Transgressor

Laerte Coutinho rompeu com ele mesmo, e nesse movimento nunca foi tão honesto consigo e com sua felicidade

Foto: Mauricio Morais

Ele frequentou as páginas do Pasquim na época de Ziraldo e Jaguar, enquanto pensava em abandonar, pela segunda vez, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Não colou grau, mas nos anos seguintes emplacou dezenas de personagens nas páginas da imprensa brasileira em cartuns e tiras impagáveis como as do Condomínio, Overman, Piratas do Tietê e Los 3 Amigos, esta a seis mãos, com os parceiros Glauco e Angeli.

Acho que os partidos estão apanhando. Não estão conseguindo acompanhar o pique do país. A dinâmica da sociedade brasileira mais uma vez está deixando as estruturas partidárias para trás

Filho de professor da USP, criado no bairro paulistano de Pinheiros, Laerte sempre teve laços fortes com a militância política de esquerda. Na faculdade começou seu namoro com o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, relacionamento que o aproximou do movimento sindical do ABC. Em 1978, desenhou histórias do João Ferrador, personagem criado por Antônio Carlos Félix Nunes para a Tribuna Metalúrgica. Naquele ano fundou, com o amigo jornalista Sérgio Gomes, a Oboré, marco da imprensa sindical, em atividade até hoje. Publicou livros, editou revistas, fez roteiros para a TV Pirata, TV Colosso e Sai de Baixo, programas da Rede Globo exibidos ao longo dos anos 1990.

Inquieto, Laerte sempre questionou tudo, inclusive a si mesmo. Explicitou dúvidas. Assumiu crises. E recentemente deu uma guinada radical. Aos 60 anos, dois filhos adultos, namorada firme, carreira sólida, resolveu se “montar”. Depilado, maquiado, enfeitado com bijuterias e vestido com roupas de mulher, saiu à rua. Não era um atrevimento de artista. Foi o início da nova vida de um “homem com identidade de gênero feminina”.

Você tentou ser músico…

É, sempre toquei muito mal. Tive aulas de piano com minha avó quando era criança. Foi com essa bagagem técnica que cursei três anos de música na ECA e caí fora para desenhar. Eu já fazia alguns trabalhos para o jornal do centro acadêmico. Depois prestei novo vestibular e voltei para a ECA para estudar Jornalismo. Foram mais três anos até cair fora de novo. Nunca me formei em nada. 

E a militância política?

Começou no movimento estudantil. Eu conheci o Partidão na USP, em 1973, em pleno governo Médici.

Como foi a fundação da Oboré?

Eu e o (jornalista) Sérgio Gomes começamos essa experiência de imprensa sindical em 1974, nos (Sindicato dos Trabalhadores) Têxteis. Mas ela foi interrompida porque a diretoria entrou em cana. Em 1975, o Sérgio também foi preso com outros militantes do Partidão. Eu escapei. Três anos depois o movimento sindical renasceu no ABC e voltamos a nos empolgar com a ideia de estimular os sindicatos a construir os próprios órgãos de imprensa. Nossa intenção com a fundação da Oboré, seguindo um conselho do próprio Lula, era dinamizar o jornalismo dos sindicatos.

Tira a quatro mãos, de Laerte, Angeli, Glauco e Adão

Foi um processo de construção.

Era parte da nossa proposta fazer os sindicatos entenderem que a estrutura de comunicação, assim como a assessoria jurídica ao trabalhador, tinha lugar no movimento. A publicação de charges e quadrinhos nos jornais sindicais foi um upgrade. O trabalhador sentiu que havia na sua imprensa a mesma ferramenta que existia nos grandes jornais.

De onde surgiu o bordão “Hoje eu não tô bom”, do João Ferrador?

Foi criação do próprio Lula. Com aquela voz rouca ele pediu: “Faz aí o João Ferrador dizendo ‘hoje eu não tô bom’”. O personagem virou símbolo de uma vontade política. Era um agitador de ideias.

