Se chover, não tem espetáculo

Grandes eventos e mercado da arte ainda movem políticas de cultura. Mas muitos grupos apostam no poder transformador da arte em sua comunidade. Feliz a cidade que os apoia

O potencial artístico brasileiro é rico e diversificado, mas as minguadas políticas públicas para o setor, salvo exceções movidas a uma visão que reduz a “indústria” cultural à promoção de grandes espetáculos e eventos, demonstram que essa riqueza ainda é subestimada. Em todo o país, iniciativas à margem do financiamento público e do patrocínio privado têm sua potencialidade reduzida. 

Encenação de Hospital da Gente, do grupo Clariô, de Taboão da Serra: ocupando espaços que o poder público não preenche (Fotos: Danilo ramos/RBA)

Artistas e produtores excluídos desse “mercado” são, também salvo raras exceções, condenados a ter sua obra ou atividade não difundida, relegada à eterna condição de sonho ou anonimato. Além da insuficiência da oferta de recursos, a lógica de consumo é por si só um atentado ao entendimento da cultura como ferramenta de expressão da identidade de uma comunidade.

Grupo Clariô 1 (Foto: Danilo Ramos)

Em São Paulo, por exemplo, a maior parte do orçamento destinado à programação da prefeitura é consumida em um único evento, a Virada Cultural. “Não é que a gente não goste da Virada. Mas é a única ocasião em que o metrô fica aberto a noite toda e todo o aparato estatal se mobiliza para um dia de diversão”, pondera Lucas Pretti, um dos organizadores do Baixo Centro, coletivo autofinanciado criado em 2011, com atuação predominante na região central. Tampouco há uma política que fomente teatro, dança, música e outras coisas pelos bairros.

Com o mote “as ruas são para dançar”, o Baixo Centro se formou pelo fato de seus criadores enxergarem a cultura tratada como “exceção” na cidade. “No dia seguinte à Virada, acabou. É impensável que uma das maiores metrópoles do mundo tenha isso como principal.”

Para Pretti, um exemplo alternativo a essa lógica é a Lei de Fomento ao Teatro de São Paulo, de 2003. Graças a ela, diversos grupos e espaços de encenação ganharam força. A lei surgiu a partir de uma crítica ao modelo dominante de financiamento por meio de incentivos fiscais, que, na prática, transfere à iniciativa privada a responsabilidade de gerir a produção teatral. Com ela, o  dinheiro público é repassado diretamente aos produtores, embora o ativista já observe sinais de insuficiência: “Quinhentos grupos se inscrevem, mas só 16 ganham. Quer dizer, tem outros gargalos”.

Luiz Carlos Moreira, autor da lei e diretor do grupo Engenho Teatral, acredita que, apesar da sua importância histórica, ela não passa de uma experiência. “A mentalidade predominante entre os burocratas na gestão do Estado é mercantil. Estamos falando de política pública. A política de saúde é para gerar emprego para médico e enfermeira? Não. Então por que a política de cultura tem de ser para gerar emprego para ator? Política pública é outra coisa.” 

Moreira aposta em brechas para conseguir concessões. “Arrancamos uma migalha da prefeitura para buscar uma forma de produção teatral mais democrática que a mercantil”, acrescenta.

Persistência premiada

Em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, o grupo Clariô de Teatro não tem acesso nem a “essas migalhas”. A trupe foi formada em 2002 graças ao que chama de “sopro”, com a promoção de apresentações teatrais e de oficinas nas escolas da cidade. Tornou-se referência produzindo seu “teatro de resistência” e abrindo espaço para outras manifestações culturais, lacuna não preenchida pela prefeitura – Taboão não tem leis de incentivo nem espaços de apresentação. “Não tem um teatro, uma casa de cultura”, lamenta a atriz Martinha Soares.

O grupo se apresenta em um bairro residencial e pobre e faz vaquinha para pagar o aluguel da casa. Os artistas mantêm outros trabalhos para garantir seu sustento. Na primeira temporada de Hospital da Gente, montagem premiada duas vezes pela Cooperativa Paulista de Teatro, o cartaz avisava: “Se chover não haverá espetáculo”. Além do risco de enchente, metade da peça era encenada ao relento. A situação só mudou recentemente, depois da reforma do espaço, também bancada pelo próprio Clariô. “Se o teatro fosse em São Paulo, do outro lado da rua, teríamos direito ao fomento. Estamos aqui (em Taboão) porque somos daqui. Fazemos isso pela cidade”, afirma a atriz Naloana Lima.

O Clariô também não acredita em chances de receber incentivo privado, já que adota uma postura crítica, feita na periferia para a periferia. Atualmente, um incentivo federal patrocina dois eventos, um com o repertório do grupo e a 4ª Mostra Teatro do Gueto, programada para este ano. Duas edições anteriores foram bancadas pela própria trupe. 

Cultura no ponto

Felipe Altenfelder, da Rede Fora do Eixo, concorda que a situação no país é precária. “Não se compreende a cultura como área estratégica e vital para o município. As principais ações estão ligadas a eventos como shows e festas, importantes, mas insuficientes”, afirma. A Rede Fora do Eixo foi criada em 2005 para incentivar uma cena independente de música, além do eixo Rio-São Paulo, que sempre concentrou investimentos da iniciativa privada. Reúne quase 2 mil produtores de diversas manifestações culturais.

Grupo Edisca (Foto: Mila Petrillo)Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), da Universidade de São Paulo (USP), também considera tímidas as políticas municipais para resgatar a diversidade cultural brasileira. “É preciso melhorar a atuação do Estado, com ações sistemáticas e amplas, ao contrário das ações pontuais e esparsas”, avalia. 

