Quer briga?

A Argentina começa 2013 com maior diversidade no rádio e na TV, mas ainda precisa vencer o Judiciário avesso à Lei de Meios. No Brasil, a proposta de democratizar a comunicação passou mais um ano na gaveta

“Senhores juízes, chega de Favorecer os Monopólios” Como no Brasil, o Judiciário argentino é suscetível a “pressões”

Foi brigando contra os privilégios de produtores rurais que Cristina Fernández de Kirchner se meteu em uma briga contra os oligopólios da comunicação argentina. E foi brigando contra os oligopólios na comunicação que a presidenta comprou uma briga com o Poder Judiciário. É de peleja em peleja que se faz uma Argentina. Dez anos depois de iniciado, o novo momento do peronismo está longe, nesse sentido, de se parecer com os tempos de acordos de “mi general”, que no século passado se valia da habilidade política para bailar com vários ao mesmo tempo.

Está longe, também, de se parecer com os dez anos dos governos Lula-Dilma. Em março do ano encerrado, a Revista do Brasil convidou o país a debater a democratização da liberdade de expressão. Mas a proposta de regulamentação do sistema de rádio e TV permanece na gaveta do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e nada indica que de lá sairá em 2013.

Com o kirchnerismo, quem chama a Casa Rosada para dançar precisa ser bom no riscado, ou acaba nu no meio do salão. Estava tudo alinhado para o famoso 7D, o 7 de dezembro, em que o Executivo pretendia pôr em curso um dos artigos centrais da Lei de Meios Audiovisuais, sancionada em 2009 com o objetivo de diversificar e democratizar o rádio e a televisão. Mas, horas antes, a Sala 1 da Câmara Civil e Comercial manteve liminar que há três anos amparava o Grupo Clarín até que houvesse “decisão definitiva” sobre a constitucionalidade do marco legal. Uma semana depois, o juiz Horacio Alfonso colocou-se a favor da posição do governo e neutralizou qualquer medida de caráter provisório. Pouco após, porém, aceitou o recurso do Clarín e restabeleceu a liminar.

A Sala 1 não é um qualquer nessa história. Em 2011, havia determinado que a liminar teria validade até 2013, prorrogando por três anos a aplicação do artigo 161: veículos que mantêm concessões de rádio e TV acima dos limites tolerados de concentração de mercado devem apresentar plano de adequação. Os principais pontos são o limite de dez concessões de rádio e TV, 24 canais pagos e 35% de alcance da população total em qualquer dos mercados (entenda o caso Clarín à página 22).

A Corte Suprema definiu em maio de 2012 que uma liminar não poderia se arrastar para sempre, dado seu caráter provisório. Colocou-se 7 de dezembro como data-limite para a validade da medida cautelar que amparava o Clarín. O governo decidiu fazer da oportunidade um marco e estendeu o prazo aos outros 20 grupos em descompasso com a Lei de Meios.

Há meses, a Sala 1 estava sem quórum. O governo federal alegava relação de interesse entre os juízes indicados e o grupo Clarín. Mas, faltando poucas horas para o 7D, a câmara foi recomposta e emitiu decisão contrária aos interesses da Casa Rosada. Um dos magistrados que assinam a sentença teve viagem de 15 dias a Miami paga por uma empresa que tem como sócio majoritário o conglomerado de comunicação. Essa empresa tem no comando a filha de outro juiz envolvido no caso.

“As pessoas querem uma Justiça que sirva ao povo”, queixou-se Cristina, 72 horas mais tarde, ao discursar para 400 mil pessoas na Praça de Maio e arredores, em virtude do Dia Internacional dos Direitos Humanos. A presidenta cobrou o aprofundamento da democracia e da independência dos poderes, e respeito à vontade popular. “Se não se respeitam as leis que emanam daí, de que democracia estamos falando? É necessário que a independência do Judiciário não seja apenas do poder político, mas também do poder econômico das corporações.”

