Amigo do mar

João Cândido, líder da Revolta da Chibata, inocentado há 100 anos, teve sua anistia reconhecida apenas em 2008

(Foto:Em “a illustração brazileira”. Arquivo público do estado de S.Paulo)

Dois decretos e uma lei, em momentos distintos da República, explicam um pouco da história brasileira, que ainda resiste a ser contada. O primeiro é o Decreto Federal nº 3, de 16 de novembro de 1889, assinado pelo marechal Deodoro da Fonseca um dia depois da Proclamação: “Fica abolido na Armada o castigo corporal”. Mas no ano seguinte o governo criou as chamadas companhias correcionais, para os “praças de má conduta”. Foi contra esses castigos que se insurgiram 2.300 marinheiros, em 1910, na Revolta da Chibata. No final de 1912, João Cândido Felisberto, identificado como líder do movimento, foi julgado por um conselho de guerra e considerado inocente.

E aí entram os outros dois decretos. Na tentativa de acabar com o movimento, que ameaçava inclusive a cidade do Rio de Janeiro, o Congresso aprovou a anistia e o governo publicou o Decreto nº 2.280, de 25 de novembro de 1910, assinado pelo presidente Hermes da Fonseca, concedendo “amnistia aos insurrectos de posse dos navios da Armada Nacional”. Foi mais uma concessão formal do que real, já que João Cândido e outros terminaram expulsos e perseguidos. Vários foram mortos. Em 23 de julho de 2008, veio a Lei nº 11.756, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que concedeu anistia post mortem a João Cândido e aos demais marinheiros, com o “objetivo de restaurar o que lhes foi assegurado” pelo decreto de 1910.

A lei se originou de projeto da então senadora Marina Silva e do então deputado Marcos Afonso, ambos à época filiados ao PT do Acre. João Cândido, morto em 1969 aos 89 anos, virou o “navegante negro” da música O Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e ­Aldir Blanc. Originalmente, seria o “almirante negro”. A letra original (1975) foi modificada: ­

Rubras ­cascatas

Jorravam das ­costas dos ­negros

Pelas pontas das ­chibatas

Inundando­ o coração

De toda tripulação

Que a exemplo do ­marinheiro

Gritava não

A letra começa com os seguintes versos: “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ O Dragão do Mar reapareceu”. Era referência a outro personagem, Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, jangadeiro que no Ceará liderou lutas pelo fim da escravidão, abolida naquele estado em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Reaparecia como “navegante negro”.

“Tivemos diversos problemas com a censura”, contou Aldir Blanc, tempos atrás. “Ouvimos ameaças veladas de que o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) não toleraria loas a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as ideias principais.” Ele disse ter ficado chocado quando um censor afirmou que o “problema” era “essa história de negro, negro, negro”. E se viu “atropelado pelo panzer do racismo nazi-ideológico oficial”.

Revolta. Tripulantes do cruzador Barroso, uma das quatro embarcações que parou na Baia da Guanabara e apontou os canhões na direção da cidade para exigir o fim da chibata (Foto:Reprodução)Clandestino

O marinheiro virou mito, contestado por alguns. O vice-almirante reformado e historiador Hélio Leôn­cio Martins, por exemplo, escreveu em 1988 o livro A Revolta dos Marinheiros de 1910, no qual lamenta e critica a violência contra os marujos, mas questiona o papel de João Cândido e refuta a fama de heróis dada aos revoltosos. A íntegra da obra pode ser vista na página oficial da Marinha na internet.

Em 2008, a Marinha liberou documentos referentes a João Cândido, após pedido feito por um grupo de historiadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), para um projeto da Fundação Banco do Brasil. E o livro-referência sobre o episódio histórico é A Revolta da Chibata, do jornalista Edmar Morel, lançado em 1959 – um dos historiadores da Uerj é Marco Morel, neto de Edmar. O livro ganhou segunda edição em 1963. Com o golpe, no ano seguinte, o tema foi praticamente proscrito da historiografia brasileira.

Era perigoso até mencioná-lo, contou Marco Morel em texto de 2009, ano da edição mais recente de A Revolta da Chibata. “Tanto que ele (João Cândido) concederia de forma clandestina depoimento no Museu da Imagem e do Som (RJ), em 1968. A variada imprensa nacionalista e de esquerda foi destroçada e a revolta, perdida num desvão da memória histórica, ainda está a merecer a atenção de historiadores.”

O próprio Edmar Morel foi exonerado do cargo público que exercia e teve seus direitos políticos cassados, principalmente pela publicação do livro. “E não pôde mais sobreviver da profissão de repórter, resultado da perseguição de oficiais da Marinha e seus aliados, da censura e autocensura nos grandes veículos de comunicação, embora ele tenha continuado a publicar artigos e livros e atuado como assessor sem vínculo empregatício”, conta Marco Morel.

“Fiquei sabendo que João Cândido ainda vivia como um proscrito, um simples carregador de cestos de peixe dos barcos de pesca para o entreposto da Praça XV, no Centro do Rio”, narrou Edmar Morel em Histórias de um Repórter, de 1999. Foi conhecê-lo em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. “Não era uma habitação digna da espécie humana”, relatou. No livro, o veterano jornalista chama o personagem de “herói da plebe”.

A revolta começou em 22 de novembro de 1910, após castigo imposto ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, do navio Minas Gerais – que em 1953 seria vendido como sucata à Itália. A pena era de 25 chibatadas, mas o marujo teria recebido 250. No dia seguinte, canhões de quatro embarcações na Baía de Guanabara se voltaram para a capital. Em carta endereçada ao presidente Hermes da Fonseca – eleito naquele ano, depois de vencer disputa contra Rui Barbosa –, marinheiros pediam a retirada dos “oficiais incompetentes e indignos” de servir à nação e o fim da chibata e de outros castigos. Os termos finais do documento eram duros: eles davam prazo de 12 horas ao presidente para ter resposta satisfatória, “sob pena de ver a pátria aniquilada”. Quatro oficiais morreram nos navios e duas crianças em terra, por efeito de bombardeios de advertência.

Na revolta de 1910, que durou cinco dias, o Congresso aprovou uma anistia às pressas. Semanas ­depois, houve nova rebelião, que para alguns teria sido forjada a fim de incriminar os marinheiros. João Cândido foi preso e levado para o quartel da Ilha das Cobras. Foi torturado perto de onde, anos ­depois, sobreviveria como carregador de cestos de peixes. Julgado, terminou absolvido em 29 de novembro de 1912.

O depoimento para o MIS foi gravado em 29 de março de 1968, um dia depois do protesto que acabou na morte do estudante secundarista Edson Souto, no Rio de Janeiro. João Cândido tinha 88 anos e morreria em dezembro de 1969. Uma das perguntas:

Você não tem queixas do mar?

Não, o mar é meu amigo.