O vento que balança o cordel

Uma geração de artistas renova a literatura popular nordestina, quebrando tabus e até reinventando a história do gênero

Bitu: matuto na rave e papa na praia (Foto:Wilson Bernardo)

Chega a hora de o poeta cordelista Augusto Bitu chamar o verso na sua vez da voz. Hoje em praça pública, amanhã ocupando faculdades ou centros culturais, ele aparece de bermudão e óculos escuros pra brindar a lua com sua verve. À sua volta, o povo noturno mescla boné com chapéu de couro, alpercata com coturno, minissaia com vestido de chita, enquanto toma seus goles, gargalha ou lacrimeja, de acordo com a mordida de cada poema. 

Os versos de Bitu podem ser os de “A reide”, um de seus cordéis mais populares. O romance pinga nas estrofes o desconcerto e a folia do matuto que vai a uma rave e a compara aos balanços de sua rede.  

Na plateia, outros poetas que fácil e naturalmente podem misturar métricas dodecassílabas refinadas com haicais ou versos eróticos sem rima. Tudo entrosado com o cotidiano de uma cidade com muitos romeiros, mas também faculdades e boates, ruas repletas de motocicletas pilotadas por jovens ou idosos antes acostumados ao jumento velho de guerra, municípios pouco parecidos com a idealização rasteira que ainda impera nas novelas globais ‘sertanejas’ e não dá conta da realidade das cidades médias que florescem no Nordeste contemporâneo. 

O local é o Crato, no Ceará, em pleno Vale do Cariri, um dos grande centros difusores da literatura popular nordestina. O sarau de que Bitu participa ocorre em uma mostra do Serviço Social do Comércio (Sesc). Não é o tipo de evento que seja raro por ali. Engana-se quem pensa que a poesia popular nordestina parou no tempo, ou está em “extinção”. Nas cidades da região, o que se vê é um vigoroso movimento literário, que trança as tradições com formas contemporâneas e novas temáticas, quebrando tabus e injetando sangue novo em formas seculares.

 Outro sucesso de Bitu é “O dia em que o papa deu o anel no Rio de Janeiro”, que narra peripécias e reflexões sobre uma suposta passagem do papa pelas praias do Brasil. O romance lhe rendeu nariz torcido e pragas dos mais rígidos e carolas poetas da Academia dos Cordelistas do Crato, ofendidos com a afronta perante o senhor do Vaticano. Por outro lado, segundo ele, também houve apoio de poe­tas anciãos. “A real da academia é que ela segue o padrão mais conservador de comportamento nordestino, porém nem sempre segue o padrão da poesia popular mais raiz”, comenta.

Bailando na ambiguidade, Bitu segue a tradição da poesia popular. Renegado pelo conservadorismo dos donos das empresas que imprimem os folhetos do cordel, inaugurou a própria editora, a Pé Duro. Por ela continuou lançando títulos como “Exaltação brasileira aos árabes de nossa nação”, produzido em tempos de islamofobia crescente.

Como crônica jornalística, ficção, elegia ou crítica social cortante, milhares de poetas vêm há mais de um século imprimindo seus folhetos, “arrecifes”, romances ou ABCs, como são também chamados os livros que ganharam, ao longo do século 20, a chancela quase universal de “poesia de cordel”. 

O fato que justificaria essa denominação – de que os folhetos seriam vendidos pendurados em cordões nas feiras – é controverso e contestado por vários pesquisadores, de acordo com Claudia Rejanne Granjeiro, professora da Universidade Regional do Cariri e autora integrante do projeto Conexão Poética. Ela lembra que a versão sobre o cordão foi difundida, sobretudo, por pesquisadores estrangeiros – o maior acervo de cordel do mundo fica, hoje, em Poitiers, na França, e guarda muitos títulos impossíveis de se achar no Brasil. 

A pesquisadora acrescenta que os poe­tas e mascates que circulavam sertão adentro com seus romances levavam as edições para expor em grandes balaios, no chão forrado por esteiras ou enfileirados em bancas. Outro aspecto questionado é a origem ibérica. “Diferentemente do que se pensa, o cordel não ‘veio de Portugal’ dessa forma mecânica. Ele é fruto da voz, da poética do corpo, das oralidades, entre as quais vozes negras, por exemplo”, diz Claudia. 

