Corações Livres

'On the Road'. de Jack Kerouac, inspirou os sonhos de gerações de desencantados com o sonho americano. Meio século depois, vira filme nas mãos de Walter Salles

Os Estados Unidos são uma sociedade conservadora. E o “sonho americano”, alicerçado nos pilares trabalhar-comer-consumir-obedecer, é a célula-tronco da sociedade capitalista. Por isso não deixa de ser curioso que muitos dos ídolos cultuados na América, de ontem e de hoje, foram ou são tremendos marginais, vagabundos incorrigíveis e muitos deles drogados convictos.

O escritor Jack Kerouac sempre estará no topo da lista de anti-heroís
(Foto:John Cohen/Getty Images) 

No topo dessa vasta lista de anti-heróis sempre estará o nome do escritor Jack Kerouac, autor do antológico livro On The Road, traduzido aqui como Pé na Estrada. A obra, uma espécie de bíblia hippie, chega agora ao cinema com mais de meio século de atraso, dirigida pelo brasileiro Walter Salles, de Central do Brasil. 


Além da mão segura de Salles, o filme é uma produção de Francis Ford Coppola. O diretor da saga de O Poderoso Chefão e Apocalipse Now já havia exibido seu lado beat em obras menos famosas, como Vidas sem Rumo (1979) e Selvagem da Motocicleta (1982), numa espécie de trilogia da juventude, concluída em 2009 com Tetro, filmado na Argentina. Na Estrada mostra a saga de Kerouac, que no final da década de 1940 caiu no mundo, de carro, de carona, de trem, vagando em busca não do sonho americano, mas da utopia de viver a vida intensamente.

A louca história dessas viagens foi escrita de forma compulsiva e alucinada em três semanas (segundo o próprio autor). Ele ajustou um enorme rolo de papel para telex para que não precisasse trocar de folha enquanto escrevia. A ideia era que os originais estendidos feito um tapete resultassem na representação de um caminho, a estrada. O resultado foram 40 metros de textos – que hoje valem uma fortuna, equivalente a uma obra de Van Gogh. 

As rotas de Kerouac

 

On the Road é uma fábula sobre as estradas, mas suas histórias são verdadeiras. Kerouac traduz o espírito dos caminhos que percorreu ao lado de seu companheiro Neal Cassady e os recria nos personagens Sal Paradise e Dean Moriarty. Lançado em 1957, foi sucesso imediato e transformou o autor no anti-herói de uma América fracassada. O romance fez (e ainda faz) a cabeça de muita gente no mundo todo. 

A linha vermelha mostra a primeira rota traçada por Kerouac através dos EUA. A viagem começou e terminou em Nova York em 1947 (Foto: John Cohen/Getty Images/1959) 

Deu vida à geração beat, mais adiante ao movimento hippie, e as bases de um estilo de comportamento posteriormente chamado de contracultura. 

On the Road arrancou as pantufas da literatura, levantou-lhe a barra da saia e a levou para dar uma voltinha na lama do acostamento”, diz Eduardo Bueno, um dos tradutores da primeira fornada do clássico para o português. Lançado com mais de cinco décadas de atraso, o esperado longa Na Estrada, coprodução Brasil, França e EUA, já é um sucesso. A  estreia na França, no final de maio, no 65º Festival de Cannes, encerrou uma longa jornada. A produção percorreu mais de 100 mil quilômetros em oito anos de trabalho. 

Logo que recebeu de Coppola o convite para filmar, Salles decidiu ir para a estrada, refazer as rotas de Kerouac. “Senti que a única maneira de realizar uma adaptação que fizesse justiça a Kerouac seria fazer um documentário em busca de On the Road”, comenta. Também apoiado num documentário sobre o livro, ainda não exibido no Brasil, o cineasta lançou-se à própria aventura. ­“Fomos de cidadezinha em cidadezinha, sem uma programação previamente estabelecida, olhando não somente para a estrada, mas para aquilo que havia à margem dela.” ­Segundo ele, processo semelhante à preparação de ­Diários da Motocicleta, quando refez duas vezes a rota trilhada por Ernesto ­Guevara e Alberto Granado do sul ao norte do continente americano.

Com uma pequena equipe de três pessoas, Salles foi entrevistando personagens do livro marginal e poetas da geração beat ainda vivos, como Lou Reed ou David Byrne. “Foi uma verdadeira viagem iniciática, um processo de aprendizado extremamente estimulante”, conta o diretor.