O Henfil fez parte dessa história e também da fundação do PT.

Ele estava em Natal, mas nós vivíamos em contato. Ele veio para São Paulo e começamos a trabalhar juntos, inclusive para a Tribuna. Era uma pessoa extraordinária, com capacidade de criar ininterruptamente. Discutíamos muito sobre tudo: um novo partido, abertura, anistia. Vínhamos de uma frente de oposições, o que para mim ainda era a melhor tática para enfrentar a ditadura. Acreditava que aquele momento de pseudoabertura era um golpe para enfraquecer a oposição, que deveria se manter unida. 

O que resultou dessas discussões?

Era tudo uma ilusão. Havia várias forças interessadíssimas em organizar seus partidos. O Henfil participou ativamente da construção do PT, que não era uma ideia exclusiva da esquerda. Pessoas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo também estavam interessadas em participar. Foram a congressos e depois saíram. Foi aí que a coisa ficou mais ideologizada. O fato é que eu e o Henfil nos desentendemos, e acho que o tempo provou que ele estava certo (risos).

E a anistia?

A Lei da Anistia serve hoje de salvaguarda para torturador. Na época as pessoas não tinham clareza, elas queriam ver os amigos (exilados) de volta. A gente se pegou no argumento da anistia possível, do depois a gente vê como fica.

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Você foi censurado?

A única vez foi na Gazeta Mercantil, já no governo Sarney. Eu já estava mais ainda à esquerda e fiz alguma coisa que não agradou ao jornal. Eu disse: ué, finalmente, consegui! (risos) Sempre fui muito cagão. Media com a régua do meu temor até onde podia ir. Nos jornais sindicais também sabia que não podia pregar a revolução armada.

Charge tem de fazer cabeça?

 Quando comecei a me vestir com roupa feminina e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de que isso é possível.Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão possível.

Não acredito que o cartum editorial faça cabeças novas. Acho que ele age como reforçador de posições já partilhadas por um determinado grupo.

Falando em grupo, quando você saiu do Partidão?

Foi em 1984, na mesma época em que saí da Oboré, que já era uma espécie de núcleo dissidente. Quando os dirigentes do PCB voltaram do exílio deu-se aquele choque. A gente descobriu que eles eram muito antigos (risos) e não estavam entendendo nada. 

Hoje você tem simpatia por algum partido?

Tenho simpatia por várias pessoas. Acho que os partidos estão apanhando. Não estão conseguindo acompanhar o pique do país. A dinâmica da sociedade brasileira mais uma vez está deixando as estruturas partidárias para trás. Vejo disputa de espaço muito intensa. Volta e meia a gente vê que os próprios trabalhadores estão entregues, como no caso de Jirau (operários da construção da usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, lutam por melhores condições de trabalho). Não tinha sindicato para defendê-los, não tinha imprensa para cobrir, não tinha nada.

Como está a relação da mídia com o mundo do trabalho?

Tá uma vergonha. Existe uma tendência de despolitizar o momento sindical, de transportar os assuntos para a área técnica. Vira tudo caderno de economia.

A imprensa precisa de regulamentação?

Tem de ter algum tipo de discussão, em que termos eu não sei. Boa parte das suspeitas e do pé atrás da imprensa em relação a isso é justificada porque passamos por uma ditadura, na qual, aliás, ela mesma teve papel vergonhoso. Mas a imprensa gosta de se imaginar campeã de todas as liberdades, e não é bem assim. No Brasil, tem se estruturado em torno de interesses particulares e de empresas. Acho que hoje nem a imprensa se diz imparcial.

E o humor? 

Eu ando muito cansado do humor. Ele virou um certo problema. Passo o tempo inteiro questionando se o que estou produzindo é humor. Como é que o humor consegue acompanhar um momento de transgressão, de enfrentamento ideológico? O humor tem feito isso ou ele só conseguia fazê-lo na época em que isso era evidente, quando existia uma ditadura e uma oposição? E mesmo nessa época maniqueísta o humor falava com quem? Às vezes acho que o humor brasileiro, apesar de rico e produtivo, se distancia da vida da população. Várias vezes a gente constata a presença do humorista não como um sujeito alinhado às ideias pioneiras, de transgressão, de enfrentamento, mas às ideias feitas, ao preconceito.

