A classe C descobriu o Brasil, e vice-versa

Empresas também crescem com a inclusão social. O publicitário Renato Meirelles, do Datapopular, faz dessa descoberta – entender os hábitos do povão – um bom negócio

Enquanto a reportagem se dirige ao escritório do Instituto Datapopular, na região da Avenida Paulista, onde entrevistará o publicitário Renato Meirelles, nota na saída do metrô a propaganda de uma escola de idiomas. Diz o painel: “O mundo quer falar com o Brasil. Aprenda inglês”. No site da escola, um filmete musical expandirá o raciocínio: “Os grandes estão chegando/ O Brasil é a bola da vez/ E você, are you ready?/ O que está esperando?/ Venha aprender inglês…” 

Durante anos se acreditou que o classe C queria ser classe A. Não é verdade. Sua aspiração está mais próxima do sucesso do vizinho que do ricaço, que para ele é perdulário, joga dinheiro fora e não tem valores familiares (Foto: Gerardo Lazzari)

Pensando em inglês, vem à memória o comercial do uísque que diz “Keep walking, Brazil”, depois de mostrar a montanha que circunda a Baía de Guanabara se mover, estremecer o Rio de Janeiro, se levantar e caminhar, seguida dos dizeres “O gigante não está mais adormecido”. Lembrarei ao publicitário outros reclames, como o do fabricante de automóvel que ousa dizer ao espectador que “esta é a melhor fase de sua vida”; ou do grande banco com o jingle “ser Brazuca é estar na moral, ganhar o seu dindin num trampo legal, na praia ou na cidade, no morro ou na perifa…” E perguntarei o que eles têm em comum. Ele dirá: “O mercado está apostando na autoestima em alta dos brasileiros”.

Exato. Se uma dessas propagandas fosse de empresa pública ou órgão do governo, algum colunista de jornal ou analista da TV diria que é ufanismo barato pago com dinheiro público. Mas, como é o mercado que está dizendo, talvez seja melhor prestar atenção e não brigar com a realidade. Para entrar na cabeça do público-alvo, a publicidade precisa provocar identificação, empatia. Ao apostar no momento brasileiro, algumas empresas não intuem nem chutam. Elas investigam, pesquisam, procuram saber a que pensamentos a cabeça da massa está aberta.

Esse é um dos trabalhos do Datapopular: investigar a quantas andam os pensamentos do povão, aquela camada menos endinheirada da população, as chamadas classes C e D, que vivem com renda média per capita abaixo de R$ 1.000, compõem um universo de 104 milhões de pessoas, têm potencial anual de consumo de R$ 1 trilhão e provocam mal-estar entre o núcleo de jornalismo de uma emissora e seu núcleo de novelas, já que esse povão se identifica mais com as meras coincidências entre a ficção e a realidade do que com as notícias do horário nobre. Trata-se de uma “nação” que ganhou 35 milhões de pessoas nos últimos dez anos, passando de 35% da população em 2002 para 53% em 2012.

Para entender esse público, Renato Meirelles já fez muitas imersões de campo – e já levou clientes para isso –, vivendo por uma semana ou um mês com famílias em comunidades pobres para decifrar seus sentimentos, porque existe, segundo ele, uma grande diferença entre a teoria da pesquisa de opinião e a prática da vida cotidiana. 

“A nossa classe média são 104 milhões de pessoas que movimentam R$ 1 trilhão por ano. Se fosse um país, seria a 11ª população do mundo e o 18º em potencial de consumo”

Não se trata de obra social, tampouco romântica, mas de business: o Datapopular ganha dinheiro, e não é pouco, dando consultoria a empresas. Orienta executivos a desenvolver produtos que cairão no gosto desse consumidor, que está louco para comprar um computador que saiba usar ou para encontrar com facilidade a passagem para a primeira viagem de avião. E que boa parte dos tais formadores de opinião ainda não descobriu.

Como você foi parar nesse negócio de investigar a cabeça da população mais pobre?

O Datapopular surgiu em 2001, uma ideia dos meus sócios. Eles viram um relatório do (banco norte-americano) Goldman Sachs, que dizia que o futuro do Brasil estava na Rússia, na Índia e na China, e que ninguém estudava esse mercado. Então, o Datapopular nasceu dentro de uma agência de propaganda. Um professor meu entrou nesse primeiro time do Datapopular e me contratou como estagiário. Nesses pouco mais de dez anos fomos crescendo e viramos uma empresa de pesquisa de mercado e também de consultoria para desenvolver estratégias de negócios de comunicação para a classe C e D. Tivemos algumas fases de atuação. Num primeiro momento descobrimos que as pessoas não conheciam esse público. Depois apresentamos esse público. Levamos executivos para morar em comunidades. Eu morei várias vezes em favelas, na Cohab, em casas de pessoas.

