O divã e o bem-estar social

Regulamentado no Brasil há 50 anos, o trabalho dos psicólogos deixou de ser voltado apenas para as elites e hoje é o principal aliado na luta pelos direitos de todos

Consultório de Rua. Unidade volante de atendimento à saúde mental da população de rua em São Bernardo do Campo: a complexidade dos casos requer a atuação dos psicólogos (Foto:Valmir Franzo/PMSBC)

Mulheres ribeirinhas da região amazônica que sofreram escalpelamento porque seus cabelos se enroscaram no eixo do motor de embarcações malconservadas acabam sofrendo sequelas também emocionais e difíceis de superar. A violenta repressão militar nas ações da Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970, é outro tipo de marca traumática sofrida por comunidades inteiras do sul do Pará. Episódios distintos como esses têm em comum, além da proximidade geográfica, o fato de demandar um cuidadoso atendimento psicológico para suas vítimas. A descrição do acompanhamento a esses grupos está entre os mais de 4 mil trabalhos apresentados na 2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia, realizada em São Paulo no final de setembro.

O evento comemorou 50 anos da regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil e atraiu mais de 30 mil visitantes, entre profissionais e estudantes de Psicologia de todo o país. O objetivo foi frequentar os diversos fóruns de reflexões sobre uma vastidão de atividades que dependem do trabalho dos psicólogos e promover articulações para melhorar o exercício da profissão, o diálogo e a troca de experiências. “Hoje, mais importante do que debater as linhas praticadas pelos profissionais de todo o país, é discutir se populações inteiras estão sendo beneficiadas com a atuação dos psicólogos, se tudo o que está sendo feito tem relevância social”, diz o presidente do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo (SinPsi), Rogério Giannini, um dos curadores da mostra.

Debate. Giannini: relevância social do trabalho do psicólogo (Foto:Roberto Parizo/SINPSI)

“Em geral, as mesas de debate e apresentações em pôsteres, cartazes, cadernos impressos ou em vídeo discutiram temas de interesse social e ações relevantes que podem ser estruturadas em políticas públicas”, diz Giannini. Para ele, a psicologia no Brasil vive um momento rico ao envolver-se diretamente em projetos e políticas públicas que buscam a construção do bem comum, da justiça social, de um Estado de bem-estar social.

Num dos debates da mostra, o ex-ministro Paulo Vannucchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, destacou o envolvimento dos psicólogos na defesa de pessoas que tiveram direitos violados. De acordo com Giannini, isso se inclui nos propósitos da carreira da psicologia brasileira, como se articular com movimentos sociais na defesa de temas relevantes, saúde, educação, diversidade racial e sexual, entre outros, incluindo direitos humanos. “Na década de 1980 os médicos sanitaristas faziam melhor esse papel, tanto que se destacaram na elaboração do capítulo dos direitos sociais da Constituição e na criação do Sistema Único de Saúde (SUS)”, lembra o dirigente. Ao longo da história, outras categorias tiveram esse protagonismo, como os advogados num determinado momento do período da ditadura. O papel da psicologia nesse espectro começou a sobressair com a regulamentação da profissão, em 1962.

Os profissionais formados dali em diante, já sob o regime ditatorial, atuavam basicamente em consultórios, com viés mais perto da psicanálise, e as possibilidades de tratamento se retringiam a uma minoria da sociedade em condições de pagar o atendimento particular. Mas a psicologia e a sociedade avançaram. “Nessa caminhada, em muitos momentos estivemos na vanguarda dos movimentos da sociedade. Foi o caso da reforma psiquiátrica. Muitos, mesmo aqueles que atuavam em manicômios, participaram do debate e lutaram por um modelo sem perda da liberdade, com maior convivência social”, assinala o curador da mostra.

Quando a atividade passou a ser demandada pelo SUS, nas Unidades Básicas de Saúde, os profissionais se viram despreparados e ainda acostumados ao modelo de consultório. “Aos poucos fomos nos inserindo em políticas públicas de várias áreas, como saúde, habitação, assistência social, direitos das crianças, dos adolescentes em conflito com a lei. Acumulamos um respeitável arcabouço de teorias e práticas. E os novos desafios fazem bem à psicologia e a suas entidades, que estão sempre presentes no debate das políticas sociais”, avalia Giannini.

A psicologia clínica também se beneficia dessa ação ampliada. Por exemplo: uma criança que não se comunica tem dificuldade na escola. Na abordagem por um psicólogo educacional se descobrirá não um problema intrapsíquico ou algum distúrbio de aprendizagem, mas sim, por exemplo, a falta de repertório de comunicação porque sua família é de imigrantes bolivianos que vivem em situação precária e isolados pela dificuldade de convívio social. “Então, um sujeito que atua em uma escola e não olha para o entorno, para a história, a política, vai ter dificuldade para trabalhar”, analisa o profissional.

Giannini comenta o caso de uma família que teve um filho morto, ainda jovem, pelos órgãos de repressão da ditadura. Na criação do segundo filho a família não falava sobre o primeiro, tampouco sobre o contexto social, histórico e político. Esse grande silêncio trouxe prejuízos emocionais a todos. “Com o debate sobre a Comissão da Verdade, essa família passou a falar sobre o assunto e o processo terapêutico destravou, não no contexto familiar, mas no social. Tornou-se possível falar a respeito, deixou de ser vergonhoso.”

 

Linhas

As conhecidas linhas de psicanálise com que os profissionais eram classificados – “fulano é jungiano, beltrano é lacaniano, sicrana é freudiana” – tiveram também sua importância diluída pelos perfis de atuação. “Num Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) ou num Consultório de Rua, não predomina o debate teórico, se o profissional é freudiano ou comportamental”, diz Giannini. Segundo ele, mais importante nesses espaços é como o profissional pode contribuir com a equipe multidisciplinar – médicos, assistentes sociais, educadores.

A inserção nas políticas públicas impulsionou o crescimento da psicologia, o que é bom. O problema é que é no SUS que há mais gente trabalhando. E, com o intenso processo de terceirização por meio das Organizações Sociais (OS), adotado como política em diversos municípios, e a disputa dos recursos públicos por interesses privados, os psicólogos contratados passam a concorrer com o conjunto dos servidores públicos.

Outro problema é a saúde suplementar no Brasil, que só mais recentemente incluiu no rol de sua cobertura o atendimento psicológico. “Há psicólogos que podem fazer até 40 sessões por ano por paciente desde que com indicação médica. E, entre todos os profissionais da área científica, somos os que damos menos lucro. Estamos fora das cadeias produtivas e nossa atuação leva à diminuição do uso de medicamentos”, observa Giannini. “É por isso que nenhum laboratório vai patrocinar congressos de psicólogos.”

 

Cobertura da RBA

Realizada entre os dias 20 e 22 de setembro, em São Paulo,

a 2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia foi acompanhada por Cida de Oliveira, do site da RBA, e Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual. Para ler e ouvir a série de reportagens sobre diferentes temas ligados às atividades dos psicólogos acesse: http://bit.ly/rba_mostra_psi