O deputado e o piloto

Mais de 48 anos após o golpe e na data da morte de Jango, personagens daquele governo acertam contas com a história, em um novo ato de condenação da ditadura

Segmento de painel de Elifas Andreato

O nome de Almino Affonso era o 62º, em uma lista de 100, aberta por Luiz Carlos Prestes, João Goulart, Jânio Quadros e Miguel Arraes, cidadãos que perdiam os direitos políticos durante dez anos, por decisão do “Comando Supremo da Revolução”. Assinado pelo general Arthur da Costa e Silva, pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e pelo vice-almirante Augusto Rademaker, o ato foi publicado no Diário Oficial da União em 10 de abril de 1964. 

Em 6 de dezembro de 2012, 48 anos, sete meses e 26 dias depois, Almino Affonso – que também perdeu o mandato de deputado federal – voltou à Câmara, para uma cerimônia de devolução simbólica do mandato de 173 parlamentares cassados pela ditadura, até 1985. Vinte e oito ainda estão vivos, e 18 participaram da solenidade.

No mesmo dia e também em Brasília, o coronel da reserva Hernani Fittipaldi, 92 anos, piloto dos presidentes Getúlio Vargas (ajudante de ordens, foi um dos primeiros a ver Vargas morto, em 1954) e João Goulart, deu depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV). E relatou como foi preso e perseguido por ter transportado Jango até o Rio Grande do Sul, em 1º de abril de 1964 – de lá, o ex-presidente seguiria para o Uruguai. Foi o último voo do militar. Com o brevê cassado, ele não teve como continuar trabalhando. Acabou reformado compulsoriamente, em 8 de outubro de 1964.

Ministro do Trabalho do presidente deposto – reeleito deputado em 1962, licenciou-se no ano seguinte para assumir a pasta –, Almino Affonso considerou o ato da Câmara uma “condenação explícita” à ditadura.

Condenação da ditadura

“Creio que ajuda a uma retomada de compreensão política do que significou o golpe de 64”, declarou.

Para ele, diferentemente de países como Argentina e Chile, o Brasil vem tendo comportamento “suave” em relação àquele período. Com a cassação, o ex-deputado e ex-ministro ficou exilado durante 12 anos. 

João Goulart também permaneceu mais de 12 anos no exílio, até morrer, em dezembro de 1976, no interior da Argentina. Foi o único presidente brasileiro a morrer fora de seu país. 

A cerimônia na Câmara dos Deputados e o depoimento à Comissão da Verdade ocorreram justamente no dia em que se completavam 36  anos da morte de Jango.

O coordenador da Comissão da Verdade, Claudio Fonteles, identifica no confisco de mandatos “a verdadeira subversão” patrocinada pelo regime de exceção: “A cassação de pessoas eleitas pela soberana vontade popular sem qualquer motivo aparente, mas pelo simples fato de terem se oposto a uma concepção militarizada e ditatorial do Estado brasileiro”. Também fazia parte daquela lista inicial de cassados, entre outros, o deputado Rubens Paiva, que desapareceu em 1971.

Comunista

Não tem papo

Fittipaldi relatou que, ao voltar a Brasília, após levar Jango, teve o avião cercado, foi preso e incluído em um IPM, um dos famigerados Inquéritos Policiais Militares da época. “A acusação é que ele seria comunista, mas o aviador não tinha atividade política, era apenas um militar de carreira e um dos fundadores do Ministério da Aeronáutica”, informou a Comissão Nacional da Verdade.

O piloto foi levado para o porão de um navio-prisão fundeado na Baía de Guanabara. A família passou dias sem saber do paradeiro, até que a Aeronáutica – ainda sem confirmar a prisão – comunicou simplesmente que mulher e filhos deveriam desocupar o imóvel funcional em que viviam. Deu 48 horas de prazo para isso. Apenas no final de 1964 a família foi informada oficialmente da prisão e levada para visitar o militar. “Ele estava barbudo e irreconhecível. Só o deixaram tomar sol na parte final de sua prisão”, relatou à CNV um dos filhos, Sérgio, de 62 anos. 

Em entrevista à Agência Brasil em 2004, Fittipaldi queixou-se por ter sido impedido de voar. “Eles podiam fazer tudo, menos me proibir de exercer minha profissão. Porque consta na Constituição que nenhum cidadão brasileiro pode ser proibido de exercer sua profissão.” Segundo Sérgio, para sobreviver o pai administrou uma fazenda nas proximidades de Brasília e depois abriu uma granja, que faliu.

Painel de Elifas Andreato, inaugurado na Câmara no mesmo dia da devolução simbólica dos mandatos cassados, registra o sofrimento em situações extremas. Uma das homenageadas é Dodora, codinome de Maria Auxiliadora Barcelos, companheira de cela de Dilma Rousseff

No relato de 2004, Fittipaldi contou que Jango não falou nada durante o voo, apenas tentou dormir. “Apesar de ter outras pessoas no avião, o momento era de tristeza e abatimento. Afinal, era um presidente que estava deposto, qual é o papo? Não tem papo.”

Painel de Elifas Andreato