Meio de campo embolado

Trabalhadores e empresários protagonizaram a primeira conferência do país sobre trabalho decente. Mas polêmicas mostram que o caminho a percorrer ainda é longo

O ministro Brizola Neto durante a conferência (Foto: Renato Alves/MTE)

Do lado de fora do centro de convenções, em Brasília, camelôs eram o contraponto. Afinal, trata-se de uma conferência sobre trabalho decente, que pressupõe emprego formal e proteção social, conforme o conceito cunhado em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). A poucos metros dali, outra ironia: na antevéspera da abertura do evento, um acidente nas obras do estádio Mané Garrincha deixou cinco operários feridos. Outra premissa do trabalho decente é segurança e saúde no trabalho.

Do lado de dentro, a tradicional peleja entre capital e trabalho continuava, sem acordo à vista. O primeiro encontro mundial do gênero – uma iniciativa brasileira –, acompanhado com atenção pela OIT, teve um desfecho conturbado. Foram quatro dias, em agosto, para discutir de que forma o trabalho pode reduzir as desigualdades e que papéis podem ter empresas e governos nesse sentido. Houve debates respeitosos, embora acirrados, nos quais as partes mostraram capacidade de argumentação e convivência. Mas terminou com os representantes dos empregadores fora de campo, reclamando do “juiz”, o governo.

“Isso é questão de interpretação”, reagiu o coordenador da conferência, Mario dos Santos Barbosa, assessor para assuntos internacionais do Ministério do Trabalho e Emprego. Segundo ele, apesar dos problemas – “O desafio foi grande e a dificuldade, um pouco calculada também” – foi possível realizar um “amplo diagnóstico” sobre o mundo do trabalho. “Nesta conferência haverá debate, conflito e – temos muita esperança – consenso”, disse na abertura o ministro Brizola Neto, anfitrião do encontro. “É uma experiência única de diálogo tripartite”, comentou a diretora da OIT para a América Latina e o Caribe, Elizabeth Tinoco. O ministro não esteve no encerramento, o que causou algum mal-estar. Àquela altura, o conflito já estava configurado.

Em alguns dos 12 grupos temáticos formados na conferência, não houve sequer votação. Questões ainda dogmáticas, como a redução da jornada de trabalho, continuam causando reações. Com algumas votações perdidas, integrantes da bancada patronal começaram a se queixar. “Estamos numa arapuca”, disse um deles. Na visão dos empregadores, o governo atuava a favor dos trabalhadores. Para os sindicalistas, no entanto, os empresários deram uma demonstração de que não querem discutir de fato, ao tentar obstruir grande parte das propostas. “Eles mostraram que não querem discutir as relações de trabalho. Foi uma afronta à democracia”, reforçou a secretária da Mulher Trabalhadora da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Rosane Silva.

Seiva

Observador do encontro, o professor José Pastore, conhecido consultor empresarial, achou democrática a condução dos trabalhos no grupo em que esteve presente, mas criticou os resultados. “As bancadas dos empregadores e do governo aprovaram propostas como a distribuição dos ganhos de produtividade ser feita por lei. Vai ser capa do Financial Times”, ironizou. “É preciso manter a legislação com as proteções básicas. Trabalho não é commodity. Mas não pode ter exagero. A seiva do progresso é a produtividade. Se você submeter a produtividade à determinação de políticas públicas, adeus progresso.” Segundo ele, a palavra “produtividade” aparece apenas duas vezes na Constituição e “eficiência”, só uma. Já “direitos” foi impressa 76 vezes na Carta Magna aprovada em 1988.

O secretário de Administração e Finanças da CUT, Quintino Severo, vê raízes históricas e culturais para as dificuldades de evolução das relações trabalhistas. “Tem origem na escravidão, no Estado autoritário, no capitalismo radical. Aqui está tudo mais explicitado. Poucos setores aperfeiçoam o instrumento de negociação coletiva”, avalia. Assim, em vez do diálogo, empresários ainda preferem adotar mecanismos como o interdito proibitório. “É uma visão de evitar o conflito pelo Judiciário, o que acirra mais o conflito.”

A secretária de Direitos Humanos da Força Sindical, Ruth Coelho Monteiro, observa em artigo que o processo de negociação vai continuar, conforme afirmaram os próprios empresários. “Ao retirar-se da plenária final, a bancada dos empregadores não rompeu com o processo de diálogo social, apenas reconheceu sua derrota numérica naquele instante e as diferenças setoriais que os dividiam, impedindo de avançar mais nos consensos.” Para ela, algumas mudanças não se resolvem pela negociação e vão exigir ajustes no modelo econômico e social brasileiro.

Representante da bancada patronal, o vice-presidente da Federação do Comércio (Fecomercio) de São Paulo, Ivo Dall’Acqua Júnior, disse que além de problemas na organização o governo não agiu como mediador. “Ele mostrou lado no debate, e isso contaminou o clima. Nós nos sentimos desprestigiados”, afirmou, minutos depois de subir ao palco, ao lado de outros integrantes da bancada, para informar que os empregadores tinham decidido “suspender” sua participação na conferência – a leitura do comunicado foi feita sob vaias. “Ninguém deve negociar com a faca no pescoço. Então optamos pelo ato heroico. Tínhamos minimamente de marcar posição. As ideias são livres”, comentou Dall’Acqua ao sair.

A diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo, destaca a importância de todas as etapas percorridas para chegar à conferência nacional, com 270 eventos em estados e municípios ao longo de 2011. “Isso já foi um processo extraordinário. Eu diria que foi um ganho enorme, tanto no sentido de ampliar os espaços de diálogo social como de inserir essa discussão no país. Os problemas têm justamente a ver com a magnitude da discussão. O temário é complexo e envolve questões muito polêmicas”, avalia.

As propostas aprovadas na plenária final – inclusive a de apoio à redução da jornada, contestada pelos empresários – serão analisadas por grupos tripartite (ou seja, também com os empresários) e poderão fazer parte de uma política nacional de trabalho decente. Se os temas serão implementados na vida real, vai depender da disposição das partes. Isso mostrará quem realmente quer negociar.

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