Como assim?

Morando, ué. A gente seleciona uma comunidade, procura uma família que tope receber alguém, e eu passo com ela uma semana, um mês, acordando, dormindo, conhecendo. Vivendo com as pessoas vamos entendendo a diferença entre discurso e prática. Porque as metodologias tradicionais de pesquisas são ótimas para identificar o que as pessoas dizem que fazem, no máximo o que elas pensam que fazem.

E o que elas estão pensando na exata hora em você faz a pergunta…

Isso. Mas quando mora com as pessoas você descobre o que elas realmente fazem. Então, a pesquisa tem como mérito construir com essas pessoas uma relação de confiança, a ponto de elas poderem se abrir, e a gente começar a identificar a diferença entre discurso e prática no cotidiano. O segundo momento do Datapopular foi quando as empresas disseram “ok, já sabemos tudo isso, e agora, como a gente faz pra desenvolver estratégias de negócios?” E aí ajudamos essas empresas a desenvolver novos produtos.

Ajudamos, por exemplo, a criar o PC da Família, para a Positivo Informática, que durante anos foi líder no varejo. Ajudamos as empresas a desenvolver novos canais de venda. Ajudamos a Gol a abrir lojas próprias para vender passagem aérea – no metrô, no Largo 13… E ajudamos na comunicação dessas empresas, testando e dando insights para quem, de alguma forma, quer conquistar as classes C e D. Fizemos de tudo, desde testes de comunicação até workshops em emissoras de televisão, pra ver conteúdo tanto de jornalismo como da área de entretenimento. Um monte de palestras para equipes dentro das empresas, sempre com o foco – e acho que é essa a missão do Datapopular – de diminuir a distância que separa o mundo corporativo do universo desse novo consumidor que surgiu no Brasil nos últimos dez anos.

O que é a classe média?

Quando se fala de classe C, a gente utiliza o critério desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Você pega a renda de todo mundo da família, soma e divide pelo número de pessoas. Por exemplo, em uma família com dois filhos em que o pai ganha R$ 1.000 e mãe ganha R$ 1.000, a renda per capita é R$ 500. Uma família é considerada de classe média quando sua renda está entre R$ 291 e R$ 1.019 por pessoa. No mundo inteiro, 54% da população tem renda per capita menor que R$ 291. E só 18% da população mundial tem renda média acima dos R$ 1.019 por integrante da família, o teto da classe média. Ou seja, quando você compara com o mundo, a nossa classe média é alta. São 104 milhões de pessoas, ou 53% da população brasileira, que movimentam R$ 1 trilhão por ano. Essa classe média brasileira seria o 11º país do mundo do ponto de vista da população e o 18º em potencial de consumo. Ou seja, estaria no G-20 do consumo mundial.

Algumas empresas têm notado isso e tratado com carinho, digamos assim, esse momento de autoestima elevada detectado no Brasil. Algumas propagandas tentam associar seu produto a esse sentimento e até a novela das 9 explora um arsenal de personagens identificados com o imaginário popular.

“Além da renda, melhorou a autoestima dos brasileiros. Eles estão vencendo e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. A pessoa otimista e com boa autoestima se valoriza mais”

Você disse um negócio interessante. O que mudou mesmo, além da melhoria da renda, foi a autoestima dos brasileiros. Estão vencendo na vida e estão otimistas, acham que vão continuar melhorando. Então, é um grande desafio dialogar com essa autoestima. Quando ela cresce, essa ideia da postura aspiracional muda. Durante anos se acreditou que a aspiração do cara da classe C é parecer ser o cara da classe A, e isso não é verdade. O cara da classe C acha que o cara da classe A é perdulário, joga dinheiro fora, não tem valores familiares. Ele não entende por que, na hora do almoço, a madame cheia de grana come só um franguinho com uma saladinha. O aspiracional está muito mais próximo da vizinha que deu certo do que de um grande executivo, um grande empresário. E a melhora do otimismo e da autoestima do brasileiro fez com que ele passasse a se olhar e a se valorizar mais. As empresas que querem conquistar esse público têm o desafio de se apresentar como parceiras da melhora de qualidade de vida desses 104 milhões de brasileiros.