O bando infame

Cumplicidade na beat generation (Foto: Hank O'Neal/1984)

Jack Kerouac não esteve sozinho nas estradas por onde andou ou na literatura que subverteu com um jeito novo de escrever – espontâneo, instintivo e sem revisões. Seu bando infame incluiu poetas e escritores tão ou mais malucos do que ele, como Allen Ginsberg, William ­Burroughs, Gregory Corso, Lawrence ­Ferlinghetti, Michael McClure, Gary Snyder. Essa turma representou a primeira safra da tal beat generation – expressão criada por Kerouac em 1948.

Cumplicidade Allen Ginsberg e William Burroughs foram dois dos representantes mais longevos da beat generation. Amigos desde a juventude, morreram no mesmo ano, 1997 (Foto: Hank O’Neal)

“Os beats inspiraram jovens a romper com atitudes e o estilo de vida convencional e procurar novos modos de expressão”, afirma o poeta Cláudio Willer, tradutor do clássico beat Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg, e autor do livro Geração Beat (ambos da L&PM). Segundo o próprio Ginsberg, o “movimento literário da geração beat” era formado por “um grupo de amigos que trabalharam juntos em poesia, prosa e consciência cultural”. O termo se tornou popular nos EUA ainda nos anos 1950.

Para entender a importância da literatura beat, no entanto, é preciso olhar para trás. Para começar, os Estados Unidos do pós-guerra, reafirmados como potência mundial, tinham Eisenhower como presidente. Nixon, o vice. Veteranos voltavam para casa em busca do american dream. Começava a corrida espacial. Os soviéticos lançavam o Sputnik I e os americanos, o Explorer I. Enquanto ambos corriam para o espaço, na terra  protagonizavam a Guerra Fria, travada entre o capitalismo e o comunismo.

No campo social, avançavam movimentos pelos direitos humanos e toda uma ­revolução comportamental que estruturaria na década de 1960 a luta pelos direitos civis, em defesa das mulheres, dos negros, dos homossexuais. A Lei Seca era coisa do passado. Findava a temporada de perseguição a comunistas e progressistas, desencadeada pelo senador John McCarthy – a incipiente geração beat, não partidária por natureza, foi solidária aos caçados pelo macartismo. Ou seja, havia ­terreno ­fértil para a revolução (e a bebedeira) de Kerouac e sua gangue. E a trilha sonora era de primeira qualidade. Entravam em cena Thelonius Monk, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, entre outros.   

Os brasileiros

Filme On The Road (Foto:Divulgação)

Em 1957, em São Paulo, o então prefeito Jânio Quadros proibia o rock nos bailes. A velocidade da informação era a do rádio, da tevê a válvulas e das rotativas. Ainda assim, não tardou a borbulhar por aqui a fervura beat americana. 

Cena de On The Road, filme dirigido pelo brasileiro Walter Salles: “Fomos de cidadezinha em cidadezinha olhando não somente para a estrada, mas para aquilo que havia à margem dela” (Foto: Divulgação)

Nem o golpe militar frearia mentes e corações ávidos por liberdade, e o Brasil se revelou rapidamente celeiro fértil. Da bossa nova à renovação da MPB, o teatro, a literatura, a poesia e o cinema engajados à cultura marginal e à contracultura. Nascia uma literatura visceral, em vozes como de Roberto Piva e Jorge Mautner.Segundo o poeta Cláudio Willer, a cultura beat chegou às terras brasileiras por volta de 1959, 1960, por intermédio de reportagens no antigo Caderno B do Jornal do Brasil e no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Entre os leitores mais atentos estavam o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa e Luiz Carlos Maciel, futuro difusor e pensador da contracultura. 

E Roberto Piva escancarou o movimento para o Brasil, segundo Willer. “Não mais como notícia, matéria jornalística, mas como diálogo, relação no plano da criação.” A estreia de Piva foi com o instigante Paranoia, ricamente ilustrado por fotos de Wesley Duke Lee, publicado em 1967 pelo editor Massao Ohno. Em 2009, o livro ganhou cuidadosa nova edição pelo Instituto Moreira Salles. Paranoia é pura provocação. Adepto de uma vida desregrada, Piva incorporou totalmente a alma beat.