Quadro

A decisão da Sala 1 não foi de todo ruim. Abriu um novo flanco de debate e mostrou que a “força excessiva” do governo, propalada por alguns grupos midiáticos, não existe, ou não é capaz de atropelar instituições. O professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) Edgardo Mocca recorda que o enfrentamento ao Clarín é definitivo para reverter a história de uma Casa Rosada submetida ao poder econômico. “Uma parte dos juízes postergou o quanto pôde o julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado. Falar do Judiciário argentino como lugar celestial, de competência, igualdade e imparcialidade, é forçado. É tentar mostrar um Poder Executivo avançando sobre o Poder Judiciário, quando se trata justamente de o Executivo defender a aplicação de uma lei votada. O Judiciário não tem funções legislativas, não pode ­debater as leis.”

À meia-noite do 7D, 20 dos 21 grupos que excedem os limites da Lei de Meios haviam apresentado as propostas de adequação. Entre os principais grupos, predomina o pedido de que as sociedades atuais sejam fatiadas, muitas vezes entre familiares, prática que não é vedada. Só o que não se pode é manter estrutura, mão de obra e programação em comum. O Executivo não define o que deve ser feito das concessões de radiodifusão excedentes. Ninguém deve tirar do ar programação alguma. Não há confisco de bens, não há transmissão cortada. Os canais do Clarín poderão sempre exibir os conteúdos que desejem, sob qualquer recorte ideológico. Só chegarão a menos gente, e onde chegarem também chegarão outras vozes.

“A diversidade é importantíssima. Nosso país, igual que o Brasil, tem uma geografia muito extensa. E a Argentina tem realidades climáticas completamente diferentes”, afirma o vice-presidente do Conselho Federal de Comunicação, David Furland, representante da Associação Argentina de Trabalhadores das Comunicações. “O que ocorre hoje é que há muitos lugares do país em que as pessoas querem ouvir as vozes de sua terra natal, saber o que ocorre em sua cidade. Estamos muito acostumados com a ideia de que tudo o que ocorre em Buenos Aires é notícia. Quem sabe para as pessoas do interior não é tão importante que exista um problema com o metrô de Buenos Aires.”

Quanto ao Clarín, o governo atua para que se encerre o imbróglio jurídico, e assim, mais uma perna da batalha. O passo seguinte será dar início à transferência da titularidade de concessões de rádio e TV. A Afsca e um órgão do Ministério do Planejamento farão um estudo de valor e de alcance populacional de todas as licenças. Caso não surja nova decisão judicial, a adaptação será feita a partir das concessões de menor valor, até que se atinja os limites estabelecidos pela legislação.

Essas licenças são obrigatoriamente colocadas em licitação e, no caso de emissoras sem fins de lucro, haverá concursos para escolher a melhor oferta de programação, sem necessidade de que se apresente uma proposta financeira “Há uma lei, com um juiz que disse que é constitucional. Presido o organismo de aplicação da lei e estamos trabalhando pela aplicação”, avisou o presidente da autoridade reguladora, Martín Sabbatella.

Quando estiver concluído o caso Clarín, se poderá promover a divisão do espectro eletromagnético tal como previsto no marco legal. Espectro é o espaço por onde vagueiam as ondas entre os pontos de transmissão e de recepção de uma imagem ou som. Esse espaço é público e, nas democracias mais avançadas, sua ocupação por empresas de radioteledifusão é regulada pelo Estado. Daí a ideia de que esteja dividido em três partes: privados com fins de lucro, privados sem fins de lucro e públicos.

Questão de honra

Não pegou, mas valeu

O povo argentino é chegado em datas. Celebra de maneira entusiástica o Dia da Primavera, com piqueniques para todos os lados. Não há 24 de março em que não se recorde em praça pública a ditadura responsável por 30 mil mortes. E há quem ainda bata cartão no Dia de São Perón, no Brasil chamado humildemente de 17 de outubro.

Em 12 de dezembro passado, 50 mil se reuniram no centro da capital para celebrar o Dia do Torcedor do Boca. No Dia do Amigo, 20 de julho, é difícil entrar em bares e restaurantes sem reserva. Mas o 7D não pegou: nas ruas via-se uma série de cartazes de adeus ao Clarín, mas cartazes, cá entre nós, no país vizinho não significam lá tanta coisa. Há afiches em todos os cantos, um velho esporte.

“A gente com tantos problemas para resolver e vem gastar energia com essa história de Clarín?”, queixava-se um taxista, esse velho sintetizador de momentos, em uma tarde de pegajoso calor portenho. Havia conversas de café aqui e acolá, mas a mobilização que se esperava desde a Casa Rosada jamais se concretizou. Em outros momentos, em especial durante a tramitação no Congresso, a questão resultou em marchas grandes, superiores a 100 mil pessoas, mas, agora, não.

