Descobridor de BRASIS

Aziz sonhava com o dia em que os administradores públicos se sentariam à mesa com cientistas de todas as áreas para tentar entender os impactos de seus projetos

Memorizou os efeitos paisagísticos da viagem que contrastaria anos mais tarde com sua chegada a São Paulo, instigando a sua percepção das diferenças climáticas (Foto: Adriano Lessa/AE)

Texto publicado em 2002 na Revista Fórum

Muito curioso, o menino chamado Brasil quer tanto aprender sobre a vida e sobre si mesmo que resolve engatar conversa com o professor Aziz Nacib Ab’Saber, de quem muito já ouvira falar. Afinal, o mestre, filho do libanês Nacib e da brasileira Juventina, está para completar, no próximo 24 de outubro (de 2002), 78 anos de uma rica história de vida. Uma vida estudando o guri de nome Brasil. Para se ter uma ideia, só de universidade Aziz já tem mais de 50 anos e publicou uns 320 trabalhos – entre estudos, documentos, teses, análises, projetos, livros. 

É membro da Academia Brasileira de Ciências, foi diretor do Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tornou-se professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde já foi reconhecido como o geógrafo de maior relevância nacional. Frequenta como se fosse sua segunda casa o Instituto de Estudos Avançados da USP e continua ganhando prêmios, como um da Unesco, por sua contribuição à ciência e ao meio ambiente, e uma condecoração do presidente Fernando Henrique, de quem é crítico, por entender que ele não cuida bem do menino Brasil.

O menino pergunta ao mestre o que vai ser quando crescer. “Que nada”, desfaz o professor, “quando se é jovem não se sabe direito no que as escolhas vão dar.” E confessa, colocando a mão sobre os olhos, meio que os protegendo da luz, meio que se esforçando para puxar algo da memória, que nunca imaginou ser geógrafo. Escolheu História e Geografia, ainda nos tempos de ginásio, em Taubaté. E traz à conversa uma excursão organizada por seu pai a Ubatuba, quando, aos 6 anos, conheceu o mar. Memorizou os efeitos paisagísticos da viagem que contrastaria anos mais tarde com sua chegada a São Paulo, instigando a sua percepção das diferenças climáticas.

Um dia achou um mestre, de nome Hilton Federici, cujos meios de dividir conhecimento batiam com o seu. Ao terminar o ciclo (naquele tempo eram cinco anos de ginasial que se mesclavam com o colegial), Aziz ficou curioso em saber como entraria na faculdade que havia formado Hilton, o professor que o despertara para a dualidade entre a história e o espaço físico e ecológico em que ela transcorre com uma aula que marcou sua vida – uma excursão de campo, com destino a Itu, Salto, Campinas, Jundiaí e São Paulo. Depois de verificar a trajetória de Hilton Federici, e de desembarcar na USP, Aziz logo descobriria que se daria bem numa disciplina então híbrida – Geografia e História. 

Estava dado o passo que transformaria o pequeno curioso nascido em São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba, numa das figuras mais emblemáticas não apenas da USP, nas palavras de Octávio Ianni, mas de toda a universidade brasileira, por integrar uma estirpe de intelectuais, contemporânea a Antonio Candido e Florestan Fernandes, que se celebrizaria pela primazia do pensamento humanista em qualquer área de conhecimento do mundo acadêmico.

 Florestan Fernandes

Tímido, Aziz dava-se melhor nas aulas de História que de Geografia. Falava pouco com colegas de outras áreas. Acabou estreitando mais o diálogo com os professores Plínio Airosa e o francês Pierre Mombeg. Antonio Candido de Mello e Souza se tornaria uma referência. “Eu o encontrava em grandes conversas com o professor Lourival Gomes Machado, mas não tinha coragem de falar com colegas em estágio mais avançado que eu”, recorda. “Entrei em 1940 e alguns deles já estavam saindo.”

