascido em Belém, em 1964, o escritor, cujos pais deixaram sua aldeia na região do Rio Tapajós nos anos 1950, estudou com os salesianos. Formado em Filosofia, mestre em Antropologia e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Daniel atualmente reside em Lorena, no interior paulista , mas é figura constante em feiras do livro e outros eventos literários pelo Brasil.

Na entrevista a seguir, à qual preferiu responder por escrito, nosso mais conhecido escritor indígena fala sobre sua obra e também sobre o país e as mudanças que têm atingido a Amazônia. Para ele, os brasileiros têm de superar a “ilusão do progresso”, e é nessa tarefa que os saberes dos povos indígenas podem colaborar de forma fundamental.

Escritor, filósofo, doutor: sua trajetória reúne vários elementos que desafiam estereótipos sobre o que é ser indígena. Como você percebe a persistência desses preconceitos?

Há pessoas que dizem que sou um “índio que deu certo” por conta do caminho que faço dentro da sociedade. Não há maior falácia que essa afirmação. Ela está baseada no estereótipo e no preconceito. Eu sinto que, agora que o Brasil já não consegue ignorar a presença indígena, o preconceito começou a se requintar sob outros formatos, escondendo velhos chavões. Esse requinte tem feito muito mal para a identidade dos indígenas. Há um debate ideológico real, mas com a economia como pano de fundo. É uma reedição acerca da reforma agrária, só que desta vez as vítimas não são os sem-terra, mas os povos indígenas. Isso acontece graças aos avanços que o movimento indígena tem conseguido, a imersão na sociedade, a participação na vida política e a entrada de jovens nas universidades. Os novos latifundiários estão usando seu poder econômico para fazer prevalecer o preconceito contra os direitos constitucionais dos povos indígenas.

O recente censo do IBGE mostra que quase 40% dos 897 mil indígenas no Brasil residem em centros urbanos. Você percebe, ainda, uma maior dificuldade dos brasileiros de compreender a experiência dos indígenas na cidade?
A consciência dos brasileiros foi forjada pela ilusão de progresso, desenvolvimento, crescimento a todo custo. Pouco se sabe sobre as consequências de invadir territórios ancestrais e deslocar pessoas, grupos, culturas. Cada vez menos pessoas conseguem fazer uma leitura crítica sobre esses fenômenos e se deixam levar por ilusões de riqueza e bem-estar. A maioria do povo brasileiro tem acreditado que sair da miséria é poder comprar bens moveis ou imóveis. Uma consequência dessa mentalidade é desprezar a história e olhar para o próprio umbigo. Outra é não ser capaz de olhar para o que está acontecendo ao nosso redor e perceber que há uma revolução social sendo gestada, porque o capitalismo não nos permite olhar para os lados. É assim que percebo o fenômeno da urbanização das aldeias. Afora o fato de muitos indígenas estarem sendo jogados para fora de suas terras tradicionais, muitos que estão na cidade percebem que chegou a hora de alertar a sociedade brasileira para o engodo em que está caindo. Estar na cidade não é uma “traição” da cultura ancestral. Ao contrário, é oferecer a possibilidade de o Brasil olhar sua realidade sob um prisma diferenciado. É possível ser indígena vivendo no mundo urbano. É possível ser urbano vivendo numa aldeia indígena. A questão não é de local. É uma questão interna.

Deixar as instituições religiosas operando em terra indígena é entregar esses povos ao extermínio cultural (Foto: Jonas Barbetta/Netnews.com Soluções)

É possível falar em uma “filosofia indígena”, uma forma indígena de encarar o mundo?

Deixar as instituições religiosas operando em terra indígena é entregar esses povos ao extermínio cultural (Foto: Jonas Barbetta/Netnews.com Soluções)   

 Costumo repetir que o “índio” não filosofa, vive o que acredita. Quando isso acontece fatalmente ele se compromete com o momento presente. Os indígenas não criam conceitos para definir a existência, pois aprendem, desde cedo, que é preciso agir no sentido de tornar a vida mais tranquila e pacífica. Caçar, pescar, tecer, colher, entre outras ações, são formas de tornar a vida melhor. Contar e ouvir histórias, brincar, cantar, ritualizar as ações, são formas de alimentar o espírito. Para chegar a isso não é preciso criar outras tantas necessidades materiais e menos ainda inventar teorias para descobrir o sentido da vida. É simples assim.

