República federal ou estado unitário

O governo FHC foi o mais completo golpe ao pacto federativo, ao aprovar no Congresso encomendas dos EUA, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que arrochou os estados

A proposta de nivelar, pelo alto, os vencimentos dos policiais militares e bombeiros de todos os estados colide com uma dificuldade constitucional que os parlamentares fizeram de conta não existir: o Brasil é uma república federativa e, nas federações, a autonomia de suas unidades deve ser garantida. Cada estado, como unidade política própria, elabora, nas Assembleias Legislativas, sua política orçamentária e prevê a remuneração de seus servidores.

O país continua a ser uma federação, conforme decisão tomada pelos constituintes de 1891. Antes, o país até se dividia em administrações descentralizadas, como atesta sua história. Mas os governadores-gerais – mais tarde agraciados com o título de vice-reis – eram representantes da soberania política de Portugal. Raramente intervinham na administração. Essa realidade era anterior à Independência. 

A ideia federativa surgiu com o movimento de Vila Rica. Os inconfidentes estavam sob a influência da independência dos Estados Unidos e de sua construção pactuada. A articulação mineira pela independência nacional como federação, sufocada com a execução de Tiradentes e a repressão brutal que se seguiu, só retornaria depois da vinda da família real para o Brasil, em 1808, e se expressaria na Revolução Pernambucana de 1817. A partir de então, passou a crescer e chegou a ser cogitada, ainda em 1823, nas discussões da frustrada Assembleia Constituinte, dissolvida à força por Pedro I. De 1817 a 1848, com a Confederação do Equador, a Revolução Farroupilha, a Revolução de 1842 e movimentos menores, até a Praieira, de 1848, todos os movimentos de rebeldia regional foram federativos.

O Ato Adicional, de 1834, desconcentrou um pouco o poder, com a criação das Assembleias Legislativas Provinciais, mas a reforma de Araújo Lima e a Maioridade favoreceram nova centralização. No Manifesto Republicano, de 1870, foi clara a expressão do projeto federativo. E os constituintes de 1891 aprovaram o texto da Carta Republicana sob a influência de Ruy Barbosa e de Joaquim Nabuco, federalistas históricos.

Pouco a pouco, os direitos federativos dos estados foram corroídos pela centralização do poder na União. Com a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, os legisladores não restauraram os direitos federativos originais, de 1891. Mesmo assim, os direitos de tributação dos estados – que não foram alterados substancialmente durante o governo Vargas – se mantiveram. O regime militar a partir de 1964 acabou, de fato, com a federação, ao liquidar sua autonomia econômica e política. A Constituição de 1988 restaurou-a, em grande parte, mas poderia ter sido mais ousada, no que se refere à independência orçamentária.

Nenhum governo foi tão completo no assassinato da federação quanto o de Fernando Henrique Cardoso. Atendendo ao governo mundial, exercido nominalmente por Washington e de fato pelos grandes bancos, o então presidente conseguiu do Congresso a aprovação de minutas redigidas nos Estados Unidos, como as da Lei de Responsabilidade Fiscal – arrocho contra os estados –, a Lei Kandir, a emenda da reeleição e a privatização dos bancos estaduais.

Agora, o Congresso Nacional quer federalizar, na prática, a segurança pública, com a PEC 300. Ora, enquanto o Brasil não se desenvolver como um todo, cada estado estará submetido às receitas tributárias desiguais. Não se trata, apenas, de impor aos estados a elevação brutal de despesa com o aumento, mas, também, de garroteá-los politicamente, com a redução dos poderes de decisão de seus cidadãos. Cada uma das unidades federadas tem a própria história e a própria cultura, que devem ser respeitadas para a construção da grande identidade nacional. A União é um pacto político, não ata de submissão aos eventuais ocupantes do poder central.