Polícia que não deve não teme a transparência

Regina Miki, secretária de Segurança Pública do Ministério da Justiça, defende reforma da polícia e cobra coerência e disposição da sociedade para debater o tema

Primeira mulher a tornar-se secretária nacional de Segurança Pública, a advogada Regina Miki chegou ao cargo no início do governo Dilma com uma credencial de peso. Entre 2001 e 2008, durante sua gestão como secretária de Defesa Social de Diadema, na Grande São Paulo, a cidade deixou de ser conhecida como a mais violenta do Brasil e tornou-se referência internacional em segurança. 

Política de segurança não se faz somente com polícia, se faz com o Estado presente nas mais diversas ações
(Foto: Jonas Oliveira/SECS)

Com ousadia, a secretária conduziu uma experiência pioneira de “lei seca”, que determina o fechamento dos bares às 23h – dos cerca de 5 mil estabelecimentos da cidade, apenas 32 têm licença especial para funcionar depois do horário. A taxa anual de homicídios caiu de 102,8 para cada 100 mil habitantes no início da década passada para 9,5 em 2011.

No plano nacional, Regina enfrenta temas espinhosos, como a construção de uma estratégia de segurança para os grandes eventos que o país vai sediar nos próximos anos ou a implementação de políticas públicas para combater a disseminação do crack pelo país. 

Leia também nesta edição

  • Reportagem: Em busca de uma polícia cidadã – polícias de SP e do RJ matam quatro vezes mais do que toda a polícia americana.

A reforma das polícias é um tema que segue em discussão, mas, na visão da secretária, ainda falta um amadurecimento da sociedade brasileira a respeito do papel das polícias. Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por telefone.

De tempos em tempos aparece a discussão sobre o modelo de polícia surgido durante o regime autoritário e a necessidade de mudanças, como a desmilitarização.Qual avaliação a senhora faz desse debate?
Nós passamos por uma fase de transição. E muitas polícias no país hoje já têm independência política. Algumas já totalmente, outras engatinhando. Tenho receio de que se traga de novo uma discussão sobre a quem compete a segurança pública no país. Isso para mim era uma página virada no capítulo da nossa história: segurança pública é das polícias, e defesa, das Forças Armadas. Depois que tivemos alguns episódios por aí, esse diálogo com a sociedade pode ressurgir. E não é raro a sociedade admitir o uso exacerbado da força para conter a criminalidade. Então, é preciso cautela. Defendo uma polícia independente, autônoma, e defendo a polícia – e não os bandidos que vão para dentro das nossas instituições e se travestem de polícia. Só há Estado democrático de direito garantido com uma polícia fortalecida.

A questão da reforma das polícias integrou um documento que foi incorporado ao programa de governo do candidato Lula. Houve uma série de debates em torno do tema entre 2001 e 2002. Como prosseguiu essa discussão?
Acredito que precisamos passar por uma reforma. O grande problema é que precisamos saber da sociedade qual a polícia que ela deseja e saber da própria polícia aquilo que ela quer ser. Temos, dentro das próprias polícias, algumas pessoas que não avançaram, não se ativeram à sociedade brasileira, que hoje é outra, completamente diferente. Ao mesmo tempo, a própria sociedade cobra às vezes da polícia que ela seja a vingadora, quando a polícia não é isso. A polícia é a garantidora dos direitos fundamentais que estão na nossa Constituição. Houve um erro na Constituição de 1988 ao não enfrentarmos essa mudança, que deixamos passar porque não tinha ambiência, já que havíamos recém-saído da ditadura. Esse ranço permanece: da polícia com a sociedade e da sociedade com a polícia. A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (2009) ouviu cerca de 530 mil pessoas. Lá não ficou claro, nas prioridades, a polícia que a gente quer nem se a gente quer mudança.