Mas o filho do seu Nacib acabou encontrando um grande parceiro para dividir a velha carteira de duplo assento: Florestan Fernandes. Nas aulas de Antropologia de Emílio Willems – um dos precursores dos estudos de contatos étnicos e culturais da Região Sul –, Aziz boiava um pouco, enquanto Florestan acompanhava com facilidade. “Esse colega extraordinário me influenciou mais que muitos professores. Além de morarmos no mesmo bairro e dividirmos a mesma carteira, tomávamos juntos o bonde, da Praça da Sé até a Quarta Parada.”

Com os olhos cerrados, olhando para dentro da memória, o mestre Aziz busca o nome de Haroldo de Azevedo, sua capacidade didática e “como ele reparou em mim”, incentivando no modo de descobrir as coisas. E, já que não quer ser injusto na conversa com o menino, o sábio aproveita a memória “aquecida” para recuperar alguns outros nomes importantes em sua busca incessante do conhecimento. 

Os franceses Pierre Gourou (geógrafo tropicalista, “suas considerações sobre o mundo tropical aguçaram meu espírito crítico quanto à visão europeia a respeito dos trópicos”); Roger Dion (“um erudito, andava de bonde pela cidade toda e fazia observações fundamentais para expandir meu interesse pela várzea do Tietê e pela metrópole que então surgia”); Louis Papy (“trouxe a influência da humildade à pesquisa geográfica, cuidadoso, escreveu À Margem do Império do Café, sobre o litoral e, meu Deus!, ia muito mais longe que eu nas incursões de campo”); Fernand Brodell (“o maior, intelectual da geografia que deixou suas marcas na história, na antropologia, nas ciências sociais”); e o geógrafo paleontólogo da Universidade de Cincinatti, Kenneth Caster (“que estudava e ensinava geologia histórica desde que o planeta surgiu da rebentação de uma galáxia, alguns bilhões de anos atrás, com suas aulas dando sempre uma ideia de sequência, que eu admirava muito, sempre conjugando as coisas do mundo físico, incluindo aí o mundo dos vivos”).

O professor olha de novo para o menino e, depois dessa volta toda, observa que, se tivesse de dizer o que mais o marcou em sua formação cultural, diria que foi o fato de ter entrado muito precocemente no mundo da pesquisa (teria sido numa excursão de São Luiz do Paraitinga a Ubatuba, aos 6 anos?). Volta a fechar os olhos e relembra o primeiro trabalho que concluiu, ainda nos anos 40, com repercussão internacional: Regiões de Circundesnudação Pós-Etácica no Planalto Brasileiro. Como parte dos professores achava que o jovem Aziz “viajava” muito (“eles não viam que eu era um estudioso!”), o aluno não apresentou esse trabalho como conclusão do curso. Publicou-o no número 1 da revista Boletim Geográfico e, segundo lhe relatou o professor Haroldo, acabou encontrando admiradores no México.

Mas o professor não esquece de dizer ao menino que vida de cientista não é só estudar, aprender e ensinar. De vez em quando, uma pontinha de indignação faz parte. “Recebi recentemente um atlas da arenização do Rio Grande do Sul, e o único trabalho que não recebe crédito é o meu, que havia feito quatro anos antes, A Revolta dos Ventos, que explica o quanto as areias das campanhas gaúchas têm a ver com o mau uso do solo. Ou uma pontinha de mágoa. “No primeiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, participei de eventos a convite de uma ONG internacional; no segundo, ninguém da organização me chamou de novo.”

O cientista faz questão de mostrar ao menino que o aproveitamento da imagem, que começa a lhe faltar aos olhos, foi sempre peça-chave de suas pesquisas, de seus trabalhos, de suas aulas. Não há região que tenha estudado ou visitado que não tenha sido fotografada por ele mesmo. Quando possível, recorre às fotos feitas por satélite. Uma história inteira de suas pesquisas pelo Brasil adentro esteve exposta na Bienal do Livro, em São Paulo. Não se sabia se era exposição fotográfica ou aula de geografia histórica. 

