Nas garras dos coiotes

Redes especializadas em ganhar dinheiro com o tráfico de pessoas já fizeram mais de 70 mil vítimas brasileiras e só não faturam mais que os cartéis de armas e de drogas

Ilustração: Vicente Mendonça

Um dia a pessoa é abordada na rua ou pela internet por alguém que oferece um futuro promissor fora do país. A retirada rápida de documentos e visto, entre outras providências para a viagem, é fácil. Parece não haver motivos para temer. Pode acontecer com moças bonitas, supostamente futuras modelos ou dançarinas, jogadores de futebol, músicos, professores de capoeira e de danças brasileiras, cozinheiros, churrasqueiros. Todos querem progredir e embarcam nesse sonho.

O tráfico humano é o terceiro crime mais rentável do mundo, atrás apenas do de drogas e de armas. O Brasil aparece entre os cinco com maior número de casos – é ponto de passagem, de origem e também de destino. Segundo o Ministério Público Federal, 70 mil pessoas feitas de mercadorias humanas são brasileiras. Em termos globais, são 2,5 milhões de vítimas, que renderam a redes criminosas “negócios” de US$ 32 bilhões, segundo a Organização das Nações Unidas.

A gravidade do crime é inquestionável e, pior, a sociedade o desconhece. A diretora do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça (MJ), Fernanda dos Anjos, afirma que as próprias vítimas não se dão conta de estar sendo lesadas por um delito grave. “Elas se sentem enganadas, violadas em um conjunto de direitos, mas reclamam da própria sorte, e assumem a culpa dos fatos”, diz.

Nos últimos dois anos, a ONG Safernet catalogou 987 sites de aliciamento, que se infiltram também nas redes sociais. As informações foram apresentadas à Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado que investiga o crime. O relatório da CPI é esperado para setembro. O tema também move uma CPI na Câmara dos Deputados, em cujas audiências já passaram desde donos de agências de modelos acusadas de tráfico de garotas para exploração sexual na Índia até usinas suspeitas de submeter operários a regime forçado de trabalho. O relatório dos deputados está previsto para outubro. 

Confira na Rede Brasil Atual uma série de 
13 reportagens sobre o tráfico de pessoas

Triste condição

Um dos maiores desafios no Brasil é aumentar o rigor da lei para o tráfico de seres humanos. A diretora Fernanda, do MJ, afirma que existe um anseio de que sejam criminalizados também casos já identificados no Brasil para fins de adoção ilegal, casamento servil, servidão por dívida e tráfico para fins de trabalho escravo, remoção de órgãos, entre outras formas ainda não enquadradas como tráfico de pessoas pelo Código Penal. “E a legislação não está dando conta de perceber essa realidade e tipificar.”

Alterações recentes no Código Penal, em 2005 e 2009, mantiveram a exploração sexual como condição para tipificação do crime. De acordo com o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do anteprojeto do novo código, ainda é preciso aprofundar o debate sobre a ampliação da pena e “alargar o alcance” da punição. O novo texto deve chegar ao plenário da Câmara dos Deputados até o fim deste ano. A pena atual prevê de três a oito anos de reclusão (artigo 231) para o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração ­se­xual e de dois a seis anos para o tráfico interno (231-A).

A alteração do Código é fundamental para que o crime seja enquadrado conforme previsto no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como “Convenção de Palermo”. O protocolo foi adotado em 2000 em Nova York e entrou em vigor internacionalmente em 2003. No Brasil, foi ratificado em 2004 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Decreto nº 5.017.

As vítimas de tráfico humano podem não ter consciência de seus direitos. A extrema pobreza pode fazê-las aceitar a própria sorte. Mas o Estado não pode admitir que seus direitos sejam violados

Além de maior rigor legal com os criminosos, as partes envolvidas com a questão aguardam com certa ansiedade a aprovação do 2º Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, à espera de aprovação na Casa Civil. A primeira versão, de 2008, foi divulgada em um cenário diverso, quando as vítimas eram brasileiros explorados no exterior. Agora, as peças do jogo se multiplicaram e o contexto insere vítimas estrangeiras no Brasil e o tráfico interno, que começa a aparecer fortemente. A linha de atuação da rede de enfrentamento será não apenas a repressão, mas a prevenção e a atenção às vítimas.

As vítimas de tráfico humano podem não ter consciência de seus direitos. A extrema pobreza pode fazê-las aceitar a própria sorte. Mas o Estado não pode admitir que seus direitos sejam violados, como alerta a responsável pelo Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Defensoria Pública da União em São Paulo, Daniela Muscari. “Por mais que as vítimas não tenham como brigar, nós temos de reconhecer nelas o direito à dignidade”, afirma.

Daniela observa que a vontade expressa pela pessoa no momento em que é aliciada, explorada, pode não ser o que ela realmente sente, e por isso cabe ao Estado protegê-la. Nesse sentido, a defensora critica a atuação do Estado. “As instituições públicas não cumprem seus compromissos, não têm seriedade. Quando a gente vê uma atitude firme, um passo bem planejado, é certo que há alguém por trás, uma vontade de uma pessoa, não um compromisso institucional com a causa, com os direitos humanos.”

Oito em cada dez vítimas de tráfico humano são mulheres, sejam crianças ou adultas. “Ao entrar para a prostituição, elas desconhecem os riscos. Aceitam fazer programas, dançar em boates, mas acabam assinando um cheque em branco”, diz Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República. Em resposta a denúncias feitas da Espanha, da Itália e de Portugal, a SPM e a Polícia Federal criaram o Ligue 180 internacional, que desde janeiro tem recebido em média 18 denúncias por mês.

Rotas

Há dez anos, o Brasil tinha 241 rotas, segundo a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf). Desse total, 110 são relacionadas ao tráfico interno – intermunicipal e interestadual – e 131 ao tráfico internacional. A Região Norte tem a maior concentração de rotas (76), seguida por Nordeste (69), Sudeste (35), Centro-Oeste (33) e Sul (28).

Levantamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF) apontou 1.776 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais. Como a exploração sexual em geral envolve o tráfico humano, a PRF começou a mapear os 70 mil quilômetros de rodovias no Brasil e as fronteiras com 15 cidades gêmeas para definir as rotas nacionais e internacionais desse crime. 

Para a presidenta da Comissão Nacional de Direitos Humanos da PRF, Márcia Freitas Vieira, as quadrilhas podem ser caracterizadas como múltiplas e pequenas, e são raras as que usam “coiotes” (pessoas que facilitam a travessia ilegal nas fronteiras). “Mas elas estão cada dia mais organizadas. Tanto que antes não havia tráfico de pessoas em rota comercial de ônibus, e agora sim”, diz. “É uma tentativa de desconfigurar o crime ao colocar as pessoas traficadas junto aos passageiros comuns”.