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Parece que você ainda está construindo esse pensamento.

Hoje de manhã estava pensando nisso. Quando o movimento gay mundial conseguiu finalmente traçar uma política séria de garantia de direitos civis e expor a ideia de que gay é um ser humano, vem o Millôr Fernandes e diz que homossexualidade é uma “questão de furo íntimo”. É um trocadilho genial, como quase tudo que o Millôr fez, mas não tem nada a ver com avanço, com solidificar uma visão humanista.

Então você deve estranhar o tipo humor que se faz hoje.

Estranho, mas continuo defendendo a liberdade de imprensa, de expressão. Sou contra a censura. Acho que até o Proibidão (show de humor politicamente incorreto) deve ser possível. Mas tem de ser discutido. Tem de estar ao alcance da crítica.

Num passado não muito distante você também explorou o preconceito.

Sim. É muito fácil para o humor frequentar essa área porque ele trabalha a partir de um repertório comum para o autor e a audiência. Senão a piada não acontece. Por exemplo: todos precisam partilhar a ideia de que mulher dirige mal. Mas existe humor de todas as facções. Tem o humor de resposta.

Uma vez você disse que a vida é muito chata.

Quando a gente diz que a vida está chata, é uma incapacidade nossa de enxergar o que está se passando. Outra forma de dizer isso talvez seja “estou me sentindo bloqueado em determinadas vontades, desejos”.  Essa falta de clareza de ideias, que muitas vezes não podem ser trilhadas por causa de proibições internas, nos faz achar que a vida está chata. Aí a gente fica esperando que a vida nos abra perspectivas, quando é o contrário que tem de acontecer.

Como foi virar um transgênero?

Ou de assumir minha transgeneridade… Acho que a falta de compreensão dessa possibilidade é que me fez dizer que a vida estava chata. Quando comecei a me vestir com roupa feminina e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de que isso é possível. Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão possível. O fato de ser um negócio realizável é o suprassumo. É muito legal.

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O fato de você ser uma pessoa conhecida, um profissional respeitado, facilitou esse processo?

Por ter essa natureza cagona, precisei desse tempo todo, dessa idade, de estar numa situação em que as perdas são administráveis. Não que eu não tenha corrido riscos, mas estava pronto. Veja que a maior parte das pessoas transgêneras, travestis e transexuais­ assume as barras muito jovem, correndo riscos e colocando a vida inteira na balança. Isso serve para eu ter uma medida do que é coragem.

Existe uma relação entre os recentes ataques homofóbicos e a maior visibilidade dos vários grupos homossexuais?

Ataques sempre existiram, porém é desejável que a visibilidade aumente porque, ao mesmo tempo, crescem as possibilidades de defesa, de acionar o poder público. Então, se alguém está pensando em voltar para o armário… Hum, hum, movimento errado.

Você tem participado dos grupos ativistas LGBT?

Sim, e isso é reviver minha militância. Existem dezenas de entidades de defesa dos direitos civis dessa população. Fui recentemente a um congresso em Curitiba. Em agosto haverá outro na Bahia. Eu e umas amigas vamos abrir uma ONG, a Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat). A ideia é estimular o debate, produzir teses e prestar serviços de informação

Até onde vai sua transformação? Você pensa em tomar hormônios?

Penso, mas ainda não decidi. Estou com 60 anos. Não partiria, com certeza, para a via cirúrgica.

Você imaginava a repercussão que sua decisão alcançaria?

Às vezes me assusta a dimensão que as coisas tomam. Mas se isso acontece é porque há uma área de tensão, coisas mal resolvidas. Quando dizem “não sei por que gastar cinco parágrafos com esse assunto”, ouçam a si próprios: porque é importante. 

Participou Talita Galli, da TVT