Pela responsabilidade dos bancos

Metas fora da realidade pressionam bancários e levam clientes a prejuízos. Cenário de abusos move ambos em campanha por ética na relação banco-consumidor

Os cinco maiores bancos tiveram em 2011 novos ganhos recordes. Seus lucros somados encostaram em R$ 51 bilhões. Do lado de dentro do balcão, porém, nem tudo é festa. Trabalhadores acusam aumento de 100% nas metas a bater. Francisco Botim, funcionário de um call center direto do banco Santander, antes incumbido de captar R$ 500 mil em empréstimos consignados a cada mês, teve sua carga majorada para mais de R$ 1 milhão. 

Conceição pagou o que não podia por um plano de previdência e acabou perdendo dinheiro (Foto Paulo Pepe)

“As pessoas vivem todos os dias em função das metas. Tenho de bater, minha cabeça está a prêmio”, alarma-se. 

Juntos, Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Santander e Caixa Econômica Federal representam 85% de todo o sistema financeiro brasileiro. Quatro deles destacam-se em outro ranking: o de reclamações de clientes por serviços mal prestados. Segundo o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), ligado ao Ministério da Justiça, o Itaú Unibanco alcançou o topo da lista encaminhada pelas unidades estaduais do Procon de todo o Brasil. O rol tem ainda Bradesco (4º lugar), Santander (7º) e Banco do Brasil (9º). Os assuntos que mais aborrecem a população são cobranças, serviços e contratos mal-feitos ou não explicados.

Infográfico problemas bancosPara a presidenta do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, a política abusiva de resultados acaba afetando trabalhadores e clientes. “O funcionário tem metas muito altas de venda de produtos e sofre uma pressão absurda para atingi-las. No outro lado, o cliente tem problemas com produtos inadequados, como plano de previdência complementar vendido para idoso”, afirma.

A correntista Alexandra Previtale coleciona contratempos relacionados a serviços financeiros, como débitos não autorizados em sua conta, seguro de vida nunca contratado, lançamentos indevidos em cartões de crédito, alterações de tarifas sem consulta. O primeiro problema começou em junho de 2010 e demorou meses para ser resolvido pelo Banco do Brasil. Alexandra percebeu descontos mensais de R$ 8 e, ao cobrar explicações, descobriu tratar-se de um seguro de vida que nunca contratara. “Não movimentava essa conta, quando vi estava negativa, com débitos sucessivos de um seguro de vida que eu desconhecia.”

O banco demorou meses para diagnosticar o lançamento indevido. Antes do veredito, havia sugerido que a correntista não se lembrava da contratação do serviço. “Questionei então quem eu teria indicado como beneficiário”, desafiou. “A gente se sente impotente e roubada ao mesmo tempo.”

Somente entre 2010 e 2011, a receita dos cinco maiores bancos com tarifas e prestação de serviços aumentou 14%, para R$ 74 bilhões. Resta saber o quanto do “se colar colou” entra nessa fatura – que, para se ter uma ideia, supera todo o orçamento do Ministério da Saúde para este ano, de R$ 72 bilhões. 

Infográfico reclamações

 

Armadilhas

Há mais de 20 anos empregada no setor, Maria Salles, do Itaú Unibanco, diz que a orientação das instituições é “rentabilizar” a conta. A recomendação tem força de lei. E implica “empurrar” serviços, necessite o cliente ou não. “O banco deixa claro que só tarifa não dá. Tem de agregar seguro, às vezes dois, título de capitalização, cartão de crédito”, enumera. Na corrida contra o tempo, os bancários sujeitam-se a humilhações. Maria diz que não é raro pedir a algum conhecido “pelo amor de Deus, me ajude” com um seguro ou título de capitalização. “Fomos transformados em meros vendedores, inclusive os gerentes”, afirma. “Não basta ser cliente, tem de ser rentável.”

Francisco

Francisco, do Santander: ordem é desestimular o cliente a quitar o empréstimo consignado para poder prorrogar o ganho com os juros pagos pelo tomador (Foto Paulo Pepe)

Entre as orientações questionáveis do ponto de vista ético e financeiro, a funcionária assinala a abertura de contas com cobrança de tarifas mais altas. “O banco conta que vai passar batido pelo cliente. E ai de quem ‘errar’ e lançar uma tarifa mais barata”, explica.

