Romeu e Julieta fincados na areia

Mangue Seco, eternizada por Jorge Amado em Tieta, resiste bela e aconchegante aos predadores, às intempéries e ao risco de desaparecer

Mangue Seco foi escolhido por Jorge Amado para ser o plano de fundo do livro Tieta do Agreste (Foto:Rk Barretos/Setur,BA)

O vilarejo de Santa Cruz da Bela Vista, na divisa entre Bahia e Sergipe, conquista os visitantes com suas imensas dunas, a beleza das praias e do Rio Real. Mais famoso com o nome de Mangue Seco, o lugarejo a 240 quilômetros de Salvador foi escolhido por Jorge Amado para ambientar seu romance Tieta do Agreste. Amado, se cá estivesse para festejar seus 100 anos no próximo 10 de agosto, certamente se entristeceria se visse esse paraíso tropical correndo o risco de desaparecer.

De um lado, sobe o nível do Rio Real. De outro, as águas salgadas do Atlântico já engolem grandes áreas da região. Para completar, a vegetação que protege as dunas também sofre com o turismo predatório, que muitas vezes vai de bugue.

“Mangue Seco tem ar puro, paz, tranquilidade e, olhando de cima das dunas, é fácil se encantar”, explica a professora aposentada Raimunda Araújo, filha do lugarejo. “Há aqui uma biodiversidade enorme, pássaros, tartarugas e caranguejos. Em poucos lugares você vê dunas desse tamanho. Tem também uma praia tranquila e o encontro do rio com o mar, que é muito interessante”, diz o prefeito Roberto Leite, de Jandaíra, município responsável por Mangue Seco.

E, se serviu de inspiração para Jorge Amado criar Tieta, não poderia ser outro o cenário da telenovela homônima (1989-1990). Ali foram rodadas principalmente as cenas estreladas pela atriz Claudia Ohana, Tieta ainda mocinha, correndo nas dunas. No centro da vila, as ruas de areia e as casas coloridas ainda hoje criam uma atmosfera cenográfica. Seis anos mais tarde, Cacá Diegues filmou a adaptação para o cinema, com Sonia Braga no papel principal.

As gravações ainda estão vivas na memória dos moradores. Maria Feliciano, de 54 anos, trabalhou como cozinheira para a equipe. “Naquela época, não existia restaurante aqui, e eu e outra garota fazíamos as refeições para os artistas, pois metade da equipe ficou hospedada em Mangue Seco. Eu não tinha muito tempo para vê-los e só acompanhei as gravações uma vez, em cima das dunas, que naquele tempo eram mais altas”, lembra.

O preço da fama

A TV e o cinema aqueceram tanto o turismo que o lugar não dava conta de receber os ônibus que encostavam ali às dezenas. Às vezes era preciso acionar a polícia para tentar conter o tumulto.

Mangue seco (Foto: Sônia Oddi/Olhar Imagem)

Jorge Amado certamente se entristeceria se visse esse paraíso tropical correndo o risco de desaparecer (Foto:Sônia Oddi/Olhar Imagem)

Muita gente que chegou acabou ficando, a ponto de hoje a população ser constituída principalmente de pessoas de fora. E as lendas vão se misturando a fantasias. É verdade, por exemplo, que local onde está o par de coqueiros conhecido como Romeu e Julieta é belíssimo, mas não foi exatamente ali que se gravou a abertura da telenovela com a atriz Isadora Ribeiro, como alguns costumam contar. Aqueles coqueiros já foram engolidos pelas dunas há muito tempo.

“Com familiares nos municípios de Estância e Tobias Barreto, ambos em Sergipe, Jorge Amado esteve aqui apenas duas vezes. Uma delas foi em 1935, antes de ir para a Rússia, porque estava sendo perseguido por Getúlio Vargas por motivos políticos, e aqui o acesso era muito difícil”, conta Ana Flora Nascimento Amado, de 73 anos, prima distante do escritor. Proprietária da sorveteria Recanto Dona Sula e da cafeteria Amado Café Amado, Ana escolheu morar em Mangue Seco há 11 anos, em função das belezas naturais, e considera que o livro, escrito nos anos 1970 – época do “milagre econômico” do governo militar –, levanta questões sérias. “Jorge romanceou a história e colocou Mangue Seco como pano de fundo para tratar do choque de gerações, do problema da luz elétrica, dos correios e da poluição, por ocasião do interesse de uma indústria química de se estabelecer por aqui.” Existe a lenda também de que Tieta, ou Antonieta, realmente existiu, mas morava na vizinha Estância.

Última praia no norte baiano, Mangue Seco tem cerca de 200 habitantes. Foi descoberta por acaso, em 1548, quando alguns padres se salvaram de um naufrágio. No século 19, já se destacava pela movimentação portuária. Em 1930, porém, a maré alta da Baía de Estância provocou o desaparecimento de uma rua, com armazéns e sobrados, e isolou o local entre a foz do Rio Real, o oceano e as imensas dunas que se movem com o vento. O Rio Real é um dos seis – junto com Fundo, Guararema, Piauí, Priapu e Sagui – que chegam ao mar passando por Mangue Seco e o único caminho para alcançar a vila – seja pela Bahia, seja por Sergipe.