“O governo, um pouco forçado pelas circunstâncias, fez algo que nunca faz, que é marcar datas para questões importantes”, avalia a analista política Maria Esperanza Casullo, professora das universidades de Rio Negro e Di Tella. “Também pesa ter dado maior significado à data do que tinha propriamente. Era bastante previsível que essa questão não se resolveria agora.”

Na zona sul portenha, o professor Damian Loreti, da Faculdade de Ciências Sociais da UBA, não permite que se finalize a pergunta sobre se o governo exagerou ao colocar peso sobre o 7D. “Sim”, apressa-se, irritado. Loreti nunca se deixou apresentar como criador do projeto que resultou na Lei de Meios. Autoriza ser chamado de um dos pais do “espírito” que conduziu à formulação do texto, surgido a partir de uma articulação de sindicatos, movimentos sociais, grupos de jovens e representantes da área de comunicação.

Os 21 Pontos por uma Radiodifusão Democrática ficaram alguns anos na gaveta da Casa Rosada, até que, em 2008, governo e Clarín romperam as boas relações. O apoio midiático aos agroexportadores contrários à criação de novos impostos fez os Kirchner notar que havia apenas uma versão dos fatos circulando. Loretti é mais ácido em relação ao tratamento que o Executivo dá à legislação. “Faz três anos que discutimos um só artigo da lei. Há muito mais artigos, mas não se pôde dar visibilidade a isso. Por imperícia, por erro, porque não quiseram”, lamenta.

Praça de maio

Elos de poder

Em 2003, Néstor Kirchner chegou ao poder depois de vencer as eleições com 22% dos votos. Era um pleito insólito, no qual concorreu com o ex-presidente Carlos Menem, um dos responsáveis por conduzir o país à bomba que explodiu em 2001 e por abrir caminho, ao jogar pelos ares antigas carreiras, para o surgimento de um político feioso, de oratória sofrível, quase desconhecido do público geral, vindo da fria e distante província de Santa Cruz. “A única verdade é a realidade”, diz uma velha máxima peronista, que, interpretada historicamente, significa levar o pragmatismo às últimas consequências.

Em uma Argentina enlouquecida, Néstor notou que uma das questões que mais irritavam a população eram os juízes da Corte Suprema, responsáveis pela proteção às principais figuras da década em que o país foi à bancarrota. Trocou-os. Pode ser que agora a sucessora, Cristina, banque a segunda fase de “purificação” do Judiciário.

“O papel da Justiça na Argentina é ser o último elo do poder”, afirma o ­integrante da direção nacional da Central dos ­Trabalhadores da Argentina (CTA) ­Carlos ­Girotti, um simpático ex-guerrilheiro, cara e bigode de vovô. “­Essa d­isputa ­pela Lei de Meios está mostrando que o ­exemplo desses quase dez anos de ­kirchnerismo tem de ser freado. Não aceito a ideia de que se trate de uma ofensiva conjuntural da direita. É uma ­ofen­siva que vem para ficar.”

Reeleita em 2011 com 54% dos votos válidos, um dos resultados mais expressivos da história, Cristina se viu frente a alguns problemas que já estavam cantados havia tempos. A única verdade é a realidade de que os preços dos itens básicos de consumo estão exorbitantes após anos de uma camuflada inflação, a economia se viu afetada pela crise internacional e a alta dos salários perdeu fôlego.

Em outra frente, o governo impôs desde o começo de 2012 uma série de freios à compra do dólar, uma tentativa de barrar a especulação e de diminuir a quantidade de moeda circulando. Os argentinos desconfiam da inflação, velha inimiga, e desconfiam dos governos, velhos confiscadores de poupanças.

Com isso, há décadas preferem poupar utilizando a moeda norte-americana, que garante rendimento e viagens ao exterior. A insatisfação com a gestão de Cristina se expressou algumas vezes ao longo do ano. Sintetizou-se em panelaços na capital e outras grandes cidades em novembro. “Foram algo muito interessante do ponto de vista da sociologia política”, diz Maria Esperanza Casullo. “Para mim expressa sobretudo que há um grupo social na Argentina que é profundamente antikirchnerista e não tem representação política.”