Vagabundeou o quanto pôde pelo centro de São Paulo e, em perfeita sintonia com Ginsberg, McClure, Snyder, Kerouac, Corso, inovou, experimentou, ousou e rompeu com todo e qualquer academicismo. E também já foi parar em dois documentários. No média-metragem Assombração Urbana, de Valesca Dios (2005), e em Uma Outra Cidade, de Ugo Giorgetti (2000). Por triste coincidência, como ­Kerouac, morreu pobre, em 2010. Passou os últimos anos solitário em seu pequeno apartamento no centro da capital paulista. 

Equivalentes brasileiros da beat generation renderiam uma extensa lista. Dos mais próximos ao tropicalismo, Wally Salomão e sua Navilouca, Torquato Neto, Hélio Oiticica e Rogério Duarte. “Cronologicamente, podem ser vinculados a outro ciclo, da contracultura e das rebeliões juvenis da década de 1960, por sua vez com um enorme débito com relação à beat”, observa Cláudio Willer. “Isso vale também, certamente, para Raul Seixas.” O experimentalismo é levado por Zé Celso para o Teatro Oficina; para o cinema marginal de Jairo Ferreira, Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Carlos Reichenbach; para a poesia marginal – reunida na antologia 26 Poetas Hoje, de 1976, preparada por Heloisa Buarque de Hollanda. Sem contar os escritores viajantes Antonio Bivar e Eduardo Bueno, que refizeram os trajetos de Kerouac antes de se destacar como tradutores e difusores dessa cultura.

Filhos da geração

Mesmo que você não faça a menor ideia de quem foi Jack Kerouac, já ouviu ou leu muita coisa a ver com ele. Ele foi idola­trado por muita gente famosa. Os Beatles têm a raiz beat identificada por John Lennon. Bob Dylan, Jim Morrinson, Tom Waits, Franz Zappa, cada música “atirando” para um lado, têm algo do guru das estradas em seu DNA; no cinema, Johnny Depp, Win Wenders, Gus Van Sant (e por que não arriscar Francis Coppola), idem. 

Outro beat da pá virada, William Burroughs, reconheceu o sucesso do amigo: “Kerouac abriu um milhão de cafés literários e vendeu bilhões de jeans Levis”. Apesar da indústria criada em torno do escritor, ele morreu em 1969 na pindaíba, duro e, por ironia, de costas para uma tal revolução da qual fora mentor. 

“Passou seus últimos anos sentado no sofá vendo programas de auditório na TV, na casa da mãe, onde morou a vida inteira, barrigudo, alcoólatra e reacionário”, escreve Eduardo Bueno na introdução de Pé na Estrada. Kerouac terminou a vida frustrado e pobre. Mas, morto, sua lenda só tem crescido. “Seu legado, em essência, desde que os seguidores saibam discernir, é que, apesar de tudo, a liberdade e o livre-arbítrio são para todos”, afirma o escritor Antonio Bivar, atualmente em Londres. 

 

A sonoridade das ruas

Capa da primeira edição do clássico, publicado em 1957O livro-mito On the Road passa de geração em geração sem perder a força narrativa. Entre as muitas curvas sinuosas, repletas de jazz, sexo e drogas, o escritor desvendou o espírito de uma época. “Kerouac empenhou-se em forjar uma nova prosódia, capturando a sonoridade das ruas, das planícies e das estradas dos EUA, disposto a libertar a literatura americana das amarras acadêmicas”, escreveu Eduardo Bueno, na introdução da edição brasileira.

“Essa coragem de se lançar em estradas desconhecidas permitiu a experimentação, a visceralidade, o desregramento dos sentidos (haste fundamental para as invenções), o espiritualismo, o antimaterialismo”, afirma o poeta Celso de Alencar. “Foi uma rebelião contra um sistema caduco, sem criação.”

O termo beat, com o qual Jack Kerouac batizou sua geração, tem relação com a busca espiritual intrínseca a sua obra e vida. O vocábulo, entre outros vários significados, contém o radical de “beatitude”. Kerouac acreditava na pregação da bondade universal. E os beats, por sua vez, na criação espontânea, na arte que vem do nada. “Acreditavam na liberdade do espírito”, arremata Alencar. 

Na década de 1960, a ideologia ­hippie, na arte ou no comportamento, ancorou-se também nas ideias de Kerouac. Paz e amor, busca interior, atitude transgressora, subversiva, rebelde, a ponto de estar também na raiz da aparentemente contrastante cultura punk.
Talvez isso explique por que Kerouac segue idolatrado não apenas entre famosos e por toda parte. Nas livrarias de Nova York, diz-se, On the Road não é visto nas prateleiras, e sim ao lado dos caixas: é um dos livros mais roubados.