Derrota revigorante

José Serra fecha uma década perdida dizendo-se revigorado. Seus correligionários, porém, admitem que o discurso do PSDB envelheceu e o partido precisa reinventar-se

José Serra se transformou em sinônimo de rejeição e símbolo de uma conduta hostil ao debate político (Foto:Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)

O fim de semana do segundo turno da eleição na cidade de São Paulo não começou bem para o candidato José Serra. No sábado, ele foi dormir com todas as pesquisas indicando sua derrota para o petista de primeira viagem, Fernando Haddad. E acordou no domingo com os próprios correligionários jogando a toalha. Não foi uma resignação ordinária, típica de quem aceita que, no fim, alguém teria mesmo de perder a boa disputa. 

Aecio Neves (Foto: Antonio Cruz/ABr)Com metade do dia de votação ainda em andamento, o mais ilustre integrante da primeira geração tucana, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, já dava entrevistas em que admitia a irreversível vitória do adversário e enviava recados.

Aéco Neves: “Todas as forças políticas de expressão comemoram o resultado destas eleições municipais, especialmente no segundo turno, e com muita razão”
(Foto: Antonio CRuz/ABr)

FHC afirmou que a vitória de Haddad era também do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o resultado (ainda o das pesquisas, e não das urnas), refletia uma mudança na geração política atual. “Há um momento em que as gerações mudam.” Antes de votar no Colégio Sion, no bairro de Higienópolis, o ex-presidente declarou que o PSDB precisa prosseguir sua reestruturação e manter seu papel no cenário nacional. E não deixou de queixar-se de ter sido “escondido” da campanha do correligionário. “Sempre estive presente e sempre manifesto minhas opiniões”, disse. A presença do sociólogo na campanha havia terminado discreta como começou: apareceu apenas uma vez na propaganda eleitoral do segundo turno; e no dia mais importante do início, a convenção que definiu a candidatura de seu ex-ministro da Saúde, não deu sequer as caras.

Ao final do dia, declarações de outros integrantes do PSDB só iriam “seguir o voto do relator”. Um deles, o senador mineiro Aécio Neves, não chegou a mencionar o nome de Serra no depoimento concedido à Rede Brasil Atual. E não precisou citá-lo para dar a entender que já o considera pouco expressivo: “Todas as forças políticas de expressão comemoram o resultado destas eleições municipais, especialmente no segundo turno, e com muita razão. A oposição recuperou os espaços que perdera, sobretudo em Manaus e em Salvador. O PSB conquistou posições importantes. O PT ganhou em São Paulo e em vários outros municípios relevantes”, afirmou.

Nome dado como certo na disputa presidencial de 2014, como Dilma Rousseff e Marina Silva, o neto de Tancredo fez coro ao ambiente de renovação: “As eleições trouxeram ao cenário político nacional uma geração mais jovem, preparada para conduzir a comunidade nacional em um tempo de fortes desafios de natureza econômica e social. Há também outra lição: onde os candidatos favoritos, ou seja, do PT, se conduziram de forma mais raivosa, perderam o pleito. Esta é outra lição: os eleitores estão escolhendo seus candidatos entre os homens mais sensatos e mais serenos, capazes de administrar sem perseguições e sem rancores”.

Embora tenha enfiado o PT no meio da frase, a referência aos “mais serenos, capazes de administrar sem perseguições e sem rancores” permite aos bons entendedores depreender a quem o recado teria sido mineiramente transmitido. Até Arthur Virgílio, um dos caciques tucanos que mais infernizaram o governo Lula na década passada – a ponto de não se reeleger para o Senado em 2010 –, afirmou que o discurso dos tucanos “envelheceu” e o PSDB terá de mudar para enfrentar 2014. 

Década perdida 

A derrota de José Serra em São Paulo é o fecho de uma década na qual o tucano se transformou em sinônimo de rejeição e símbolo de uma conduta hostil ao debate político. Ele termina o ano político com perspectiva estreita dentro do próprio partido, no qual acumulou tantos desafetos quanto fora dele. Aos 70 anos, com duas derrotas pesadas em sequência, o tucano precisará fazer o que tem demonstrado dificuldade em realizar caso queira ressurgir: reinventar-se.

Para o cientista político Humberto Dantas, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o PSDB ganhou um problema ao não apostar na renovação, e Serra, ao se lançar a uma disputa tão complicada. “A questão é que não existe espaço para ele dentro do PSDB. Salvo qualquer problema, de ordem muito expressiva, nada indica que Geraldo Alckmin não será candidato à reeleição em 2014. A lógica de Serra concorrer a um eventual governo do estado faria sentido apenas em 2018.”

A década perdida teve início em 2002, quando saiu derrotado da disputa ao Palácio do Planalto para Luiz Inácio Lula da Silva. Os anos seguintes, a boa avaliação do governo petista, de um lado, e a obsessão do tucano por Brasília, de outro, acabaram por selar a sorte do tucano, derrotado em 2010 na corrida pela Presidência da República após mais um mandato inconcluso. Serra renunciou ao Palácio dos Bandeirantes, para onde havia migrado depois de apenas 15 meses de mandato na prefeitura da capital. Ironicamente, uma das principais promessas de Serra na recente disputa foi de que cumpriria o mandato, “quatro anos, todos os dias”, uma proposta pequena para o tamanho da cidade e de seus problemas.

