Festa de arromba no Municipal, bicho

Quando era o garoto da Tijuca e mal sabia tocar violão, Erasmo jamais imaginou que um dia ocuparia o palco do Municipal do Rio de Janeiro, para mandar ver no rock'n'roll

Erasmo Carlos é um dos compositores mais gravados e um dos maiores vendedores de discos da música brasileira, com mais de 100 milhões de cópias, a maioria canções feitas com Roberto Carlos, como Gatinha Manhosa, Festa de Arromba, Sentado à Beira do Caminho, Coqueiro Verde e outras centenas. 

“A contestação perdeu um pouco a força e eu sinto falta dela. Hoje, roqueiro tem berço, estudo e papai e mamãe” (Foto: Daryan Dornelles/Fotonauta)

Boa parte dessa história foi contada na autobiografia Minha Fama de Mau, lançada pela editora Objetiva em 2009. Amigo de infância de Tim Maia e de Jorge Benjor, Erasmo começou com as bandas de rock The Sputniks, depois The Snakes, que tocavam sucessos internacionais. Em 1962, com o compacto duplo Mil Bikinis, assumiu a luta de fazer rock em português. E logo foi parar na linha de frente da Jovem Guarda. O movimento adaptava o “iê-iê-iê” dos Beatles à realidade brasileira, contou com um programa de TV exibido na Record comandado por ele, ao lado de Roberto e Wanderléia, e com a efervescência musical da época.

Aos 71 anos, o roqueiro acaba de comemorar 50 de carreira com um show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde recebeu amigos dos velhos tempos e dos novos, como Roberto e Marisa Monte, e interpretou sucessos como Mesmo que seja eu, Mulher (Sexo Frágil), Panorama Ecológico e Vem Quente Que Eu Estou Fervendo. O show virou CD e DVD, lançado pela gravadora Coqueiro Verde, de seu filho Léo Esteves. 

Mais sossegado, Erasmo mora na Barra da Tijuca desde o final dos anos 1970, longe das festas e em meio ao som dos passarinhos. Erasmo concorda que os roqueiros de sua estirpe envelheceram de maneira diferente das outras gerações: “O próprio rock está fazendo 70 e poucos anos. Então é natural que quem começou com ele esteja fazendo também. É prova de fidelidade. E de que dó maior não tem idade”.

Como foi se apresentar no Municipal do Rio? E a escolha do repertório?
Não sei o conceito que as pessoas têm do Teatro Municipal hoje em dia, mas quando eu comecei a minha vida nos anos 1960, aprendendo violão, era inatingível. Era um sonho distante. Jamais imaginei um dia pisar naquele palco. Então, foi uma vitória, ainda mais cantando rock and roll e elegendo-o como uma arte nobre. O repertório era o mesmo do show Rock and Roll, que vinha fazendo. Não foi criado especialmente para o Municipal. Queria encerrar a temporada no Rio e, por acaso, surgiu o Municipal. Aí Roberto e Marisa Monte quiseram participar e resolvemos gravar um DVD para imortalizar a data, digamos assim.

O Arnaldo Antunes te chama de poeta, filósofo, romântico incurável e roqueiro inveterado.
Eu me considero um compositor brasileiro. Não sou um poeta, mas um contista. Eu conto coisas do dia a dia que acontecem comigo e com as pessoas. Invento histórias. O romântico incurável e o roqueiro inveterado são culpa das mulheres e do rock and roll que bateu em mim e ficou.

O rock brasileiro perdeu um pouco da garra incendiária dos anos 1960-70?
A situação do mundo e da política mudou. Então a contestação perdeu um pouco a força e eu sinto falta dela hoje em dia, que está mais presente entre os rappers. Hoje, roqueiro tem berço, estudo e papai e mamãe.

Iê-iê-iê na Jovem Guarda, com Wanderlea e Roberto Carlos (Foto:Kanai/Acervo UH/Folhapress)

Iê-iê-iê na Jovem Guarda, com Wanderlea e Roberto Carlos (Foto: Kanai/Acervo UH/Folhapress)

Como é estar próximo das novas gerações do rock, como Os Filhos de Judith, que o acompanham nos shows?
A minha relação com as pessoas novas começa na minha família, porque tenho filhos e netos, e não fico no alto do meu pedestal esperando que eles subam para falar comigo. Eu desço para falar com eles e me transfiro para a idade de cada um para conversar. Então tenho que saber do Bob Esponja para falar com meu neto mais novo e da Guerra do Oriente Médio para falar com meu filho mais velho. Isso também se reflete na música. Tenho consciência que não sou mais jovem, mas quero estar com eles, porque é onde aprendo sempre.