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Raiz Leandro Gomes de Barros (1865-1918) chegou a ser chamado por Carlos Drummond de Andrade de “o rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”
“Era uma definição pejorativa dos historiadores de poesia, que a população incorporou. Pejorativa porque nasceu de ‘literatura de cordão’, dando a ideia de inferioridade em relação a uma outra literatura”, completa o poeta, músico e escritor pernambucano José Paes de Lira, mais conhecido como Lirinha, em seu trabalho como líder da banda Cordel do Fogo Encantado, ao longo da última década.

Há alguns anos, ele lançou carreira própria, com um espetáculo de teatro e um romance, ambos batizados “Mercadorias & Futuro”. Agora, vem à luz um disco solo. Lirinha é exemplo de que os artistas nordestinos mais vanguardistas, muitas vezes, são os que mantêm laços estreitos com essa tradição da literatura popular.

Nascido na região de Arcoverde, começou a carreira aos 12 anos, em um palco bem distinto daqueles que imagina quem o vê somente como cantor pop. Sua primeira apresentação foi como declamador de poemas em festivais de cantadores em Pernambuco. Seguiu, aí, a trilha de nomes como Patativa do Assaré, que cumpria a mesma função nesses eventos. Era desse autor, aliás, a primeira poesia que Lirinha se lembra de ter declamado.

A cantoria de viola, como explica, seria a outra face da moeda na literatura popular nordestina. “A literatura de cordel é uma coisa diferente da poesia que é feita de improviso na cantoria de viola, embora seja a mesma estrutura.”

Por tradição familiar um bom conhecedor dos gêneros, ele esmiúça: “A literatura de cordel trabalha muito com décimas e sextilhas, e alguns martelos, que são décimas de decassílabos. É impressa e colocada à venda, tem uma série de regras”. Lirinha lembra que as formas selecionadas como cânone pela literatura de cordel são só uma pequena parte de um acervo muito maior da poesia oral sertaneja, que inclui fórmulas de métrica e rima com nomes originais como galope à beira-mar, martelo alagoano, gabinete, mourão respondido, mourão voltado, sete linhas e até mesmo o peculiar “quando eu ia ela voltava, quando eu voltava ela ia”.

O cordel era a novela da época, segundo ele. “Meu avô ainda fazia isto: não tinha energia elétrica no sítio dele, e ele lia exatamente naquele horário depois da janta. Reunia as pessoas e lia. Tinha as princesas, os príncipes. Tinha o lado político. Os milagres do Padre Cícero, todo um universo de entretenimento, de uma relação com a arte, imagens que eram criadas e tal”, conta. “Já a cantoria de viola tem outros mestres, o repentista, o que faz rápido. Eles têm, inclusive, certa distância. O que escreve cordel não necessariamente faz de improviso.”

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Tradição: O padrão editorial que se acostumou a ver no cordel foi definido pelo poeta e editor João Martins de Athayde, o nome mais importante do gênero entre as décadas de 1920 e 1940

O nome Cordel do Fogo Encantado, como explica, não era uma referência à literatura de cordel, propriamente. O termo “cordel” queria significar o mesmo que “história”. “Até porque, dentro do ambiente em que eu vivia, eu não acompanhava tanto a literatura de cordel.”

Esse padrão editorial que nos acostumamos a ver no cordel – capa com xilogravura e sextilhas em 32 ou 64 estrofes – também tem sua história. O formato foi definido pelo poeta e editor João Martins de Athayde (1880-1959), o nome mais importante do gênero entre as décadas de 1920 e 1940, não só pelo sucesso de seus títulos, mas por possuir os direitos de publicar os folhetos do autor considerado por alguns como o maior cordelista de todos os tempos: Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Barros chegou a ser chamado por Carlos Drummond de Andrade de “o rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”.

Ao longo da vida, Athayde publicou centenas de folhetos, muitos assinados por ele próprio. A autoria de diversos cordéis atribuídos ao editor é questionada por pesquisadores – não só por se verificar que, em algumas edições, ele assinou folhetos que eram de Barros, mas porque era comum a prática de comprar as obras, assumindo, então, a autoria.

Nas últimas décadas, a literatura popular nordestina passou por verdadeiro êxodo. Hoje, o cordel não é exclusividade de capitais como Recife e Fortaleza ou cidades como Juazeiro do Norte e Campina Grande. Essa arte está espalhada por capitais do Sudeste que receberam maciça migração nordestina, como Rio de Janeiro e São Paulo. Em alguns casos, esse movimento é ainda mais antigo: em Belém, por exemplo, floresceu na primeira metade do século 20 – nos tempos em que o Nordeste exportava para lá seus “soldados da borracha” – uma das maiores editoras de cordel da história, a Guajarina.

