Queda de braço em boa hora

Se gastar menos com juros, o governo pode aliviar impostos, estimular a produção e ampliar investimentos. Para isso, trava embate com a velha lógica do mercado

Aos poucos, o apartamento vai ficando com cara de pronto. A analista de projetos Susana Cardoso de Souza e o analista de sistemas Juan Carlos Uzelen dão os últimos retoques. “É a parte mais gostosa”, comemora Susana. “É quando o sonho vai tomando forma”, completa Juan. Com as chaves na mão, ainda faltam R$ 110 mil para que seja, também, um sonho quitado. O casal tinha opção de negociar o saldo devedor com o mesmo banco que custeou a obra, mas decidiu pesquisar. “A gente fez consultas, analisamos juros e outras coisas e optamos pela Caixa”, conta ele.

Juan e Suzana pesquisaram taxas e encargos antes de decidir onde financiar o apartamento (Foto: Danilo Ramos)

Montador de uma fábrica de caminhões da região do ABC paulista, João Eduardo de Souza, de 32 anos, já está com a questão da moradia resolvida, mas tem outras preocupações. Casado e pai de um filho de 8 meses, no momento em que conversa com a reportagem, no final de maio, está parado há uma semana. Com a produção em baixa, a empresa concedeu folga a todo o setor de montagem e João está angustiado. Tem oito anos de fábrica e já viu outras crises. “Vem à cabeça a crise de 2009, quando teve demissões e muita gente que estava com contrato por tempo determinado acabou saindo”, lembra. “A gente fica inseguro, não dá para fazer planos.”

Para casos como o de Susana e Juan, algumas medidas recentemente adotadas pelo governo federal com o objetivo de estimular o crescimento da economia já surtem efeito. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal foram os primeiros a reduzir taxas de juros com vistas a baratear o crédito. O Planalto, espera assim forçar os bancos privados a seguir a mesma trilha para não perder clientela para as instituições controladas pela União. Mas talvez o montador João tenha de esperar um pouco mais para superar sua angústia. 

Em maio, o governo anunciou outras medidas voltadas a aquecer a atividade industrial, entre as quais a redução de juros e da entrada e a ampliação dos prazos para financiamento de ônibus e caminhões. “As medidas são importantes porque o setor estava parando, com folgas e férias coletivas em empresas do topo da cadeia produtiva. E se a situação está assim nas grandes, imagine nas pequenas e médias”, diz o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. E vale lembrar que essas medidas carecem de um tempo de maturação para surtir efeito no mercado. Esperamos uma retomada para o segundo semestre.”

Outro cenário

O ano começou com sinais nítidos de que as engrenagens da economia brasileira, que permitiram ao país experimentar, em período recente, uma virtuosa combinação de crescimento econômico com desenvolvimento social, já não rodam com a mesma desenvoltura. 

Gráfico 1A indústria exibiu sinais de enfraquecimento, atordoada pelo câmbio desfavorável e pela competição desleal principalmente com os produtos chineses. O consumo, mola-mestra do crescimento econômico na era Lula, também apresentava indícios de retração, atribuída ao maior endividamento das famílias. Símbolos da prosperidade dos últimos anos, os automóveis começaram a encalhar nos pátios das montadoras, enquanto diminuíam os lançamentos de imóveis. O crédito tornou-se mais raro e mais caro para pessoa física e jurídica, contribuindo para engessar o crescimento econômico na ponta do consumo e na do investimento na produção. 

No front externo, a Europa voltou a emitir sinais de SOS, com a ameaça de a Grécia abandonar a moeda única, levando consigo para o buraco países como Espanha e Itália. A China, nosso principal parceiro comercial no ano passado, segue em processo de desaceleração, o que já afeta a demanda por produtos brasileiros, principalmente commodities como aço e grãos. Os Estados Unidos recuperam-se lentamente dos chacoalhões de 2008, mantendo-se longe ainda de representar refúgio seguro para as exportações brasileiras.

Com essa combinação negativa de fatores, a presidenta Dilma Rousseff viu-se, no início do ano, diante de um intricado jogo de xadrez, com risco de seu governo ser marcado por uma queda das taxas de crescimento. Mas, como reconhecem os economistas ouvidos pela Revista do Brasil, não houve recuo diante das dificuldades. A divulgação da queda de 0,3% em março do Índice de Atividade Econômica do Banco Central, radiografia mensal dos rumos do PIB, foi a senha para a intensificação de medidas emergenciais. 

Para fazer frente ao desafio, Dilma valeu-se da reedição de fórmulas adotadas com sucesso pelo governo Lula durante a crise financeira global de 2008-2009, reativando a desoneração de segmentos vitais para o consumo e o emprego. Paralelamente, deu novas demonstrações de coragem política, ao romper paradigmas em assuntos considerados tabu: alterou as regras da poupança, de forma a abrir espaços para uma queda maior dos juros; e forçou, por meio dos bancos públicos, o sistema financeiro a baixar juros e a destravar o crédito. 