Seus livros estão presentes nas bibliotecas das escolas de todo o país. Nossa escola tem mudado?

No campo da educação formal há muito ainda o que avançar. Já foi aberta uma picada, mas ela ainda tem de ser pisada muitas vezes para poder virar um caminho seguro. Nos últimos 20 anos se lançaram bases para mudanças, e a Lei nº 11.645/08 (que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras e indígenas nas escolas do país) foi um marco essencial para que isso vire realidade. No entanto, na educação tudo é muito lento e passa por burocracias infindáveis, que não permitem o deslanchar. Nossos livros estão chegando às escolas; os currículos já começaram a ser modificados; professores já conseguem interagir com a cultura indígena… No entanto, ainda é preciso capacitá-los ideologicamente para o embate com o diferente; é preciso investir nessa qualificação. Criar acervos nas bibliotecas para que os educandos tenham acesso à literatura indígena. É urgente criar, dentro das secretarias de Educação, grupos de estudos e pesquisas que possam oferecer munição aos educadores. Fazer um banco de dados confiável sobre grupos culturais indígenas que possam visitar as escolas e formar os formadores. Sem isso, é chover no molhado.

"A Amazônia é um mito na mente brasileira. A história nunca contará de forma adequada sua história" (Foto: Jonas Barbetta/Netnews.com Soluções)

E nossas universidades: estão preparadas para acolher os povos indígenas e seus saberes?
Elas estão piores que as escolas. Os professores doutores se acham senhores absolutos do saber. Na escola formal há uma política pública que determina ações, mas as universidades se fecham para isso. Mesmo quando se fala de políticas de inclusão, as maiores barreiras são os professores. Há pesquisadores que querem fazer trabalho sobre literatura indígena, mas muitos titulares dizem não existir esse tema e se negam a orientá-los na pesquisa. Os estudantes indígenas – que entram pela política de cotas – estão sendo massacrados nos estudos porque não conhecem os trâmites universitários, e os professores se negam a ajudá-los ou a aprender com eles. De qualquer forma, também nas universidades os indígenas já começam a fazer a diferença, e isso é bonito de ver.

“A Amazônia é um mito na mente brasileira. A história nunca contará de forma adequada sua história” (Foto: Jonas Barbetta/Netnews.com Soluções)

Sua obra dialoga, muito, com as crianças. Como tem sido essa experiência? Você nota mudanças em relação à forma como os indígenas são vistos por esse público?
Resolvi escrever para crianças por um motivo: esperança. No início foi bem complicado, mas aos poucos fui impondo meu jeito de narrar, contar nossas histórias. Hoje sinto que atingi não apenas as crianças, mas, e sobretudo, os adultos que têm contato com meu trabalho. Tenho procurado incentivar jovens indígenas a entrar no mundo das letras para que possamos compor um grupo consistente e fazer prevalecer um estilo próprio de narrar.

Quais obras de autores indígenas mais recentes o têm impressionado?
Tem surgido uma leva de autores indígenas cuja escrita ainda vai sobressair. Estamos vivendo um momento embrionário, em que o novo está despontando, nascendo das bases. Eu penso que o grupo atual, por ser pioneiro, está, de certo modo, preso aos cânones ocidentais. Não vejo isso como coisa ruim. Ao contrário, esse grupo usa a literatura como instrumento, mas o novo irá emergir muito brevemente. Ele está nas universidades estudando, criando, ao mesmo tempo em que hiberna até que chegue o momento propício para a metamorfose. Com relação aos outros países, estamos, em certo contexto, adiantados. Temos uma vasta produção para o público infantil e juvenil. São quase 120 títulos voltados para esse segmento. Em nenhum outro país há esse expressivo número. Somos mais de 40 autores de diferentes regiões e povos, o que é um universo de informações e saberes. Em outros países, pelo pouco que conheço, há sempre um ou outro autor de destaque e muito bons na escrita, mas desconheço uma organização que atue no sentido de incentivar novos autores, como nós fazemos. A propósito, este ano virá ao Brasil um grande poeta do povo Mapuche, do Chile, o Elikura Chihuailaf, para participar de um sarau lítero-musical que denominamos Caxiri na Cuia. Será na Universidade Federal de São Carlos, entre 9 e 11 de maio. Na ocasião haverá um grande encontro com escritores e escritoras indígenas.