Em São Paulo desde os anos 1980, o poeta cearense Costa Senna personifica esse quadro. Na obra de quem se lembra de ter aprendido as primeiras letras enquanto a tia lia para ele os folhetos de cordel, nota-se a influência do cosmopolitismo provocado pela diáspora nordestina. Com mais de 30 folhetos publicados, além de 12 livros, ele, como bom cordelista, já escreveu sobre Lampião, mas também versa sobre Raul Seixas ou o ensino de matemática. Além de cordel, publica literatura infantil e já atuou em peças de teatro e comédia stand-up.

“Nem vejo mais o cordel como uma coisa nordestina, é uma coisa brasileira. Hoje, talvez você encontre mais cordel em São Paulo do que em Fortaleza”, diz o poeta. “Se parar para ouvir Lenine, Belchior, Gil, Caetano, os cantos da capoeira, o pessoal do rap, vai encontrar fragmentos do cordel dentro da obra deles. Até a televisão se aproveita muito de temas que vêm pelo cordel, vide Morte e Vida Severina e O Auto da Compadecida.”  

Nova história
Até mesmo a versão mais cristalizada da história do cordel – seus heróis, sobretudo – está em revisão. “A história oficial, em geral, só registrou a narrativa dos vencedores. Muitas coisas ficaram ou ficam de fora”, argumenta Francisca Pereira dos Santos, a Fanka, poetisa com dezenas de folhetos publicados, além de professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus Cariri. 
Entre os que ficaram de fora da história do cordel, como ela destaca, estão sobretudo negros e mulheres – justo os que provavelmente tinham maior dificuldade para publicar e impor seu nome no mundo da literatura. “Perdemos muitas vozes, em especial as vozes femininas que cantaram no século 19, que não foram registradas na historiografia do cordel. Mulheres repentistas que andavam, assim como os homens, com sua viola ou produziam dentro de casa, no privado.”
Fanka publicou em 2011 o livro “Água da mesma onda”, no qual mostra a relação epistolar, toda em versos, entre o famoso Patativa do Assaré e a poetisa Bastinha – um dos muitos nomes de mulheres que se destacaram na poesia popular, mas permanecem desconhecidos do grande público, assim como Chica Barroso, Vovó Pangula, Zefinha do Chambocão, Mocinha de Passira, Josenir Lacerda, Salete Maria, entre outras.
O reconhecimento que Patativa tinha por Bastinha demonstra como as poetisas podiam ter muito mais prestígio do que a história deixa perceber – e também como estavam muito além das representações estereotipadas presentes na maioria dos cordéis, em que aparecem ora como donzelas indefesas, ora como devassas demoníacas. 
Hoje, esse quadro muda, rapidamente, e Fanka está no centro disso. Além de pesquisadora, é poeta atuante e, em Juazeiro do Norte, integra o Movimento dos Cordelistas Mauditos, fundado em 2000 com um manifesto que celebrava o fim da subordinação intelectual do Nordeste “tradicional” ao Sudeste “cosmopolita”: “Viva Patativa do Assaré e Oswald de Andrade!” Dois ícones, agora em pé de igualdade.
O cordel, que outrora foi novela, como lembrou Lirinha, hoje aborda até mesmo um tema polêmico como a união de pessoas do mesmo sexo, centro de “A história de Joca e Juarez”, folheto de Fanka em parceria com a poeta Salete Maria, ambientado em Juazeiro, nos tempos do Padre Cícero. Um trecho: 
 
Juarez era um senhor
Devoto do meu padim
Trabalhava com ardor
Cultivando seu jardim
Um dia o cão atentô
e Juarez se apaixonou
por Joca de Manezim
 
Isso se deu em meados,
De mil novecentos e seis
Naquele tempo veado
Era bicho que deus fez
‘Home não ama ôtro home
senão vira Lobisomem’
disse o padre, certa vez
 
“Os Mauditos são uma novidade que promove uma antropofagia do imaginário do cordel homofóbico, machista, racista, além de fazer uma importante crítica à existência de um cânone do cordel, que como eles demonstram, foi (e é ainda) excludente”, destaca Fanka. “É a primeira vez que, no campo do cordel, emerge um grupo que se configura como movimento, que tem manifesto e faz uma crítica mordaz à historiografia do próprio cordel.”
 

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