Essa classe emergente já usa computador, internet, redes sociais com os mesmos recursos que uma pessoa mais habituada, mais bem informada? As pessoas desfrutam o potencial da internet para se formar e se informar, ou predomina o entretenimento, a diversão?

Depende muito do que você considera “se formar”, “se informar culturalmente”, e “se divertir”. A linha entre a informação e o entretenimento é tênue. Oito de cada dez internautas são das classes C, D ou E, e o que a gente tem visto e aprendido é que a internet é uma forma não só de ver o mundo como também de se mostrar para o mundo, se fazer presente. Se a televisão era uma janela para o mundo, a internet é uma vitrine. A pessoa expõe seu rosto, mostra seus gostos, suas origens, e inclusive confere a veracidade das informações que recebe. Durante anos, só a TV aberta, com uma comunicação unidirecional, decidia o que é certo e o que é errado, o que é verdade ou mentira, o que é e o que não é notícia. Com a internet isso muda tudo. Rapidamente se tem acesso a dezenas de versões para determinada edição. Não existe mais espaço para uma única versão. Então a internet bota aí um novo desafio a qualquer força que pretenda trabalhar com uma única versão dos fatos: isso não é mais possível.

Você acha que os produtos não jornalísticos da indústria da comunicação concorrem com os produtos jornalísticos na formação de valores, na formação de uma base cultural. A novela é mais influente do que o telejornal no quesito “formador de opinião”?

Eu não consigo hierarquizar o que interfere ou influencia mais ou menos. Mas os produtos não jornalísticos efetivamente interferem. Quem foi que disse que hard news é a única forma de as pessoas se informarem? Já pensou o quanto uma discussão sobre câncer no enredo de uma novela leva essa discussão para a família? Ou quanto um debate em um programa feminino sobre a Lei Maria da Penha pode encorajar mulheres a denunciar o marido por uma agressão? Ou qual foi a contribuição dos programas de entretenimento, depois do surgimento da aids, para informar toda uma geração de jovens sobre se proteger e só transar com camisinha? Então, é muito anos 1960, anos 1970, essa discussão de entretenimento versus jornalismo. Informação boa é aquela que o público entende. Essa discussão é tão velha quanto a se existe imparcialidade na mídia.

E não existe?

Em nenhuma. Conteúdo jornalístico, assim como todo e qualquer conteúdo, é um produto editado. E, se tem edição, tem juízo de valor. Se tem edição, tem ideologia. Não tem saída. Isso não quer dizer que é impossível ter um jornalismo que ouça o outro lado, que não devem ser louváveis os esforços dos manuais de redação de sempre ouvir o contraditório, acho que isso tem de ser incentivado. Agora, achar que um processo de edição não passa por um filtro de valores e de opiniões de quem está editando é no mínimo ingenuidade.

“Quando uma pessoa consegue emprego formal ela consegue pensar além, fazer planos, olhar pra frente. Tem uma ambição positiva, A segurança econômica é um ativo, faz sua economia crescer”

O consumidor de informação tem percebido isso, não? Afinal, há mais de uma década os principais veículos de comunicação pendem para um lado e os resultados das eleições, para outro.

É verdade. Mas também é verdade que os grandes veículos são muito hábeis em lidar com as coisas. Porque, ao mesmo tempo que um determinado conteúdo jornalístico conduz para o lado A ou lado B, eles vêm com uma outra pauta, com notícias positivas sobre coisas que estão acontecendo, e não acho que isso seja bondade, mas uma questão de sobrevivência. O produto jornalístico também precisa ter qualidade, porque se não for bom não vai vender…

O sentimento de autoestima em alta detectado nos últimos anos tem contribuído, em momentos eleitorais como o que acabamos de passar, para que os candidatos mais mal-humorados, agressivos e pouco propositivos não prosperem?