Qual o lugar que os indígenas estão buscando no futuro do país? Em pleno século 21, o que é ser indígena?
De algum tempo para cá tem surgido uma consciência nova entre os indígenas, sobretudo entre os jovens. Nossos antigos sábios brigaram bravamente para nos mantermos indígenas, e isso tem sido valorizado. No entanto, os novos tempos trouxeram uma demanda em que os jovens têm um papel fundamental. Trata-se de lutar pela manutenção da cultura, e isso não é possível senão pela atualização dessa mesma cultura. Ser tradicional não significa estar preso ao passado, mas antenado ao presente. Ninguém é tão tradicional quanto aquele que é capaz de reverenciar o passado e os antepassados atualizando os saberes para o momento presente. E o que nos pede o presente? Honrar a tradição. Como se faz isso? Atualizando-a. Atualizar os saberes significa contribuir para sua disseminação entre as pessoas. Para tanto é preciso dominar os instrumentais que o Ocidente desenvolveu e criar uma linguagem que seja capaz de comunicar nossa visão de mundo ao mundo e, quem sabe, ajudar na sua transformação.

Histórias de índio

Sua trajetória pessoal é ligada à Igreja Católica, uma instituição que atuou muito fortemente na história do país, em relação aos indígenas.
Sou fruto da Igreja Católica. Estudei com os salesianos do fundamental ao superior. Quis tornar-me padre por ter muita admiração pela atuação missionária. Com o passar do tempo fui percebendo que isso não era um caminho para mim. Minha consciência crítica – alcançada graças à minha educação salesiana – foi surgindo aos poucos e percebi que a atuação missionária em terra indígena é nociva. Tenho clareza que, se não tivesse recebido tal educação, talvez não alcançasse o que alcancei, e não posso ser ingrato, mas muitos jovens da minha geração não tiveram a mesma sorte e acabaram na sarjeta, embora tivessem a mesma formação. Ou seja, o que nos foi ensinado

A primeira estrela que vejo é a estrela do meu desejo

acabou se virando contra a gente graças a uma “lavagem cerebral” que foi sendo introjetada em nossas mentes. Muitos não conseguem se libertar disso nunca mais. Para a maioria restam o ódio e o desejo de vingança contra a instituição, pois no final nos resta apenas a saudade de algo que nos foi arrancado violentamente. Hoje sou radicalmente contra a presença missionária em terra indígena e acho que essa presença é uma afronta ao caráter laico do Brasil, uma vez que as populações indígenas são de responsabilidade do governo brasileiro. Deixar as instituições religiosas operando em terra indígena é entregar esses povos ao extermínio cultural.

Livros escritos por Daniel Munduruku sobre histórias da cultura indígena (Foto: Divulgação)

O governo federal tem retomado projetos de grandes obras na Amazônia, como Belo Monte. O próximo alvo é o Rio Tapajós, região onde vivem os Munduruku – ali devem ser construídas pelo menos duas grandes usinas até 2020. Que notícias têm lhe chegado lá do seu povo?
Tenho visto com muita preocupação tudo o que está acontecendo. É uma novela reprisada. O governo atua hipocritamente, pois supõe que o desenvolvimento hidrelétrico é o que o povo precisa. Além disso, define povo como apenas uma parcela da população, aquela movida pelo consumo frenético que enriquece umas poucas empresas e escraviza a outra parte. O resultado disso, podemos perceber: população ribeirinha desatendida, populações indígenas e quilombolas expulsas das terras que tradicionalmente ocupam, cidades pequenas inchadas e sem infraestrutura e o preço da energia elétrica entre os mais caros do mundo. Alguns precisam sofrer para o bem da maioria, dizem os cínicos. Sei bem que esse pensamento já não é tão verdadeiro. Trata-se de falácias engendradas no coração do povo brasileiro por alguns poucos que defendem o crescimento a qualquer custo. O Brasil não precisa de hidrelétricas. As construtoras precisam. O que o país precisa é de maior distribuição de renda. E só.

Como amazônida, como você percebe que o brasileiro em geral pensa a região? É dado o devido respeito à floresta e a seus habitantes?
A Amazônia é um mito na mente brasileira. A maioria da população não faz e nunca fará ideia do que ela seja realmente. A história nunca contará de forma adequada sua história. Ela continuará sendo o que sempre foi: um mito, um ideal, um eldorado. Meu maior receio é que vire mesmo um deserto.