Na época da Jovem Guarda, criticava-se o fato de que ela era uma cultura alienada. Então quando você, como roqueiro, passou a ser contestador?
A partir do momento em que resolvi fazer rock em português, porque, quando cantava em inglês, me sentia um papagaio repetindo as coisas que os gringos falavam. Então resolvi investir no rock em português, que é o que faço até hoje. Na hora que eu gozo, não digo: “My God, yeah, yeah, yeah”, mas sim “Meu Deus, que bom, que bom, que bom”.

Você lançou um álbum chamado Rock and roll. Outro chamado Sexo. As drogas ficaram de fora?
Eu jamais faria um disco falando de drogas. Mas elas foram uma realidade dessa trilogia criada nos anos 70, pelos Rolling Stones, e, como sempre, copiada pelo Brasil. Nunca foram merecedoras de destaque num trabalho meu. Amor, por exemplo, seria. Rock and roll, sexo e amor é Erasmo Carlos.

Tenho de saber do Bob Esponja para falar com meu neto mais novo e da Guerra do Oriente Médio para falar com meu filho mais velho. Não sou mais jovem, mas quero estar com eles, porque aprendo sempre  

No ano passado, você completou 70 anos. Paul McCartney completa agora e Mick Jagger no ano que vem. Vocês do rock envelheceram diferente das gerações anteriores?

O próprio rock está fazendo setenta e poucos anos. Então é natural que quem começou com ele esteja fazendo também. É prova até de fidelidade. Agora o dó maior não tem idade. É a maior prova de liberdade e de democracia. Pode ser negro, branco, asiático, velho, moço, gordo e magro. Ele é o mesmo para todo mundo. E tem o lance do progresso e das novas formas da alimentação e qualidade de vida. A consciência e o profissionalismo também são outros. Antigamente, a música era amadora. Eu lembro do Ciro Monteiro dizendo que o cara ia fazer um show num clube e, se o show fosse ruim, o diretor dava umas cervejas e pronto. Se fosse bom, pagava. Hoje em dia, não é assim.

Como é o seu dia a dia e de que modo o rock interfere nele?
O rock interfere na minha simplicidade. Dependendo da fase em que estiver, minha vida muda. Se estiver compondo, minha vida é de um jeito. Se estiver na estrada ou gravado, é de outro. Então, me adapto a cada fase. Mas minha vida é muito tranquila. Sou caseiro. Um cara que gosta de natureza e tem muitas plantas em casa. Também preservo a minha paz. Hoje em dia eu tomo cuidado com alimentação, saúde. Corto gordura e doce. Parei com o álcool. Quer dizer, bebo de vez em quando – agora, sim, socialmente (risos). Vou a poucas festas e sou um pouco antissocial. Antigamente, eu ia a muitas festas. Então bebia muito socialmente. Eu quero qualidade de vida e paz. No centro e nos bairros movimentados, há buzinas de automóvel e barulho. Onde eu moro é só planta, passarinho e rua sem saída.

Você foi um dos primeiros a tratar de ecologia em músicas.
Eu procuro ser um cara antenado e, naquele tempo, já sabia dessas coisas. Eu falava, mas ninguém me ouvia, como digo nos shows. Acredito que as coisas tenham piorado desde então, mas a diferença é que agora existe mais consciência, depois que o Sting e o Bono Vox falaram em inglês, todo mundo prestou atenção. Como a gente falava em português, ninguém ouvia.

Você tem uma rotina como compositor?
Eu não componho todo dia. O violão fica aqui, coitado, e toda vez que eu passo, ele olha para mim com a cara triste, porque nem tenho pegado nele. Só começarei a compor quando precisar e tiver alguma motivação para criar música ou algum trabalho que tenha de fazer para mim ou para outra pessoa. Agora, nada me impede de anotar e gravar coisas que vejo na televisão ou num filme, leio num livro, escuto de um amigo ou vem como lembrancinhas e pensamentos. Daí, quando preciso, eu tenho tudo anotado e gravadinho. É só desenvolver.