Produtos como títulos de capitalização são vendidos como poupança. “Essa é uma das piores aplicações do mercado”, diz o consultor Pio Mielo, especialista em educação financeira e políticas de investimento. Os rendimentos dos títulos de capitalização implicam perda para o cliente de 25%. Enquanto a poupança rende 0,5% de juros mais TR (taxa referencial), os rendimentos de um título de capitalização ocorrem sobre 75% dos depósitos do cliente mais correção mensal da TR. O restante é dividido em cotas de sorteio (15%) e de carregamento, que são as despesas operacionais do banco (10%). 

Outra venda na base da pressão e da desinformação ocorre com fundos de previdência. Apesar de serem interessantes para quem realmente deseja contratar, são uma péssima escolha para idosos ou quando vendidos sem avaliação criteriosa do perfil do cliente, de suas condições financeiras e sua necessidade futura.

Há cinco anos, numa simples ida ao Bradesco, a massoterapeuta Maria Conceição Santos, de 61 anos, voltou para casa com um contrato de previdência privada. Seis meses depois, constatou que não tinha mais como manter os depósitos mensais. Acabou amargando prejuízo do que já havia depositado. “É comum dizer que é uma aplicação”, lamenta a bancária Maria Salles.

Juvandia critica os bancos e considera que a solidez e a lucratividade do sistema permitiriam uma conduta mais ética. “Há clientes que compram produtos sem saber o que estão adquirindo.” 

Pio Mielo admite que nunca é tarde para ter uma previdência privada. No entanto, quanto mais tardia a decisão de contratação do serviço, maior será o valor a desembolsar. “É preciso ter muita atenção. O  valor pode ser alto em relação à capacidade do cliente e levá-lo a não dar conta de manter o investimento”, alerta. 

Conceição diz que só percebeu o mau negócio quando tentou cancelar o serviço. “Fui induzida pelo projeto de uma boa aposentadoria. Se soubesse dos detalhes não teria feito. Ficou a raiva de ter sido passada para trás”, protesta.

No call center do Santander, o bancário Francisco resume o tormento: “Eu gostaria de chegar à meta, mas é inalcançável, e isso nos faz passar como incompetentes diante da equipe”. A estratégia da empresa para “fidelizar” clientes é não estimular a quitação da dívida e prorrogar o recebimento dos juros. “Se o cliente ligar para quitar, a indicação é evitar.” Embora Francisco conte, em tese, com autonomia para liberar o boleto de quitação para o cliente, ele é “proibido” de fazê-lo.

Pesquisa do Sindicato dos Bancários sobre a saúde dos trabalhadores divulgada em 2011 comprovou que as metas impostas sem discussão com os funcionários nem relação com a realidade da clientela são a principal causa de adoecimento. “É uma situação muito humilhante”, diz Maria Salles, do Itaú Unibanco. “O bancário vive à base de ­antidepressivos.”

Apesar de a maioria ser jovem, – dois terços da categoria têm até 35 anos –, 84% relataram já ter enfrentado problemas de saúde, a maioria decorrente de estresse. No levantamento realizado entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, 72% dos caixas e 63% dos gerentes declararam sofrer pressões abusivas para superar as metas e 42% afirmaram ter sobrecarga de trabalho.

Venda responsável

O problema das metas não se restringe a uma limitação física. Há também um peso moral. A pressão excessiva para superar metas abusivas foi muito citada na pesquisa como desrespeitosa com as convicções pessoais dos bancários. Esse cenário degradante está unindo representantes dos empregados e dos clientes de instituições financeiras num movimento por esclarecimento e conscientização. A campanha Direitos dos Consumidores e dos Trabalhadores Bancários: pela Venda Responsável de Produtos e Serviços Financeiros está sendo preparada pelo Sindicato dos Bancários e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Um seminário agora em março dá início às discussões sobre o tema. As duas entidades produziram uma publicação que esclarece os consumidores sobre alguns dos serviços bancários com maior incidência de reclamações e que são objeto de metas – como títulos de capitalização, previdência privada, seguro de vida e de automóveis –, além de informações sobre tarifas. “A ideia é reunir dois lados que são atingidos pelo mesmo problema”, explica Lisa Gunn, coordenadora executiva do Idec. “A política imposta de metas compromete a capacidade dos trabalhadores de fazer uma orientação isenta.”

