Europa à deriva

Candidato socialista avança na França, mas votos dos conservadores superam os 50%

(Foto:Yves Herman/Reuters)

Faz algum tempo que, nas conversas com amigos em Berlim, venho enfatizando que brincam com fogo os governantes europeus, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, com suas políticas de “austeridade” enfiadas goela abaixo das populações em rápido empobrecimento. Devo dizer que quase ninguém – pelo menos até agora – me levou muito a sério.

Vitória do candidato socialista pode ocorrer mais por rejeição a Sarkozy 

 Primeiro, porque essas políticas de recessão fazem parte de um “imaginário virtuoso” da economia, que recomenda contenção de despesas, sobriedade, cortes nos investimentos sociais, crença no poder de remissão social do individualismo liberal, conforme a pregação dos seguidores do economista austríaco Von Hayek, ardoroso crítico de Lord Keynes, inspirador do redistributismo de renda no estilo rooseveltiano.

Segundo, porque é difícil entender o que quer dizer “brincar com fogo”. Talvez – tenho até alguma certeza – eu persista em me explicar mal, por temer tocar em certos tabus.

Mas agora os tabus vieram à tona: talvez a questão – à minha revelia – se torne mais clara e explícita. O tabu veio à tona na forma da expressiva votação (18%) dada à candidata Marine Le Pen, da Frente Nacional, de extrema-direita, no primeiro turno da eleição francesa.

O candidato socialista, François Hollande, que chegou em primeiro lugar, com 28%, é o favorito para ganhar o segundo turno, em 6 de maio. Assim mesmo, deve-se registrar que a soma de votos dos conservadores (Le Pen, Sarkozy, François Bayrou) vai a mais de 50% dos votantes, enquanto as esquerdas (Hollande, Jean-Luc Mélenchon, mais as candidaturas de verdes, comunistas e outros dispersos) não atingem a metade do eleitorado. 

Isso significa que, se Hollande vencer, será mais por rejeição a Sarkozy do que por si mesmo, embora seu estilo ponderado e calmo tenha ampliado sua aceitação pelo eleitorado conservador. E também significa que Le Pen, do alto de seu terceiro lugar no primeiro turno, está embaralhando e repartindo o baralho, pronta para dar as cartas.

Le Pen é uma política jovem (43 anos), carismática, que defende um programa sectário mas não fala de modo arrogante. A chave de seu programa é a rejeição ao euro, a crítica da submissão de Sarkozy à chanceler alemã, Angela Merkel, na crise monetária e financeira europeia, e uma xenofobia generalizada, do tipo “empregos franceses para franceses”.

Sua atuação atraiu votos ponderáveis entre os jovens (parcela em que vinha na frente dos demais), os mais atingidos pelo desemprego, e em regiões assoladas pelas políticas recessivas, como no nordeste da França, em processo de desindustrialização. Seu estilo mais duro que o eclético de Sarkozy cativou para si parcelas ponderáveis da burguesia tradicional, seja a de espírito aristocrático, seja a nacionalista, e da classe média conservadora.

Criou-se uma situação que lembra vagamente a da Revolta da Vendeia, de 1793 a 1796, em que aristocratas apeados do poder, padres da Igreja conservadora e camponeses empobrecidos se uniram para enfrentar os republicanos revolucionários. Em grande parte a revolta fracassou, mas é bom lembrar que ajudou os jacobinos radicais a intensificar a repressão – naquilo que ficou conhecido na história como “O Terror”. Isso solapou sua base de apoio, abriu espaço para sua queda e, depois, para o governo do déspota Napoleão, ora mais esclarecido, ora menos, mas sempre despótico – o imperador que espalhou manu militari a revolução burguesa na Europa e quis ao mesmo tempo restabelecer a escravidão no Haiti.

Le Pen está longe de ser uma Napoleão, seja nos propósitos, seja na envergadura. Seu desejo mais imediato, e isso pode ser favorável para Hollande, é substituir Sarkozy na liderança da direita francesa. Para ela e seu grupo próximo é mais interessante tê-la como líder da oposição a Hollande – cujo programa certamente vai se chocar com o conservadorismo hegemônico na zona do euro, na União Europeia e no Banco Central Europeu – do que como coadjuvante secundária em mais um mandato de Sarkozy.

Ou seja, independentemente do resultado do segundo turno, o do primeiro mostra que a direita está marchando mais ainda para a direita, abraçando as causas da nova xenofobia cultural e religiosa que assola vários países da Europa, como Áustria, Hungria, Holanda e a própria Alemanha, ainda que sem a dimensão institucional desses outros países. Isso é que venho chamando de “brincar com fogo”. Mesmo algumas das manifestações mais espetaculares da resistência grega contra as medidas arrasadoras de seu poder aquisitivo e dos direitos de sua classe trabalhadora e dos aposentados, entre outras medidas recessivas da ortodoxia, são preocupantes. Há quem se entusiasme com as fotos das bandeiras alemãs sendo queimadas nas ruas ou as caricaturas da chanceler Angela Merkel vestida à la nazi. Como dizia amigo meu, “inclua-me fora disso”. Queimar bandeiras aqui na Europa nunca acabou em boa coisa.

Na eleição de 22 de abril, François Hollande conseguiu a proeza de liderar um verdadeiro renascimento da esquerda, ela que estava tão alijada do debate institucional na Europa. Seu programa, ainda que tímido, projetando uma revisão do pacto fiscal europeu e um revigoramento dos investimentos públicos, bem como a taxação maior de grandes fortunas e lucros, é um passo adiante significativo e necessário.

Mas o sucesso de Le Pen evidencia o vigor da extrema-direita francesa, também com alcance europeu. Sua penetração entre os jovens mostra como o futuro está a perigo – e como a Europa está à deriva.