Olho latino

Pesquisa reúne em livro a fragmentada história da fotografia na América Latina

(Foto: Reprodução do livro)

Uma investigação ambiciosa, com ares detetivescos, reuniu um grupo de fotógrafos e pesquisadores em torno de uma complexa tarefa: encontrar os melhores livros de fotografia da América Latina. Durante quatro anos, a busca coordenada pelo historiador e crítico espanhol Horacio Fernández revirou uma grande quantidade de acervos pessoais de artistas, editores e fotógrafos, além de um bom número de bibliotecas e sebos. O resultado está em Fotolivros Latino-Americanos, lançado pela Cosac Naify (255 págs.) em coedição com a editora mexicana RM, a americana Aperture e a francesa Images en Manoeuvre.

Durante viagem a Cuba, Sartre e Simone de Beauvoir se encontram com os líderes da revolução cubana. O Che, de Korda, é mais majestoso que suas visitas

A empreitada fascinante teve a colaboração de um time de alto calibre. Participaram da pesquisa o curador argentino Marcelo Brodsky, o fotógrafo e produtor cultural Iatã Cannabrava, a editora norte-americana Lesley Martin, o fotógrafo inglês Martin Parr e o editor espanhol Ramón Reverté, além de outros fotógrafos, designers e editores de 11 países sul-americanos. “O Horacio ficou hospedado três meses em minha casa vasculhando meus livros”, lembrou Iatã Cannabrava, que participou em março, ao lado de Fernández, de um debate sobre o livro no Instituto Cervantes, em São Paulo. “Descobri que tinha pérolas.”

O tesouro garimpado pelo grupo traz 150 títulos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Peru e Venezuela. São fotolivros (trabalho conjunto entre fotógrafo, designer e editor) publicados desde a década de 1920 até os dias atuais. “Talvez uma varredura maior encontre algo nas regiões não representadas, mas essa foi a pesquisa possível”, argumenta Cannabrava, ao explicar a ausência de imagens de Uruguai, Paraguai e Costa Rica. O esmero do grupo de pesquisadores em contemplar o maior número de publicações não foi o bastante para evitar outras lacunas lamentáveis, como Xingu, Território Tribal, de Maureen Bisilliat, e Outras Américas, de Sebastião Salgado.

candomble

Candomblé (1957), de José Medeiros, revela uma cerimônia de iniciação de três jovens filhas de santo num terreiro da Bahia. As fotografias foram publicadas originalmente na revista O Cruzeiro, em 1951. A capa é de autoria do arquiteto Anísio Teixeira, irmão do fotógrafo

 

 

 

 

 

 A pujança da produção brasileira de fotolivros é uma das descobertas do estudo. Um destaque indiscutível na opinião de Cannabrava é O Mergulhador (Atelier da Arte, 1968, 108 págs.), coletânea de poesias de Vinicius de Moraes com fotografias do filho Pedro. Outro clássico que ressurge em Fotolivros Latino-Americanos é o Paranoia, um retrato delirante da São Paulo de 1960, escrito por Roberto Piva (1937-2010), com fotos de Wesley Duke Lee. A obra foi reeditada recentemente pelo Instituto Moreira Salles. Mais uma curiosidade que o recorte brasileiro revela é que, em sua maior parte, são obras das décadas de 1970 e 1980, invariavelmente feitas na raça, com parcos recursos. As exceções, destacadas por Cannabrava, são trabalhos de Claudia Jaguaribe, Cássio Vasconcelos e Pedro Martinelli. Todos já do século 21 e com um traço em comum, o estilo autoral.

Mas, na opinião dos autores, o cenário árido, no Brasil e no mundo, está mudando graças ao advento das novas tecnologias. “Nunca se produziu tanto”, comemora Horacio Fernández. “A possibilidade de fazer um bom fotolivro está hoje ao alcance de qualquer pessoa”, concorda Cannabrava.

Liivros

História, mazelas e bordoadas

A pesquisa cristalizada em Fotolivros Latino-Americanos debruçou-se sobre nove eixos temáticos: O Livro do Século 20; Palavra e Imagem; A Cidade e os Livros; Os Esquecidos; Fotolivros de Artista; A Imagem é o Texto; Tempos Difíceis; Cor; e Os Contemporâneos. O leque amplo proporciona um mergulho em um século de histórias e imagens. Ao desenterrar títulos esquecidos, perdidos, estranhos, proibidos, secretos, busca quebrar um círculo vicioso de esquecimento, inacessibilidade e desconhecimento, responsável por remeter a um limbo distante a maior parte dos fotolivros produzidos na América Latina. Como peças de um quebra-cabeça até então separadas, Fotolivros monta um amplo retrato estético, social e cultural.

Estão lá imagens da revolução mexicana, publicadas em fascículos no inacabado Álbum Histórico Gráfico, de Augustin Victor Casasola, que circulou na década de 1920. Mesma força pode ser conferida na obra Cusco Histórico, de 1934, que revela um período indígena glorioso. A cidade andina também aparece em Alturas de Macchu Picchu, do poeta chileno Pablo Neruda. Feliz encontro entre literatura e fotografia, de 1950. 

Os fotolivros já foram, por exemplo, ferramenta de propaganda, com tintas revolucionárias nos casos de Despertar Lagunero, do jornalista mexicano Henrique Gutmann, de 1937, mas principalmente em Sartre Visita Cuba, de 1960, em que Alberto Korda registra um Che Guevara majestoso e imponente, na época em que ocupava o cargo de diretor do Banco Nacional. “Korda estruturou tudo perfeitamente para agigantar o revolucionário”, diz Fernández. 

Muitas dessas publicações ajudaram a elevar o nível das reportagens. Candomblé, de José Medeiros (1957), mostra um tempo de glória das revistas brasileiras, em que a imagem valia mais que o texto. O livro publicado pela revista semanal O Cruzeiro retrata uma cerimônia de iniciação – até então praticamente secreta – em um terreiro na Bahia. 

Marcadas a ferro, fogo, mazelas de todos os tipos e bordoadas em geral, as injustiças sociais não poderiam deixar de figurar. Em texto que acompanha o capítulo Os Esquecidos, o pesquisador espanhol comenta: “Não é por acaso que os livros com maior ambição continental abordem esse tema”. América, un Viaje a través de la Injusticia, de Henrique Bostelmann (1970) e Para Verte Mejor, América Latina (1972) são expedições fotográficas que mostram o continente sem retoques. Denunciam, por exemplo, a secular exploração e exclusão de povos indígenas. O tema é tratado com outra perspectiva em Yanomami (1978), no qual Cláudia Andujar escancara o drama desencadeado pela invasão do garimpo. Já Infarto del Alma (1999) desnuda outro duro tipo de exclusão, o dos internados em hospitais psiquiátricos. Nele, o chileno Paz Errázuriz aborda relações afetivas de enfermos. “É um ensaio experimental sobre a loucura ou o amor louco”, diz o autor. 

Também do Chile, Neruda: Entierro y Testamento (1973), com texto do jornalista Alavaro Sarniento e fotos de Fina Torres, mostra o cortejo fúnebre do poeta, morto 12 dias após o golpe que derrubou Salvador Allende. As imagens vislumbram ainda o enterro das aspirações socialistas conquistadas nas urnas.

Apesar do toque de curador latente na obra, Horacio Fernández ressalta tratar-se de um projeto coletivo. “É um trabalho de história cultural e política”, afirma. “São temas importantes para o tempo que vivemos.” Amazônia, de Andujar (1978), “fala de antropologia, de ecologia, de cultura, de problemas sociais, de questões políticas, e tudo isso sem texto algum”, comenta.