Guerra civil nos sertões do Sul

Para cineasta, a Guerra do Contestado, conflito entre caboclos e o poder público, ainda é um “filho enjeitado” da história

(Foto: Claro Gustavo Jansson)

Cem anos atrás, na divisa entre Paraná e Santa Catarina, começou o conflito que ficaria conhecido como Guerra do Contestado (1912-1916), deflagrado a partir da contestação da concessão de terras feita pelo governo a uma companhia estrangeira. Daí o nome. Um século depois de seu início, que se completará em outubro, o cineasta Sylvio Back acredita que o episódio continua sendo uma espécie de “filho enjeitado” da historiografia brasileira. “Ainda que se constitua no maior e mais sangrento conflito pela posse e pela usurpação da terra no século 20, a impressão que sempre retorna, seja como catarinense e brasileiro, seja como cineasta que frequenta com sua obra a nossa míope história recente e remota, é que o Contestado vem desmilinguindo, está se tornando cada vez mais invisível”, diz. Autor do documentário Guerra dos Pelados (1971, referência aos revoltosos, que raspavam a cabeça), em 2010 Back voltou ao cenário para uma refilmagem, os “restos mortais”, prestes a ser lançada. “Inúmeras vezes fui surpreendido pelo total desconhecimento da população sobre sua própria biografia”, afirma. 

Para ele, o país é refém da chamada “história oficial”, que mantém ao largo eventos fundamentais do país. Back conta que, recentemente, durante os debates após a exibição de O Contestado – Restos Mortais, parte do público, incluindo jornalistas e críticos, “se declarou surpresa com a efervescência e a brutalidade institucional, política, sociológica e bélica dos acontecimentos que se sucedem na tela, reconhecendo que jamais tinham ouvido falar no Contestado”. O susto foi ainda maior “para a amperagem terrorista que presidiu os embates armados entre rebeldes, tropas do Exército, milícias de jagunços do coronelato da região e as polícias militares de Santa Catarina e do Paraná, algo nunca visto no Brasil nem antes, nem depois”.

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Foram necessários quatro anos para destruir todos os focos de resistência à maior serraria da América Latina, que usou o terror para expulsar os caboclos da terra

Há alguns, mas não muitos, fatores em comum com o conflito da Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia. O próprio Back lembra que houve quem chamasse Contestado de “Canudos do Sul”, até pela proximidade entre os dois episódios. “É possível encontrar similitudes entre os dois movimentos. O mais significativo seria o milenarismo, a volta de um Messias salvador, que fundeava as convicções dos fanáticos. Na Bahia, Antônio Conselheiro; no Contestado, entre os monges João e José Maria. E, claro, a inaudita violência e implacabilidade com que o Exército brasileiro arrasou e exterminou ambos.”

Mas, fora isso, o cineasta define o Contestado como um caldeirão político-ideológico e religioso que contemplava a luta pela terra e pelo poder, xenofobia contra imigrantes europeus, anti-imperialismo contra multinacionais – que construíam uma enorme estrada de ferro na região, além da maior serraria da América Latina –, “implantando um regime de terror na expulsão dos caboclos sem títulos de propriedade”. Canudos resistiu a oito meses de assédio. No Contestado foram necessários quatro anos para destruir seus mais de 30 redutos, cidadelas caboclas que chegaram a reunir mais de 20 mil pessoas.

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Platéia surpresa. Jornalistas e críticos que assitiram ao filme de Back reconheceram que jamais tinham ouvido falar do Contestado

Back define o retorno ao tema, 40 anos depois de Guerra dos Pelados, como ver “um cadáver perdido no mar”. E destaca a “pegada paradocumental” do novo filme, que o autor chama de “antidoc” – e não ficção pura, como na obra de 1971 –, “para desfazer equívocos pessoais de um ideário datado e, na outra ponta do pensamento, aluminando novos meandros históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado”. 

E a história brasileira reserva certas peculiaridades. Back destaca a “expertise armada” de Portugal, que manteve o país-continente unido desde 1500, sufocando qualquer tipo de rebelião. “O Contestado era uma ameaça, uma ‘nação cabocla independente’, e isso, a meu ver, ainda que impensável hoje em dia, regurgita nos porões do inconsciente coletivo nacional”, afirma. “Não nos esquecemos do movimento ‘o Sul é o meu país’, que volta e meia ressuscita na ânsia de emplacar sua ‘verdade’ racista e segregacionista.” 

Segurança nacional
Por Paulo Ramos Derengoski

No início de 1914, o general Fernando Setembrino de Carvalho, gaúcho de Uruguaiana, encontrava-se no Ceará tentando pacificar os adeptos do padre Cícero. Em agosto, recebeu ordens para voltar ao Sul e liquidar com a insurreição que grassava de forma violenta na região contestada entre Paraná e Santa Catarina. De pequenos incidentes locais, toda aquela região se transformara em um enclave perigoso. A lembrança de Canudos era recente e os ânimos republicanos ainda estavam exaltados. Não se tratava mais de uma questão local. Era assunto de “segurança nacional”.
Diferentemente de quase todos os movimentos messiânicos do mundo, a insurreição catarinense afirmou-se também como uma força imediata, radical, transformadora. Não apenas uma força passiva, de inércia, conformismo ou resignação. Essa foi sua grande característica inovadora, até revolucionária. Daí seu apelo místico e seu caráter extremamente violento para um povo “bom e cordial” como o nosso: milhares de mortos, feridos ou estropiados.
Um grande efetivo – mais de 7 mil homens – e bons recursos foram colocados à disposição do general Fernando Setembrino. Considerado um dos melhores estrategistas da época, ele seria ministro da Guerra do governo Arthur Bernardes (1922-1926) e mediador do Pacto de Pedras Altas, acordo que pacificou o Rio Grande do Sul (1923). Mas em Santa Catarina partiu para o ataque.
Com a crescente movimentação das tropas, um fenômeno voltou a ocorrer na região: muitos dos antigos habitantes da zona contestada, especialmente proprietários de terras que haviam fugido para a margem direita do Iguaçu, resolveram regressar às suas taperas. O desejo de vingança de que estavam possuídos contra os “fanáticos” era grande. O ódio renascia. As primeiras vítimas foram escolhidas ao acaso: um bando de índios xokleng que por ali arrastavam seus trastes foi logo passado no fio da espada – cabeças cortadas.
Tal brutalidade chegou a irritar o general Setembrino, que mandou “abrir inquérito”. Mas a sorte dos “jagunços de São João Maria” estava selada. O sonho do povo dos carrascais logo se transformaria em pesadelo. As poderosas forças da realidade haviam entrado em cena. O dragão da República ia cravar a espada de prata no coração de ouro dos “santos guerreiros”.