Seu trabalho mais recente, aliás, tem como base as fotos que contam tudo que é possível saber a respeito dos 8 mil quilômetros de litoral brasileiro. Ou melhor, não são bem as fotos. Litoral Brasileiro/Brazilian Coast traz, é verdade, 193 fotografias de 48 fotógrafos renomados e outras 60 imagens captadas por satélite a 850 quilômetros de altitude. Mas antes de lhe entregarem as fotos, que atrasaram quatro meses, o autor já havia escrito tudo sobre a geoecologia da costa brasileira, suas praias, mangues, encostas, ilhas, bocas de rios, restingas, enseadas, fauna e flora, e como se formaram ao longo dos últimos milhares de anos.

A impaciência com a demora só não foi maior porque o trabalho permitiu em parte o custeio da permanência do filho Alexandre em Washington, para uma especialização no Centro de Patologia Pulmonar da capital norte-americana.

Lula, visite Garanhuns

Também não faltou paciência a Aziz Nacib Ab’Saber quando disse a Luiz Inácio Lula da Silva, ainda antes da eleição de 1989, que o principal líder da esquerda do paísprecisava visitar Garanhuns. “Lula, você precisa passear na sua terra, ver como ela é, como está sua gente”, ensinou. 

O petista, temendo ser rotulado por praticar algo parecido com demagogia, adiou a sugestão. Seis meses depois, tocou o telefone da casa do professor: “Vou a Garanhuns na semana que vem e quero que o senhor venha comigo”. O mestre desmarcou todos os compromissos – assistência a alunos, palestras, conferências, as coisas que mais gosta, até hoje, de fazer na vida – e o acompanhou. Foi apenas a primeira de uma série de viagens, verdadeiro doutorado em geografia humanista, que se tornariam as Caravanas da Cidadania.

Ali, o mestre Aziz já sabia que a ciência básica sem a ciência aplicada não é nada. Que as questões ambientais não são muito mais sérias que o mundo físico, ecológico e cultural. Que estudar e encontrar soluções para o social – como vivem as pessoas, inclusive as que não têm trabalho nem comida para dar aos filhos, nem lazer, nem água para o banho, nem esperança – é nada mais do que defender o pleno equilíbrio ambiental.

Aziz sonha hoje encontrar alguém que abrace a ideia dos Clubes Comunitários, que podem melhorar esse equilíbrio nas periferias miseráveis de São Paulo, às quais visita sistematicamente já sem as matérias de Geografia na cabeça, apenas o saber humanista. Sonha com o dia em que os administradores públicos se sentarão à mesa com cientistas de todas as áreas para tentar, antes de executar determinada obra ou projeto, ou de se omitir, entender os impactos ambientais (em todos os sentidos) de seus atos amanhã, daqui a cinco, vinte, cem, milhares de anos.

O mestre se irrita ao se lembrar de um debate sobre Amazônia, anos atrás. “Um preposto” do governo federal o tirou do sério ao afirmar que investir em projetos de autossustentabilidade envolvendo as populações locais demandaria muito trabalho e dinheiro para pouco retorno – o que revelava o caráter desumano do pensamento dos detentores do poder. “Talvez fosse mesmo pouco retorno para quem pensa com a cabeça de burocrata, mas é questão de sobrevivência para quem está em sua terra.” A tensão do debate agravou-lhe o distúrbio ocular que hoje lhe restringe quase metade da visão e o torna dependente do amparo de familiares e amigos para ler e locomover-se em suas peripécias de conhecimento.

Quase metade da visão… O mestre continua a cerrar os olhos, a protegê-los com a mão direita, enquanto o menino chamado Brasil imagina: “Como ele encasquetou comigo! Haverá alguém que me enxergue melhor do que o professor Aziz Nacib Ab’Saber?”