O que a gente tem observado é que o voto no Brasil não é um voto ideológico. As pessoas não têm clara a noção do que é esquerda e direita, não estão muito preocupadas com isso. O voto no Brasil é pragmático. As pessoas melhoram de vida, querem continuar melhorando. Votam em candidatos que se proponham a fazer com que sigam acreditando que a vida vai melhorar. E, mais do que isso, que conseguem trazer a discussão política para a vida real. Se tem um mérito do ex-presidente Lula é a capacidade de explicar como poucos os temas de economia, de política nacional ou externa de forma que as pessoas entendam. Ele tem uma forma muito direta para que a população entenda o que ele diz. É por isso que tem um dos maiores índices de aprovação da história. Claro, não é só isso, e as pessoas não são ingênuas. Ele poderia ser o melhor comunicador do mundo e não ter nem 10% dessa aprovação se a vida das pessoas não tivesse efetivamente melhorado nos últimos dez anos. Mas isso se soma à capacidade dele de se fazer entender. Negar o avanço que o Brasil teve nos últimos dez anos é tão improdutivo quanto negar a importância do Plano Real para a história econômica do país. O Brasil melhorou quando teve o controle da inflação. E melhorou porque distribuiu renda. Há responsáveis por esses dois legados, e isso tem de ser dito.

A população mais pobre tem propensão maior a levar em conta o interesse coletivo, ter uma visão mais solidária de mundo, ou tende mais ao individualismo, à competitividade?

Quanto menor a renda, mais as comunidades funcionam na lógica da reciprocidade, do eu te ajudo e você me ajuda. Nas classes C e D há mais amigos, os vizinhos se conhecem mais, emprestam o cartão de crédito, cuidam mais do filho do outro, mas não é só por uma questão de solidariedade de classe ou porque são bacanas. É porque precisam mais um do outro, eles descobrem que se ajudando superam carências e vão mais longe. A vida real mostra a importância de você ter mais amigos, de ser solidário, de ter jogo de cintura, e até de saber perdoar e ser mais tolerante. Por exemplo, qualquer pesquisa revela que a elite tende mais a aceitar a união civil de pessoas do mesmo sexo do que as classes C e D. Mas, na prática, os mais pobres aceitam mais. Eles crescem aprendendo a conviver e aceitar as diferenças. E não por uma questão ideológica ou pela formação mais ou menos liberal. Objetivamente, é questão de sobrevivência. Outro exemplo: a elite tende a ser mais a favor da descriminalização do aborto do que as mulheres das classes C e D, que na prática aceitam mais uma mulher que teve de interromper uma gravidez. E sabem do risco, porque ela não vai para uma clínica particular, gastar R$ 10 mil pra fazer um aborto. Vai recorrer a um meio alternativo. Então, a prática leva a um comportamento mais solidário com os “diferentes” do que na elite.

A segurança econômica é a base da emancipação de um indivíduo? Sem meios de obter a própria renda um cidadão não vai se emancipar culturalmente, não vai satisfazer suas necessidades e desejos, enfim, sentir-se livre?

Uma pessoa sem grana é dependente. Então, quando consegue um emprego com carteira assinada ou aprende a tocar o próprio negócio, tem a chance de pensar além. Quanto menos ela tem de matar um leão por dia para sobreviver, mais consegue fazer planos, olhar pra frente. Consegue ter a ambição de que sua família se desenvolva junto com ela, que sua comunidade se desenvolva. Uma ambição positiva. Então, a segurança do crescimento do emprego formal cria um ambiente que possibilita que mais brasileiros possam pensar adiante. A segurança econômica, mais que uma sensação, é algo efetivo, e para o país é um ativo, é o que faz sua economia crescer. Uma pessoa empregada tem FGTS, 13º, férias com adicional de um terço para poder desejar uma viagem, terá seguro-desemprego. Então, objetivamente, temos um ambiente em que mais indivíduos estão mais seguros de que podem experimentar um desenvolvimento econômico e também pessoal.

Essa pessoa que saiu da chamada linha de pobreza e passa a ser incluída no mercado consumidor não é a que vai comprar jet ski, mas vai experimentar o acesso a um novo hábito alimentar, a roupas, a equipamentos domésticos. Ela passa a ter também maior necessidade de conhecimento, de informação?

A segurança financeira leva as pessoas a estudar mais, a empreender mais, a viajar mais e ampliar seu horizonte cultural. O Brasil começou a mudar com a criação de mais empregos e consequentemente com o aumento da renda, mas é uma mudança nos níveis educacionais que vai levar o país adiante. Temos 3 milhões de estudantes universitários a mais do que há uma década. Uma geração de universitários sendo formada, e cada ano a mais de estudo na vida da pessoa terá impacto positivo no salário e na renda. Além disso, você tem um círculo virtuoso. Pessoas mais escolarizadas também têm filhos mais escolarizados, e portanto tendem a cobrar maior qualidade do ensino que é oferecido a seus filhos. A melhora do ensino leva também à formação de um brasileiro que enxerga a educação como um passaporte para a melhora de sua qualidade de vida.