Refúgio do preconceito

Um grupo de travestis encontra na direção de um presídio gestos exemplares para enfrentar com dignidade o mundo hostil da discriminação

Juliana, a mais jovem, agora livre das agressões (Foto:Andréa Graiz)

Salvas do pior dos mundos, elas desde maio vivem protegidas dos demais detentos em uma galeria exclusiva do Presídio Central de Porto Alegre. Trocaram a rotina de maus-tratos, ameaças físicas e torturas psicológicas por um espaço onde têm o direito de cumprir sua pena com dignidade. São oito celas abertas no terceiro andar do Pavilhão H, onde, diferentemente de todas as outras instalações, a higiene e a organização constam das regras da boa convivência entre as travestis e seus companheiros, num total de 30 pessoas.

No “3º do H” estão livres para se maquiar, vestir roupa feminina e viver de acordo com sua identidade de mulher, algo inaceitável quando estavam confinadas entre os homens. O que parece privilégio foi, na verdade, uma medida de proteção à vida das travestis negociada entre a direção do presídio e a ONG Igualdade RS, com base nos relatos dos abusos sofridos.

A coordenadora da ONG, Marcelly Malta Schwarzbold, conta que antes as travestis eram obrigadas a fazer sexo com qualquer um a qualquer hora e, pior, ficavam justamente nas instalações dos presos por crimes sexuais, como estupradores e pedófilos. O relato é angustiante. “Eram submetidas a cortes de cabelo e forçadas a ter relações sexuais, eram até mesmo estupradas quando não atendiam às ordens dos chefes de galeria”, diz Marcelly. Outra barbaridade da qual se livraram foi o papel de “mulas” em dias de visita. “Tinham de esconder drogas e até aparelhos de celular no ânus para entregar aos chefões.”

Depois da conquista da cela especial, o comportamento das travestis surpreendeu a equipe do presídio. Nalanda, de 25 anos, é a líder e leva a turma na rédea curta. É uma espécie de prefeita da galeria, o que lhe garante o direito a um espaço exclusivo, que mantém bem arrumado, limpo e sob a guarda da imagem de seus protetores: Nossa Senhora da Aparecida, Iemanjá e São Jorge.

Para esta entrevista, ela se preocupou em manter as meninas concentradas no tema, para “não dispersar” as informações. Como boa cidadã, diz que as celas fazem parte do patrimônio público e, portanto, devem ser mantidas com o cuidado que teriam na própria casa. Mostra sem timidez as instalações, chama a atenção para a limpeza, para o fato de terem chuveiro com água quente, para o “cheiro bom”, privilégios conquistados com a ajuda de Marcelly.

Nalanda vem de família estruturada, estudou em bons colégios e tem consciên­cia de que poderia ter seguido um caminho fora da prostituição e do crime, rota que afirma ter traçado por força da exclusão enfrentada como travesti. Agora, condenada por roubo e furto, consegue enxergar a péssima escolha feita. Por isso, levantou a bandeira da educação no presídio, “a única salvação” para elas.

A líder não se cala diante do fato de as travestis não poderem participar, por puro preconceito, das aulas ministradas no presídio pelo projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Os outros presos não aceitam estudar com as travestis. Eles têm nojo. Só queriam abusar da gente. Mas o fato é que tudo começa com educação, e aqui a maioria quer estudar. A gente quer outra vida”, reclama. As outras meninas concordam. Elétricas com a presença da reportagem mais meia dúzia de militares que fazem a segurança, demonstram uma inexplicável alegria e muito otimismo.

Nalanda: fé nos santos protetoresMais que uma fala

O contato da ONG Igualdade RS com o presídio teve início em setembro de 2011, quando o diretor, o tenente-coronel Lean­dro Santini Santiago, um tipo descon­traído de ideias abertas, fez o convite para uma palestra sobre direitos humanos. A princípio, Marcelly pensou que fosse apenas uma fala, mas os encontros se estenderam. E, de abertos a variados grupos, passaram a ser restringidos. “Claro que todos precisam de respeito, de dignidade, querem ouvir, querem falar. Mas decidimos voltar nossa atenção só para a galeria das meninas”, diz Marcelly, travesti de 61 anos.

A coordenadora da ONG virou a “mainha”, indispensável ao grupo porque elas precisam de alguém para ouvi-las falar de suas angústias – entre tantas, o fato de não poder desfrutar do fim de tarde, período que saíam para o trabalho nas ruas. A noite na cadeia é o período mais triste. “Olha pra um prédio de dia e depois olha de noite. Nossa vida é igual. De noite é tudo mais bonito, iluminado. De dia é só preconceito. A gente é tratada que nem bicho”, descreve Mayara, condenada por homicídio depois de reagir a uma agressão homofóbica em um bar. “Eu me defendi. Sentei a cadeira no cara e, pro meu azar, ele morreu.”

Muitas travestis sofrem de depressão não apenas pela privação da liberdade, mas também pela falta que sentem de seus amores, aqueles por quem cometem erros pelos quais pagam caro. “Um crime de uma travesti tem sempre a ver com um homem”, admite Marcelly. Assim foi com Nalanda, Ágata, Juliana, Fabíola, Yasmin, Ketulin e com tantas outras. “Nós somos fiéis, apaixonadas. Uma travesti faz qualquer coisa por seu homem, tira o cara da cadeia, mas um homem não faz o mesmo pela travesti”, lamenta Marcelly. Elas sentem falta ainda dos hormônios que tomavam fora. Sem isso, têm de tolerar os efeitos que descortinam seu corpo masculino.

Mas a nova rotina, que inclui aulas de artesanato, já começa a alimentar a criatividade das meninas e a abrir seus horizontes. Elas fazem fuxicos, bonecas, bruxinhas, tricô e crochê com material levado ao presídio pela ONG. O propósito é que preencham o tempo com qualidade e, ao sair, tenham alternativa de sobrevivência fora da prostituição.

Marcelly afirma que todas tinham a autoestima muito baixa porque eram completamente subjugadas pelos criminosos sexuais. “Como a segurança fica fora da galeria, não sabia nada do que ocorria lá dentro, e isso começou a me preocupar muito.” E foi movida por esse sentimento que a líder conquistou o termo de co­ope­ração.

Mayara reagiu a um ataque homofóbico

O tenente-coronel Santiago, que comanda o maior presídio do estado, teve sensibilidade para o tema e disse que a proposta de criar um espaço especial foi surgindo das conversas com a ONG. “Antes elas ficavam dispersas e agora estão ­vivendo com maior dignidade”, diz.

Marcelly comemora os resultados. “O coronel Santiago é nosso ídolo, um militar que não é conservador.” Das 13 travestis que saíram do presídio desde o início das aulas de cidadania e do confinamento exclusivo, nenhuma reincidiu nem voltou para o sistema carcerário. Agora, por meio de um convênio com o Senac, elas terão curso de cabeleireira e de manicure.

Segundo o tenente-coronel, o presídio, inaugurado em 1958, tem mais que o dobro de presos em relação à sua capacidade. No dia 28 de setembro eram 4.213 em um espaço para 2.069. As celas não têm grades porque seria inviável colocar tantos homens nos pequenos espaços. As galerias ficam abertas e eles circulam. Apenas 150 detentos têm ocupação e também são apenas 150 vagas na escola. Diante dessa realidade em que parece não haver nada a ser feito, uma pequena mudança fez toda a diferença para as travestis.