Rádios indígenas

Entre 2012 e os primeiros meses de 2013, por exemplo, uma dezena de rádios indígenas estará funcionando em todo o território argentino. A legislação garante o direito a todas as comunidades dos povos originários, sem ressalvas. Justamente no 7D, em Buenos Aires, teve início o 2º Congresso de Comunicação Indígena da Argentina, que reuniu 150 pessoas em uma quadra dentro da Escola de Mecânica da Armada (Esma), principal centro de tortura da última ditadura, convertido em um espaço de atividades pró-cidadania em 2004, após outra batalha dos Kirchner. Do outro lado do país, entrou no ar a primeira emissora de TV controlada por indígenas, que emitirá seu sinal na zona de Bariloche, extremo sudoeste.
Matías Melillán, mapuche alto, de cabelos longos, olhar duro, comemorou o mal-estar criado usando o exemplo do jornal La Nación, representante da classe alta portenha. Líder da coordenação de comunicadores indígenas, Melillán é também integrante do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual,­ surgido da Lei de Meios e responsável por auxiliar o órgão regulador. “Wall Kintun TV incomoda a família Mitre e a seus sócios. Algo bom estamos fazendo, ou não se irritariam tanto. Devemos defender o que temos, que é a possibilidade de definir o rumo das políticas de comunicação.”
Uma série de outros aspectos da Lei de Meios já está em andamento. Loreti poderia enumerá-los durante horas:  “A modificação das regras das campanhas eleitorais, que garantiu um pluralismo fora de série em nossa história, as 150 rádios escolares permitiram que milhares de crianças tomassem o microfone frente a suas comunidades, 250 emissoras de baixa potência receberam licenças e estavam em situação de vulnerabilidade, 3 mil horas no banco de conteúdos audiovisuais, produção e difusão no interior, 3 mil inscritos nos concursos de produção audiovisual, serviços informativos próprios, aumento da produção local, 6 mil postos de trabalho em três anos, 692 concursos para outorga de licenças AM e FM”.

Roteiro repetido

O ministro da Justiça, Júlio Alak, afirma que uma eventual decisão do Judiciário contrária à Lei de Meios seria um desrespeito ao que foi debatido pelo povo e pelo Congresso. O Clarín se sente chocado. No dia seguinte, seu diário estampa a visão de vários cabeças da oposição. Estes avisam que vão pedir que o ministro seja interpelado no Congresso. Os canais de televisão registram falas dos mesmos líderes da oposição, somados a juízes que sentiram a autonomia violada por Alak.

Alguma semelhança? Escolhamos um dia aleatoriamente. Um jornal de São ­P­a­ulo publica uma suposta declaração do publicitário Marcos Valério, em suposto depoimento ao Ministério Público Federal, em que acusa o ex-presidente Luiz Inácio ­Lula da Silva de se valer de verba de caixa 2 do esquema conhecido como mensalão para pagar contas pessoais. A oposição se diz indignada, um ministro do Supremo ­Tribunal Federal cobra in­vestigação e os principais telejornais fazem eco à reportagem divulgada pela manhã.

Álvaro Dias e Elisa Carrió, Geraldo Alckmin e Maurício Macri, Aécio Neves e Hermes Binner: derrotada em 2010 e em 2011, a oposição na Argentina e no Branão encontra discurso e líderes capazes de fazer frente a um governo com aprovação popular e força no Executivo e no Legislativo. “A oposição não consegue uma matriz de desenvolvimento programático, social que não dependa do livreto elaborado pelos meios de comunicação”, avalia Edgardo Mocca. “O discurso dos setores oligopólicos da comunicação é o discurso dos setores mais recalcitrantes, e tem dificuldade de apelar a uma ampla massa.”

Com isso, para o kirchnerismo, 2013 começa com duas possibilidades: votar no Congresso o direito de Cristina de buscar mais um mandato ou iniciar o debate sobre a sucessão. “O presidente que governe depois desse conflito vai governar com um fator de pressão a menos. O Clarín é um fator de pressão impressionante. Antes da votação de qualquer lei, apareciam no Congresso assessores do Clarín escolhendo a pauta e oferecendo recompensas, e ameaças”, analisa Maria Esperanza. Que venha o futuro, então.