Batatinha e Janete

Batatinha teria caído no anonimato se alguns artistas, como Maria Bethânia, não reconhecessem a beleza de suas músicas e as gravassem

Durante anos meu destino de fim de férias era Salvador. Geralmente ia para alguma parte do sertão do Nordeste, às vezes chegava ao litoral de algum estado, mas, fosse para onde fosse, acabava os últimos dias na capital baiana, onde tinha muitos amigos. E gostava muito da cidade.

Era um tempo em que a cidade já era tida como turística, mas não havia um turismo de massas. Eram poucos turistas. Por volta de 1970 começou a se firmar lá um turismo mais predatório, com muitos ônibus de excursão, fora o pessoal que chegava lá de avião, ônibus ou carro, introduzindo um modo mais “comercial” de se relacionar com a cidade e seus moradores. 

Pelas minhas viagens de férias ficava conhecendo as músicas de Roberto Carlos que faziam sucesso no ano, pois em São Paulo eu só ligava o rádio nos programas de notícia. Música, só de discos, e eu não comprava discos do então já proclamado rei. Uma juventude que eu achava meio besta, a que o cultuava. No Nordeste, principalmente no sertão, o disco do ano de Roberto Carlos tocava direto.

Em dezembro de 1971 fiz o contrário dos anos anteriores: comecei as férias por Salvador. Fui encontrar um grupo de amigas que tinha ido antes. Cheguei lá de trem, depois de quatro dias de viagem, saindo de Belo Horizonte. Ah, podia-se chegar lá de trem, que já era um meio de transporte um tanto precário, mas existia. Havia linhas de trem – funcionando! – de Salvador para Belo Horizonte, Juazeiro e Aracaju. 

Nessa viagem, ouvia uma moça cantar uma música estranha, que começava com “debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, o grande sucesso de Roberto naquele ano. Só anos depois é que fiquei sabendo que foi composta em homenagem a Caetano Veloso, que estava no exílio em Londres, e “descobri” que a letra tinha um certo sentido. 

Minhas amigas que estavam na Bahia, professoras, haviam levado alguns colegas da escola em que trabalhavam, entre eles um carinha debochado, chamado Mário.

Fiquei hospedado numa república em que morava o Elso. Um fim de tarde, fui tomar uma cerveja com ele numa birosca ao lado da TV Itapoan, onde ele trabalhava. E lá trabalhava também o grande compositor Batatinha, autor de muitos sambas com uma característica interessante: a música era sempre animada, mas a letra era quase sempre triste. Basta lembrar o começo de uma delas: 

Todo mundo vai ao circo

menos eu, menos eu. 

Por não poder pagar ingresso

fico de fora escutando as gargalhadas…

Batatinha teria caído no anonimato se alguns artistas, como Maria Bethânia, não reconhecessem a beleza de suas músicas e as gravassem.

Fiquei emocionado ao conhecer o Batatinha, dividir cervejas com ele e o Elso. Aí chegou o Mário, também hospedado na república do Elso. Não sei o que deu nele quando o apresentei ao Batatinha. Respondeu todo formal:

— Muito prazer: Mário Pires.

Ficou um clima estranho e, para quebrar a formalidade, eu disse:

— Mas pode chamar de Janete, que é o apelido dele à noite.

O problema é que o Elso acreditou. E passou a chamar o Mário de Janete. Aliás, o apelido pegou e na Bahia todos o chamaram de Janete por muito tempo, já que ele passou a ir pra lá regularmente.

Um dia, o Mário conheceu uma moça muito bonitinha na praia e combinou de saírem à noite. Ela passou na república à noite, bateu na porta e saiu o Luís, um dos moradores.

Ela disse que queria falar com o Mário, ele respondeu que não tinha nenhum Mário ali. 

— É um baixinho que mora em São Paulo – disse ela.

— Ah… é Janete – ele concluiu. 

E gritou para dentro:

— Janete, tem uma moça querendo falar com você.

Ele saiu animadão, mas ela já tinha se mandado.