Sou um compositor. O Roberto só grava de vez em quando, quando quer. Fica anos sem lançar disco. Então, procuro outros parceiros, porque tenho de trabalhar. E quero aprender também com outras pessoas

Como funcionam suas parcerias?
Eu me considero um compositor. O Roberto só grava de vez em quando, quando quer. Fica muitos anos sem lançar disco. Então eu procuro outros parceiros, porque tenho de trabalhar. Faz parte de mim essa movimentação interna. Eu quero aprender também com outras pessoas. Agora, não vem do nada. É sempre um amigo, um cara que já conheço e que gosto da poesia dele. Sempre tenho que ter uma identificação com o artista. Tem sido assim com Nelson Motta, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Nando Reis, Arnaldo Antunes e Liminha.

Você sempre põe a mão em letra e música?
Varia muito. Eu não tenho uma forma específica de compor. Qualquer forma que você imaginar pode ser.

Como você avalia essa discussão em torno dos direitos autorais no Brasil?
O Ecad é muito importante e necessário, bicho. Agora se é bem ou mal administrado, não sei e não é problema meu. Antigamente, era muito pior. Era uma bagunça, como é hoje a internet. Todo mundo é dono de tudo quanto é música e ninguém paga um tostão.

Você tem controle sobre o pagamento dos direitos autorais que recebe?
Ninguém tem controle sobre nada. Nunca me mostraram nada. Aceito e pronto. Eu e todo mundo.

Você é contra os downloads gratuitos?
Para fazer o que quiser com a música, sou contra. Se você baixar por uma necessidade, eu acho legal. Agora para gravar e sair por aí ouvindo e fazendo cópias para os amigos e vendendo, sou contra, claro. Os profissionais têm o direito de ganhar sobre sua criação.

Hoje em dia as pessoas vão aos shows, filmam e colocam no YouTube. O que você pensa sobre isso?
Acho legal. Sou contra a comercialização daquilo que você faz. Se você filmar um show e botar no YouTube, serve até como divulgação. Quanto mais gente assistir, melhor. Quem gostar que compre o disco. Eu sou a favor da amostragem livre, mas a comercialização da amostragem para mim é crime.

Sua renda vem mais dos direitos autorais, da comercialização de discos ou da arrecadação em shows?
Durante um grande período na minha vida, veio da vendagem de discos, como compositor. Hoje em dia, vem de shows e depende da minha disposição. Eu já fiz o meu pé de meia. Então quero a manutenção da minha vida e isso me permite trabalhar menos. Se estivesse começando, tendo de comprar apartamento, primeiro carro, aí estava fazendo três, quatro, cinco shows por dia.

E no caso dos compositores que não podem fazer muito show, como a Velha Guarda da Portela?
Me toquei disso com Dorival Caymmi, porque teve um imbecil uma vez que disse: “A internet tem que ter tudo de graça, porque o artista recupera nos shows”. Isso é uma mentira, e lembrei exatamente do Caymmi, que já era um senhor debilitado. Como ele ia ganhar? E muitos outros que tem por aí. Você citou bem a Velha Guarda da Portela. Eles também não podem. Então fica uma coisa injusta. Tem de haver um jeito de eles terem o lugar e o dinheirinho deles. Tem coisas erradas que devem ser consertadas. Eu acredito que a própria Internet vai descobrir caminhos para solucionar isso com o tempo.

Como é sua relação com a gravadora Coqueiro Verde e no que facilita ou atrapalha o fato de ser administrada pelo seu filho Léo Esteves?
Para mim, só facilita. Primeiro que eu não me meto na gravadora. Tudo é ele quem faz. Não sei o que está acontecendo lá e nem quero saber. E segundo que eu sou artista de lá. Então me tratam muito bem.

Qual a importância da Turma da Tijuca para a música brasileira?
A lenda botou todo mundo lá, mas não é assim, não. Turma da Tijuca sou eu e Tim Maia. O Roberto morava em Lins de Vasconcelos e o Jorge Ben no Rio Comprido. Eles apenas frequentavam lá num certo período. Éramos meninos sonhadores, que mal tocavam violão direito e jamais imaginariam fazer sucesso na vida, ser um nome no país inteiro e, principalmente, tocar no Municipal.

Depois de lançar um DVD comemorativo de 50 anos, o que você espera e almeja no futuro?
Bicho, eu não espero nem almejo nada. Deixo as coisas acontecerem na minha vida. Não peço mais nada para ninguém e só agradeço as coisas que tenho e as novas que vão surgindo. Um mês antes do show do Municipal, eu não sabia que faria. De repente, apareceu. Daqui a pouco apareceu o Rock in Rio e agora o Rock in Rio Lisboa. Então simplesmente deixo acontecer e não faço planos.