Austeridade e revolta

Aprovação de orçamentos marcados por cortes na renda, arrocho das políticas públicas e aumento de impostos provocam reações cada vez mais intensas na Europa

Foto:Rafael Marchante/Reuters
Foto:Rafael Marchante/Reuters
Manifestante desafia a polícia em frente ao prédio do Parlamento português

No último 14 de novembro, uma greve geral espalhou-se por grandes cidades da Península Ibérica e paralisou muitos serviços, especialmente na área de transportes. Parcela significativa dos trabalhadores da Espanha e de Portugal, com centrais sindicais à frente e suporte de movimentos sociais, cruzou os braços contra as medidas de austeridade incorporadas pelos governos de centro-direita dos dois países no planejamento anual para destinação de recursos públicos.

Também houve manifestações na Itália, na França, na Bélgica, na Grécia e no Reino Unido. À medida que novos anúncios são feitos, tanto de resultados decepcionantes decorrentes do arrocho como de ataque ao bolso dos cidadãos, a revolta­ aumenta. Na Grécia, o país da União ­Europeia (UE) mais devastado até o ­momento, a massa salarial já recuou 35% em três anos.

Em Portugal, o governo de coalizão conservadora do Partido Democrático Social (PDS) com o Centro Democrático e Social Partido Popular (CDS-PP), comandado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, segue à risca o receituário de obsessão contábil pela dívida fiscal e de desmonte da estrutura do Estado pregado pela chamada “troika”. Composta por uma trinca de instituições – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia (CE) –, esta última impõe, controla e avalia o cumprimento do austero programa de ajuda financeira que injetou recursos solicitados pelas autoridades portuguesas para, acima de tudo, honrar a dívida­ pública com os bancos. A própria CE prevê­ que a economia portuguesa deve recuar 1% e o desemprego alcançará o­ ­índice recorde de 16,4% em 2013.

Para Nuno Ramos de Almeida, jornalista que já passou por grandes redações portuguesas e esteve entre os lançadores da plataforma “Que se lixe a troika! Queremos nossas vidas”, o governo se nega a dialogar com organizações sociais que se opõem ao caminho adotado e segue uma linha de “obediência cega à troika, mesmo a alguns passos do precipício”. Segundo ele, em vão: “As metas prometidas não estão sendo cumpridas. ­Mesmo ­seguindo todo o receituário, devemos mais e temos menos empregos, direitos e atividades produtivas”.

A convocação do “Que se lixe a ­troika!” esteve no centro das manifestações de 15 de setembro, que reuniram cerca de 1 milhão de pessoas em dezenas de cidades portuguesas e foram apontadas como as maiores desde 25 de abril de 1974, na Revolução dos Cravos. Almeida vê sinais de aproximação entre entidades sindicais e movimentos da sociedade civil, mas realça as dificuldades. “As pessoas foram afastadas da participação e relegadas à condição de espectadoras. Os políticos discutem na Assembleia da República enquanto a população assiste a tudo sentada no sofá.”

Segundo Almeida, a prioridade das articulações civis (que incluem ainda os Precários Inflexíveis e o Movimento dos Sem Emprego, entre outros grupos) consiste na recusa do programa da “troika”, na substituição dos atuais governantes e na convocação de novas eleições. A estratégia de repressão, porém, também se acirra. Um forte aparato foi montado em 12 de novembro para manter os descontentes longe da comitiva encabeçada pela chanceler alemã, Angela Merkel, em Lisboa.

Crise antropofágica

Na Espanha, as manifestações extrapolaram os círculos da juventude que ficaram conhecidos como “indignados” – ou 15M, em referência à mobilização de 15 de maio passado. Participante da Xarxa Comunitària La Verneda-Sant Martí, de Barcelona (uma das várias iniciativas que emergiram do 15M), a estudante Esther Fernandez diz que a crise, na realidade, é um “engano”. “O capitalismo precisa continuar enriquecendo. A Europa está a conhecer a verdadeira essência do sistema capitalista”, ironiza. Ela lamenta, entre as consequências desse processo, a supressão de direitos sociais que teriam custado “muitos anos de luta” a muitas gerações. “Ainda pior é o discurso reproduzido pelos governantes no sentido de jogar a culpa da crise nos ‘excessos’ praticados pelas populações”, assinala. Essa linha de raciocínio atribui a crise ao padrão de vida “acima das possibilidades” adotado pelas pessoas – convertidas, assim, nas responsáveis pela própria desgraça.

Integrante do Parlamento Europeu, a deputada portuguesa Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (BE), repele esse tipo de justificação. E lembra de escolhas políticas deliberadas feitas no passado, uma combinação de crédito desregrado e baixos salários. Segundo ela, a “ilusão de se tornar europeu” por meio de empréstimos e do consumo foi acompanhada por uma desvinculação entre lucros e produção. “Foi uma opção, uma fonte de negócios, e houve gente que saiu lucrando.”

A deputada também recusa a interpretação de que o imbróglio decorra de desequilíbrio nos gastos públicos. “Com essa ênfase, o setor financeiro, que está no centro dos agravamentos que estamos presenciando, sai absolvido”, indica. “O atual governo trata a questão como mera planilha de Excel, e ignora os reflexos das medidas de austeridade na vida real.”

Para piorar, o agravamento da crise espanhola reacendeu uma antiga polêmica em torno da autonomia política e independência formal da Catalunha, região mais rica do país. Mas estimulou, por outro lado, iniciativas solidárias inovadoras, como a criação de sistemas virtuais de ajuda coletiva para socorrer famílias despejadas de casa devido a complicações com os financiamentos imobiliários.

A estudante Esther Fernandez, doutoranda em Sociologia na Universidade de Coimbra (Portugal), destaca também a recente proliferação de assembleias populares organizadas em maiores proporções e por períodos mais longos. Diante de um contexto de escassez de empregos formais, ela ressalta a importância de cooperativas de educação, saúde e emprego, bem como de redes coletivas locais de apoio mútuo. “Tudo isso pode proporcionar muita ‘riqueza’ em sentidos mais amplos que o meramente capitalista, ou seja, pode contribuir para a qualidade de vida real e a dignidade das pessoas.”

Da parte das grandes organizações, a novidade é a criação da Cúpula Social, que reúne 150 organizações – incluindo as centrais Comissiones Obreras (CCOO) e União Geral dos Trabalhadores (UGT) – e o movimento por um referendo para pôr em xeque a gestão do primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), visto que as recentes medidas de arrocho contra a crise não fizeram parte do programa submetido à votação nacional em novembro do ano passado.