Regina Miki  (Foto: Augusto Coelho)

Existe espaço para discutir uma desmilitarização da polícia?
O Conselho Nacional de Segurança Pública promoveu há poucos dias uma audiência pública para discutir desmilitarização. No relatório há um equívoco total sobre o que é desmilitarização. Uns acham que é deixar de ser a PM força auxiliar do Exército, passar a ser uma força reserva e ser chamada somente em momentos de crise. Outros acham que essa polícia deveria estar desmilitarizada simplesmente ao estar na rua sem uniforme. Outros acham que os regimes disciplinares dessas polícias devem ser alterados – mas a maioria dos regimes disciplinares dos estados já se alterou. Então é meio confuso, confundem hierarquia e disciplina com ditadura, com regime de exceção. Isso não é verdade, toda sociedade que se preza, e até a célula menor da nossa sociedade, que é nossa família, tem uma hierarquia. Então, não podemos simplesmente jogar fora a água do banho com a criança junto.

A própria sociedade cobra às vezes da polícia que ela seja a vingadora, quando a polícia não é isso. A polícia é a garantidora dos direitos fundamentais que estão na nossa Constituição
(Fotos: Augusto Coelho/RBA)

Há muitas reivindicações por melhores condições de trabalho por parte dos policiais…
Não sou contra manifestação por melhoria de salário, de condições de trabalho. Das pessoas uniformizadas, porém, que defendem a sociedade identificadas, a sociedade cobra uma conduta. São servidores diferenciados, sim. Por isso, defendo aposentadoria diferenciada, especial, defendo uma mudança na escala de trabalho dos policiais. Por que policial tem de trabalhar 24 horas? Ninguém trabalha 24 horas. Defendo uma melhor capacitação. Não sei se resolveríamos o problema com um piso nacional, mas é preciso um plano de cargos e carreira, porque o piso nacional poderia trazer uma circunstância de ganhar R$ 3 mil de salário e aposentar com R$ 3.100, se não se tem um plano de carreira aliado ao piso.

O governo tem um plano para induzir o amadurecimento desse debate?
Estamos aqui fazendo nossa parte: abrindo campo de debate para que a sociedade nos apresente o modelo de polícia que ela quer. O Congresso tem a Comissão Especial de Segurança Pública, nós temos espaços abertos, o Conselho Nacional de Segurança Pública é subvencionado pelo governo federal para discutir políticas de segurança pública. Qual é o nosso papel? Induzir a política e capacitar esses policiais para o diferente. Temos dado capacitação, treinamento permanente em policiamento comunitário, lançamos mão de uma portaria que obriga as polícias ao uso diferenciado da força, à menor letalidade, queremos trazer uma maior democracia. Temos de ter corregedorias independentes, autônomas, a fiscalização maior do próprio Ministério Público sobre essas polícias. Estamos instituindo o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança Pública (Senaf), que passa por número de efetivo, horário de trabalho, distribuição desse efetivo. Há um campo fértil para amadurecer ideias. Agora, seria prematuro dizer que estamos preparados para ir ao Congresso e mudar isso.

Como a senhora avalia a receptividade dos estados às mudanças? Qual a situação de São Paulo, por exemplo, que tem o maior efetivo policial, com um número enorme de mortes cometidas todo ano?
É muito preocupante. O papel da polícia, volto a dizer, é de garantidor dos direitos das pessoas. E inclua a polícia entre esses que têm de ter seus direitos garantidos. Erroneamente se dizia no país, ou se diz ainda, que direitos humanos são direito de bandido. Isso é errôneo na medida em que a própria polícia exige seus direitos de moradia, de qualificação. É preocupante a posição de uma polícia que realmente não cumpre com seus deveres. Temos de nos ater às regras e punir os desvios e as exceções. Temos de estar atentos a isso. Sou defensora do registro de homicídio com a apuração, investigação, da ilicitude do ato no que se chama auto de resistência (Resistência Seguida de Morte, em São Paulo). O registro é de homicídio e, quando o registro é de homicídio, eu não estou atribuindo culpa ou dolo, estou dizendo que há alguém morto, artigo 121 do Código Penal. O registro deve ser feito sob as especificações do Código Penal. A ilicitude do ato pode ser discutida. A Resistência Seguida de Morte é causa de ilicitude da punibilidade, mas não que deixe de haver homicídio. Mas, de qualquer forma, esses números de homicídios, seja lá quem estiver morrendo, são preocupantes.