Quando decidiu se candidatar, barrando o processo de prévias que poderia levar o PSDB paulistano a uma renovação, Serra já poderia pressentir a derrota. Conhecido por 100% do eleitorado, tinha alta taxa de rejeição, assim como o prefeito Gilberto Kassab (PSD). Nas prévias, teve 52,1% dos votos dos filiados, uma margem apertada para um confronto com colegas de menor expressão no partido. Em entrevista à RBA em maio, o diretor do instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, afirmou que não havia coelho na cartola para o tucano. “O fato é que Serra está começando a candidatura a prefeito nas piores condições da vida dele. Ele nunca teve esse conjunto de elementos tão desfavoráveis, com um conhecimento tão grande, uma rejeição tão alta e uma intenção de votos tão baixa.”

Muito dessa rejeição pode ter sido acumulada junto com a mutação do tom ameno na derrota em 2002 para a beligerância em 2010, quando sofreu o segundo revés, dessa vez para Dilma. “Ao vencedor desejo boa sorte na condução dos destinos do Brasil”, disse em 27 de outubro de 2002 a Lula. Oito anos depois, a escolha das palavras já era outra: “E, para os que nos imaginam derrotados, quero dizer: nós apenas estamos começando uma luta de verdade. Nós vamos dar a nossa contribuição ao país em defesa da pátria, da liberdade, da democracia, do direito que todos têm de falar e ser ouvidos”.

Algo semelhante ao pronunciamento feito logo depois de admitir a derrota para Fernando Haddad, cujo nome não mencionou: “Chego ao final dessa campanha com minha energia, minhas ideias e com essa disposição maiores do que quando a campanha começou. As urnas falaram, e as urnas são soberanas”.

Mesmo tentando dar à tática moralista algum sentido lógico, ficou difícil para Serra dissociar-se de um tipo de obscurantismo que parecia envelhecido na política. Em pleno século 21, o principal nome do ninho tucano, e alguns operadores anônimos de sua campanha, introduziram no debate eleitoral um método anacrônico.

Os vencedores

O analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), não tem dúvida de que o resultado das eleições pavimentou ainda mais o caminho para a reeleição de Dilma em 2014. “Os partidos da base aliada foram vitoriosos. E a oposição decresceu em número de votos e prefeituras”, afirmou, incluindo PT, PSB, PCdoB e PDT no que chama de “núcleo estratégico” do governo.

Fernando Haddad (Foto:Paulo Pinto/FERNANDOHADDAD13/FLICKR/CC)Para o vereador paulistano Eliseu Gabriel, o PSB, ao qual é filiado, teve o desempenho mais importante entre todos os partidos. “No primeiro turno, vencemos em centenas de cidades, mas especialmente em cidades de grande porte, de grande densidade populacional, como Belo Horizonte. E no segundo ganhamos em quase todas onde disputamos. O PSB se firma em nível nacional em condições de caminhar para 2014 com grandes perspectivas de poder.” 

Rui Falcão, presidente do PT: com a vitória na capital, atenção se volta como nunca na direção do Palácio dos Bandeirantes, sob comando dos tucanos desde 1995.
(Foto: Paulo Pinto/Flickr/CC

Os dirigentes do PSB – em especial seu presidente, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos – têm reafirmado que continuarão com Dilma e o PT na campanha presidencial, daqui a dois anos.

Já o PT conquistou 635 prefeituras, considerados os dois turnos, e aumentou em 14% o número de administrações municipais em relação a 2008. Ficou com quatro capitais, incluindo a maior do país. No segundo turno, disputou seis e ganhou três (São Paulo, João Pessoa e Rio Branco) – justamente nas disputas diretas com o PSDB. Na avaliação do presidente do partido, Rui Falcão, o resultado das urnas consolida o projeto iniciado em 2002, com a vitória de Lula, reforçado em 2010, com a eleição de Dilma, e agora com a conquista do Executivo paulistano. Com isso, os petistas se voltam como nunca na direção do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual paulista, e sob comando dos tucanos desde 1995.

Poder demais? A professora Maria Victoria Benevides, da Universidade de São Paulo (USP), considera o pensamento absurdo. “Mesmo nesta campanha, acompanhei no meio universitário pessoas que se identificam com a esquerda vendo um ‘perigo para a democracia’ o PT ficar muito forte, tendo a Presidência da República e a prefeitura de maior orçamento do país. Esse argumento é ridículo. E no tempo de Fernando Henrique? Esse argumento nunca foi usado para defender a democracia.” Mas, em sua opinião, não pode haver uma disputa prematura dentro do próprio partido. O que a professora defende para a principal metrópole brasileira pode servir de inspiração aos demais eleitos: “A brutal desigualdade que existe em São Paulo está na raiz dos problemas urbanos e sociais de que todos reclamam, mas têm enorme dificuldade de enfrentá-los”. Essa é uma questão que diz respeito não só aos governantes, mas aos cidadãos realmente interessados em transformações.

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Este texto resume um conjunto de reportagens da Rede Brasil Atual na cobertura das eleições, com Eduardo Maretti, Evelyn Pedrozo, Frédi Vasconcelos, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Lucas Esteves, Maurício Thuswohl, Paulo Donizetti de Souza, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes, Tadeu Breda, Túlio Muniz e Vitor Nuzzi