O arsenal de medidas de estímulo à economia e de correção de rumos empregado nos últimos meses trouxe algum sucesso no enfrentamento da crise. Na terceira semana de maio, dados divulgados pelo BC mostraram que a concessão de empréstimos havia subido 8,1%, na média diária, para pessoas físicas, e 4,6%, para as empresas em abril, na comparação com março. O BC atribuiu a melhora à redução das taxas de juros e do spread (leia texto na página 15).

Gráfico 2

Caminho certo

Para economistas, ainda é cedo para saber se as medidas adotadas resultarão em um nível de crescimento de 4% em 2012, como prevê o ministro da Fazenda, Guido Mantega. A incógnita é a profundidade e duração da crise na zona do euro, que já está convulsionando o mercado financeiro mundial, o que inclui reflexos sobre o câmbio e sobre a bolsa brasileira – que acumulou queda de cerca de 20% entre meados de março e a terceira semana de maio. Enquanto isso, o dólar, que era trocado por R$ 1,80 no início de março, rompeu em maio a barreira dos R$ 2 e testava o patamar de R$ 2,10, que só não se concretizou devido às intervenções do BC. 

“O impacto da crise europeia é real e pode ser ainda mais sério”, diz o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio. “Um recrudescimento do cenário internacional pode trazer para o Brasil o contágio da crise global”, acrescenta. 

A disposição revelada pelo governo federal no enfrentamento da situação, contudo, tem agradado. “O governo tem se mostrado atento. As medidas adotadas até o momento são acertadas”, acredita o professor Claudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia da Unicamp. Samy Dana, da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que o Executivo tem agido com rapidez, adotando medidas importantes. “Não está sentado, esperando.”

De acordo com o consultor Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), a presidenta Dilma tomou o caminho certo ao buscar ampliar e aperfeiçoar a política econômica adotada por Lula, que apostou no estímulo ao consumo como motor do crescimento. Segundo ele, é preciso desmitificar a ideia de que o governo Lula somente deu certo, no campo econômico, porque preservou o tripé da política econômica da era Fernando Henrique Cardoso: regime de metas para a inflação e para o superávit primário e câmbio flutuante. “A política econômica de Lula foi mais ampla”, diz Khair. 

O consultor lembra que o governo Lula optou por adotar uma política de estímulo ao consumo que se irradia de baixo para cima na pirâmide social brasileira. “O que está fazendo a Dilma? Está ampliando a política de estímulo ao consumo, ao reforçar o Bolsa Família, criar o programa Brasil sem Miséria, institucionalizar o salário mínimo vinculado ao crescimento do PIB até 2014. São todas iniciativas que colocam recursos na base da pirâmide”, afirma Khair. 

Indústria

A indústria brasileira transformou-se em um dos alvos preferenciais da política de estímulos adotada por Dilma após a constatação de que no primeiro trimestre de 2012 o setor apresentou recuo de 3%, segundo informações do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Para reverter esse quadro, o governo editou medidas de redução da carga tributária de segmentos como a indústria têxtil, bastante suscetível à concorrência chinesa. 

Em maio, com a constatação de que 400 mil veículos lotavam os pátios das montadoras e as lojas, o governo procurou adotar medidas que permitissem ampliação de prazos, entrada menor e menor incidência de juros sobre o crédito para a compra de veículos, assim como a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O setor automotivo responde por 25% da atividade industrial e por 11% de todo o PIB do país. Para o professor Dedecca, é natural uma diminuição da atividade econômica no primeiro trimestre, para começar um aquecimento no segundo, que deverá ter seu pico no quarto trimestre. 

Amir Khair considera, no entanto, que a melhor forma de estimular a indústria é por meio do câmbio. A valorização do dólar melhora significativamente as condições de competição da indústria brasileira, que vinha perdendo espaço inclusive no mercado doméstico para produtos importados, em razão da força do real. Mas Samy Dana, da FGV, pondera que “o risco que se coloca é a perda de renda da população, diante de um processo inflacionário mais encorpado”. 

Cruzada contra o spread

Khair admite que a alta do dólar produz um efeito de curto prazo na inflação. Mas, no longo prazo, acredita que o câmbio na casa dos R$ 2,90 pode ajudar no equilíbrio da economia. 

Ele lembra que, embora o governo federal tenha se mostrado disposto a promover desonerações com o objetivo de estimular o consumo e ampliar a competitividade da indústria brasileira, os esforços nesse sentido têm limites, uma vez que um dos principais impostos, o ICMS, é estadual – e os governos dos estados já se mostraram, em ocasiões anteriores, refratários à ideia de promover cortes em sua arrecadação.