Última praia do norte (Foto:Sônia Oddi/Olhar Imagem)

Última praia no norte baiano, Mangue Seco tem cerca de 200 habitantes (Foto:Sônia Oddi/Olhar Imagem)

Ali, as casas não têm número. E as ruas não têm nome, apenas apelidos. Rua da Praça, Rua do Meio, Rua da Praia e Rua da Escola. E durante muitos anos não havia ali sequer luz elétrica. “A primeira geladeira que surgiu aqui foi à bateria, assim como a televisão. Também foram instalados orelhões para nos comunicarmos com os parentes. Só depois vieram os telefones fixos. Para as correspondências, damos o endereço de pessoas conhecidas de cidades próximas”, conta Raimunda, que lamenta a ausência de comércio e bancos. 

A comunicação melhorou quando, em 2010, foi inaugurada a Ponte Joel Silveira, que atravessa o Rio Vaza-Barris, no lado sergipano. Mas a única maneira de chegar ao vilarejo ainda é de barco. O prefeito Roberto Leite promete iniciativas para aumentar o fluxo de turistas, assim como a construção de um cais para impedir o avanço do rio. “Mangue Seco deve ser um lugar para o turista passar o dia, e não para dormir. Não há estrutura para ele se hospedar e é preciso ser muito cuidadoso para não haver, por exemplo, contaminação do solo, pois os lençóis freáticos são muito rasos. Queremos criar uma estrutura boa de restaurantes e atrair os turistas de maneira sustentável, além de criar mais empregos.”

Desde novembro de 1991, o recanto é considerado Área de Proteção Ambiental, ou seja, com controle sobre a ocupação humana e regras para preservação da diversidade biológica e dos recursos naturais. Mesmo assim, os riscos de soterramento são evidentes. “As dunas estão invadindo o povoado e quem mora encostado está exposto. Há uns 15 anos, foi preciso fazer um trabalho de contenção com palha de coco, pois algumas pousadas e casas estavam sendo cobertas pela areia”, recorda Cleverton José dos Santos Lima, bugueiro de 35 anos nascido em Mangue Seco. Ele defende a criação de trilhas específicas para os bugueiros trabalharem, assim como de uma cooperativa para organizar a categoria na região, onde 90% das pessoas vivem do turismo.

O oceanógrafo David Zee, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), explica que a faixa costeira é zona de transição. Está sujeita a ter sua morfologia ditada tanto pela vazão dos rios como pela ação das ondas e dos ventos – todos responsáveis pela movimentação de sedimentos de um lado para outro. Mas considera que a ação humana também pode interferir no ecossistema. E, se o faz geralmente para o mal, também poderia fazê-lo para o bem, segundo Zee, com medidas como plantio de vegetação nativa em determinados pontos, expansão da praia com deslocamento de areia de um local para outro, construção de estrutura dura, “como um quebra-mar”.

Há cerca de dez anos, o pai de Cle­verton tinha um sítio que foi en­golido pelas águas e hoje se encontra cerca de 500 metros mar adentro. Ao mesmo tempo, as águas do Rio Real avançaram muito nos últimos anos. Ana Flora ­Amado conhece os movimentos. “A areia é mais difícil de você controlar. No mar, é possível construir um cais e fazer barragens. Mas as dunas são muito perigosas. Não as que estão bem próximas ao povoado, mas as que vêm atrás, cobrindo as da frente. Já cobriram duas praças grandes aqui. Do outro lado, o mar também vem avançando”, completa a dona do Amado ­Café Amado. 

Lembranças de Jorge Amado

Jorge Amado (Foto:Fernanda Galib)Pelo menos dois grandes eventos ­relembram os 100 anos de Jorge ­Amado no país. No Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a exposição Jorge Amado e Universal reúne centenas de fotografias, vídeos, livros, roupas, cartas, textos originais e objetos que representam o sincretismo religioso e a cultura baiana, em diferentes ambientes. Fica em cartaz até 27 de julho e depois seguirá para Salvador, no Museu de Arte Moderna da Bahia, de 10 de agosto a 14 de outubro.
Entre 4 e 12 de agosto, Ilhéus (BA) sediará o Festival Literário e Artístico Amar Amado. O evento terá atores que já interpretaram personagens de ­Jorge Amado, como José Wilker e ­Sônia Braga, lendo textos nas janelas de ­casarões; exibições de teatro, de adaptações cinematográficas dos ­livros e shows de Margareth Menezes e ­Caetano Veloso; e cardápios ­temáticos nos restaurantes. Para o festival, o quarteirão do centro histórico onde o escritor viveu será revitalizado