Regima Miki MJ (Foto: Augusto Coelho)

Enquanto se está matando o jovem, negro da periferia, a própria imprensa não dá ênfase. Como é escondido, o crime fica entre esses números de ‘resistência’, ou ‘encontro de cadáver’, ou ‘morte a esclarecer’

Os casos de homicídio praticados por policiais parecem, ainda, ser tratados de forma diferente, conforme a classe social e a raça da vítima. Como enfrentar isso?
Acho que uma das formas melhores de enfrentar isso é com a própria imprensa, dando a mesma ênfase tanto aos casos de publicitários quanto a casos das periferias. Isso hoje não acontece. A sociedade brasileira é elitista. Temos, também, no país, uma perícia de excelência, mas elitista. Uma perícia bem-feita nos leva à conclusão de que não houve Resistência Seguida de Morte atribuída a esse publicitário. E será que uma perícia bem-feita na periferia, em uma pessoa que foi encontrada, um cadáver com dois tiros pelas costas, será que isso também não poderia me traduzir que não é uma resistência? Agora, enquanto está se matando na periferia, enquanto é o jovem, negro da periferia, a própria imprensa não dá tanta ênfase. E aí, como é escondido, ele fica entre esses números de ‘resistência’, ou ‘encontro de cadáver’, ou ‘morte a esclarecer’. 

Seria o caso desse publicitário também, se nada tivesse sido divulgado. Tem de haver um controle externo da sociedade sobre a polícia. É papel do Ministério Público com o controle atribuído a ele, pela própria Constituição, sobre a polícia. E digo uma coisa: o bom policial não tem medo de comando, não tem medo de regulamento disciplinar. Aqueles que começam a chiar é porque querem contraverter as ordens.

O acesso a dados da segurança pública é precário, não? Como exercer controle social?
Por isso é que a nossa primeira ação aqui na secretaria, junto com o ministro da Justiça, foi a criação do Sinesp. O estado que não alimentar esse sistema não poderá receber orçamento do governo federal para segurança pública e, o que é mais grave, aqueles estados que dizem que não precisam do nosso orçamento não poderão consultar os dados de segurança pública. Então, não é um estado que atingiu um orçamento excelente que vai poder dizer “aqui eu faço como eu quero, eu registro como eu quero”, não é bem assim. Tenho plena convicção de que transparência total é a melhor forma de agir. Estamos com um programa em Alagoas (piloto do programa Brasil Seguro) e estamos sendo transparentes ao extremo. Todos os dias se noticia o número de homicídios naquela localidade, mais precisamente em Maceió e Arapiraca. Se não tiver nenhum homicídio, batemos palma. Se houver um homicídio, vamos noticiar e dizer onde foi e qual providência a polícia está tomando. Estamos lá com 70% de autoria conhecida nos inquéritos. Isso, sim, vai trazer credibilidade à polícia, não é esconder números, é transparência e resultado.

Em tempos de eleições municipais, como a senhora vê essa relação entre segurança pública e política, e ao que deve estar atento o eleitor preocupado com esse tema?
A política de segurança deve ser uma política como qualquer outra, como a saúde, como a educação. Ela tem de ser uma política ampla, com continuidade, e jamais ser usada como algo que foi trazido como um benefício, ela é uma obrigação. Ela é obrigação de qualquer dirigente. Eu fui secretária em Diadema por oito anos. Saí e a política permaneceu, porque nós instituímos uma política de Estado, e não uma política de governo. Política de segurança não se faz somente com polícia, se faz numa integração das diversas áreas, e isso não seria possível com uma única pessoa ou com uma única polícia. A política de segurança é feita com o Estado presente nas mais diversas ações.

Certa vez, alguém, na Baixada Fluminense, afirmou que ganha a eleição quem “mata mas faz”, em alusão à ligação de políticos com grupos de extermínio…
Isso é um horror. As pessoas, para assumir um cargo público, deveriam ler a Constituição e, ao fazer isso, se ater ao fato de que o maior bem tutelado pela Constituição é a vida. E essa vida não é a vida deste ou daquele, é a vida do cidadão brasileiro.