Os movimentos mais ousados da luta em prol do crescimento econômico se deram na área financeira. A presidenta Dilma rompeu um tabu que durou mais de 20 anos, ao alterar a remuneração da caderneta de poupança. A medida se fez necessária para dar sustentação à política de redução da taxa básica juros. A queda da Selic, além de influenciar no setor de crédito, permite ao governo economizar com o serviço de sua dívida. Gastando menos com o pagamento de juros, o Tesouro ganha não só fôlego para reduzir impostos – estimulando a produção e o consumo – como maior capacidade de investir em obras de infraestrutura e políticas públicas.

Foi um gesto de ousadia política escancarar, em pronunciamento em cadeia nacional no Dia do Trabalho, sua contrariedade em relação ao tamanho do spread bancário – a diferença entre o que os bancos pagam para captar dinheiro e o que cobram para emprestá-lo. Paralelamente, pôs a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil na linha de frente da redução das taxas cobradas pelos seus serviços, dando início a uma saudável competição no segmento.

“Nós não possuímos um sistema financeiro que participa da saúde da sociedade. Temos um sistema de agiotagem, que tira dinheiro da sociedade e não proporciona crescimento econômico”, afirma Amir Khair, apoiando as medidas adotadas pelo governo federal. Segundo ele, o governo agora está combatendo essa “anomalia”. Claudio Dedecca, no entanto, considera a queda de braço com os bancos uma briga dura e a redução do spread um processo lento. 

Levantamento feito pelo Dieese ajuda a entender as razões que levaram a presidenta a promover essa cruzada. Tratada por segmentos mais conservadores da sociedade como uma intervenção indesejada, a iniciativa foi um tiro certeiro no modo de operação de um segmento oligopolizado, que produz benefícios para poucos e entraves para a economia como um todo.

O spread bancário cobrado no país, que em maio caiu de 28 para 26,5 pontos percentuais, está entre os maiores do mundo. Na comparação com outros países latino-americanos, somente o Paraguai se equipara ao Brasil, com taxa de 26,9 pontos percentuais. Argentina (3,39 pontos percentuais), Uruguai (5,71), Bolívia (9,61) e Peru (16,39) apresentam spreads muito menores. Mesmo na comparação com outros membros dos Brics, o clube das nações emergentes, como China (3,06) e Rússia (3), o Brasil exibe um spread anabolizado.

Estudo do Dieese mostra que, nos dez maiores bancos do país, mais de um terço do spread é lucro. Os bancos alegam que a inadimplência, o custo tributário elevado e o recolhimento compulsório de depósitos a prazo impedem sua queda, mas os técnicos responsáveis pelo levantamento asseguram que há espaço para baixar o custo do crédito. O risco de inadimplência, por exemplo, compõe 28% do valor do spread, enquanto no total do sistema bancário brasileiro a inadimplência média é de 3,7%. 

Outro fator que induz aos spreads mais altos é o sistema bancário altamente concentrado. Segundo o Dieese, os seis maiores bancos controlam mais de 80% dos ativos totais e das operações de crédito, apresentando estrutura próxima à de um “cartel”. Em 1990, disputavam espaços 226 instituições financeiras, entre nacionais, estrangeiras e públicas federais e estaduais. Em 2010 – dezenas de privatizações, fusões e aquisições depois –, o segmento se reduziu a 157 instituições. Daí a importância da atuação dos bancos públicos para quebrar a lógica e influenciar na queda dos juros. 

Grafico 3O crescimento da concentração coincide com um aumento significativo do lucro dos bancos. No período entre 1994, quando foi implantado o Plano Real, e 2011, o lucro líquido dos bancos apresentou expansão de 1.112%, passando de R$ 4 bilhões para R$ 53,4 bilhões no período. Em 2011, os seis maiores bancos arrecadaram R$ 77 bilhões somente com a cobrança de tarifas – crescimento de 13,5% em relação ao ano anterior.

Vista comumente pelo “mercado” como um processo de ganho de produtividade, competitividade e eficiência, a concentração oferece, no outro lado da moeda, uma face negativa: o aumento da exclusão bancária, que afeta a população mais carente e distante dos grandes centros. Com as privatizações a partir dos anos 1990, os bancos públicos foram reduzidos de 34 para apenas nove. 

“Os bancos têm função social e, sem deixar de serem lucrativos, têm plenas condições de assumir com maior responsabilidade o papel de ajudar a impulsionar o crescimento do país. Os bancos públicos são ferramentas importantes dos governos para esse fim. Pena que tiveram sua presença diminuída pelas privatizações, o que deixou o sistema financeiro mais concentrado”, diz a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira. 

Colaborou Bruno Mascarenhas, da TVT