Grupo Edisca atende 200 crianças da periferia de Fortaleza com aulas complementares à escola formal, de dança, matemática e língua portuguesa
(Fotos: Mila Petrillo)

O professor vê no Cultura Viva uma iniciativa relevante. Desde 2004 o programa federal vem apoiando o reconhecimento de Pontos de Cultura, priorizando a celebração de convênios com estados e municípios por meio de “chamada pública”. 

Atividade Edisca (Foto: Mila Petrillo)

Isto é, para uma determinada atividade ser reconhecida e receber recursos, precisa preencher requisitos, especificados em editais do Ministério da Cultura (MinC), comprovando a promoção de ações de arte, educação, cidadania e economia solidária. Ortellado considera essa política ambiciosa e importante, mas pondera. “Houve problemas de implementação, sobretudo no que diz respeito à prestação de contas. Precisa se municipalizar mais, já que as ações fomentadas pelo Cultura Viva podem ser detectadas mais facilmente pelo nível local de governo”, defende.

Altenfelder concorda: “Ponto de Cultura é ‘status social’ que todo e qualquer grupo cultural que se relacione com seu território pode reivindicar e utilizar para se conectar com mais empreendimentos, estimular redes e se organizar na perspectiva de um movimento social das culturas”.

É o que acontece com a Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca), que surgiu em 1991, fruto do trabalho da coreógrafa Dora Andrade, incomodada com a exposição dos menores a situações de risco e sem acesso a saúde e educação, em Fortaleza. A escola atende 200 meninos e meninas da periferia da capital cearense. 

No aterro sanitário de Jangurussu, eles se reúnem diariamente para as aulas complementares à escola formal, de dança, matemática e língua portuguesa, além de participar de ações de incentivo à leitura, escrita e pesquisa. O projeto oferece ainda atendimento médico. “Tivemos e temos a felicidade de assistir a pequenas revoluções na vida dos jovens que por aqui passaram. Cerca de 50 ex-alunos conseguiram ingressar na universidade pública, verdadeira quebra de paradigma quando comparamos com o nível de escolaridade de seus pais, que têm, em média, seis anos de estudo”, comemora Andréa de Souza Soares, responsável pela elaboração de projetos e relatórios da Edisca, premiada por organismos internacionais como Unesco e Unicef. 

“Há ex-alunos atuando como empreendedores sociais. Alguns criaram o próprio grupo de dança, veiculando trabalhos autorais além de nosso estado. Outros atuam na gestão de projetos sociais e equipamentos culturais. Essas pequenas revoluções fazem grande diferença em função do poder multiplicador alcançado pelo exemplo e pela ação desses jovens.”

Laboratório Imagem Falada (Foto: Eduardo Seidl)O Imagens Faladas, em Porto Alegre, é um dos cerca de 30 Pontos de Cultura existentes atualmente na capital gaúcha. Os fotógrafos Eduardo Seidl e Leandro Anton realizavam, desde 2008, oficinas para o público adolescente e pré-adolescente, na região do Cristal. “Era uma área rural até sofrer toda sorte de ocupações nas décadas de 1950-60. São comunidades que passaram por um longo processo de desrespeitos, desatenções e remoções”, diz Eduardo. “Essa população precisava ter consciência do seu mapa, da sua cara e identidade. E a fotografia foi apresentada como ferramenta para isso”, relata.

Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo ensina a jovens repórteres fotográficos linguagem e técnicas de captura, como esta da Casa de Manoel, no Cristal, em Porto Alegre, feita em câmara improvisada com caixa de fósforos. Fotos de Eduardo Seidl (laboratório) e Leandro Anton (casa)

Para ele, o principal resultado do projeto, que participou de um edital lançado em 2009 pela Fundação Nacional das Artes (Funarte) e hoje atua dentro do Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo, foi fazer crianças se tornarem “repórteres fotográficos populares”, protagonistas descobrindo as próprias histórias. “Quando a gurizada olhava essas fotografias nos negativos, em papel ou publicadas no blog durante o projeto, percebíamos que eles podiam ser responsáveis pela documentação jornalística e antropológica da história da própria comunidade.”

Casa de Manoel Cristal (Foto: Leandro Eduardo sente falta de mais editais de incentivo por parte da Funarte e do Ministério da Cultura, uma vez que dificilmente os Pontos de Cultura conseguem se emancipar do financiamento público. “O governo do Rio Grande do Sul está lançando editais, ainda em prospecção, mas, no âmbito municipal, me parece que as iniciativas culturais são muito reduzidas a um público artístico”, avalia.

A Funarte atua no sentido de ampliar e descentralizar o acesso aos programas com financiamento público, lançando editais voltados para diversos segmentos, com inscrições abertas em todo o território nacional. Um exemplo é o programa em andamento Mais Cultura – Microprojetos Rio São Francisco, que conta com investimento de R$ 16 milhões, vindos do Fundo Nacional de Cultura do MinC, que contemplou 1.050 projetos artísticos e culturais de baixo orçamento em 500 municípios de seis estados. Uma das condições para um empreendimento ser atendido pelo Mais Cultura é oferecer, por meio de atividades culturais, potencial de geração de renda para a mão de obra local. 

Para Luiz Carlos Moreira, as reivindicações dentro do sistema que vê a cultura como mercadoria fazem parte de um processo legítimo, porém insuficiente para garantir mudanças. “Só vamos poder falar em política pública, que atenda aos interesses da sociedade, quando tivermos uma nova sociedade. O que a gente faz é levar esse dilema e essa contradição para dentro do Estado. Eles não dizem que a cultura é um direito, eles não prometem? Que o poder público é neutro? Então, queremos cultura. E cobramos. Chega uma hora, eles são obrigados a ceder. E daí cobramos mais.” 

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