Durante a campanha, os bancos serão convidados a aderir à Declaração sobre a Venda Responsável de Produtos Financeiros, documento elaborado pela United Networks International (UNI), rede global de sindicatos do setor de serviços com 900 entidades filiadas em 150 países. A declaração defende o fim das metas abusivas e o compromisso de uma “cultura interna de negócios e procedimentos operacionais”, pelo estabelecimento de uma relação ética com a clientela. Entre os pontos, estão a garantia de que os sistemas de incentivo para os empregados sejam realistas, justos e transparentes, baseados em objetivos sustentáveis. 

Os trabalhadores querem garantia, também, de que os produtos financeiros sejam adequados para as necessidades dos consumidores. A UNI Finanças, braço da UNI Sindicato Global, representa cerca de 3 milhões de trabalhadores de bancos e empresas de seguros em todo o mundo. 

No ano passado, a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) já havia sido convidada pelos sindicatos bancários a assinar o compromisso durante a campanha salarial, mas se recusou. Agora, será novamente pressionada a assumir responsabilidade sobre o que é vendido. 

Infográficos produtos bancários

Pressão internacional

O “se colar colou” não é exclusividade dos bancos brasileiros. A Consumers International, federação que reúne organizações de defesa do consumidor em nível mundial, desenvolve uma campanha há três anos no grupo de países que ­formam o G-20, pela regulação dos serviços fi­nanceiros. 

“Existe um movimento tanto de trabalhadores como de consumidores para a venda responsável de produtos e serviços financeiros”, afirma Lisa Gunn, do Idec. “É papel de um Estado forte regular, fiscalizar e proteger o consumidor, a fim de ga­rantir o equilíbrio do sistema. Isso passa pela venda de produtos financeiros de forma responsável.”

O Idec, em conjunto com outras organizações de trabalhadores e consumidores, criou também o Guia de Bancos Responsáveis (www.guiadosbancosresponsaveis.org.br). A ferramenta foi elaborada com base em pesquisa sobre práticas de responsabilidade social adotadas pelas instituições financeiras. O site oferece a possibilidade de avaliação e comparação de desempenho dos bancos a partir de diversos quesitos, nas áreas de direitos do consumidor, respeito ao trabalhador, práticas sustentáveis. Além de conhecer melhor o comportamento de cada empresa, quem acessa pode também reclamar enviando um cartão amarelo ao banco que desejar.  

O cliente ou usuário que se sente lesado deve, primeiro, procurar o próprio banco para tentar resolver a questão. Se não houver resolução, deve se dirigir a um órgão de defesa do consumidor e, ainda, registrar a reclamação no Banco Central. “Determinados tipos de prática, em grande volume, podem comprometer o equilíbrio do sistema porque criam situações de endividamento”, alerta a coordenadora do Idec. 

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Entrevista – Márcio Monzane, da UNI Finanças

“Necessidade do cliente, e não o lucro do banco,
deve ser a base dos programas de metas”

Monzane, da UNI Finanças (Foto: Caetano Ribas)O sindicalista brasileiro Márcio Monzane (foto), ex-diretor do Sindicato do Bancários de São Paulo, Osasco e Região, é chefe do escritório mundial da UNI Finanças, na cidade suíça de Nyon. A entidade integra a United Networks International (UNI), rede global de sindicatos do setor de serviços com 900 entidades filiadas em 150 países. Segundo Monzane, a venda responsável de produtos financeiros se tornou uma causa internacional do segmento, uma vez que está associada a dois valores muito caros ao movimento sindical bancário: a responsabilidade social dos bancos e o direito humano a condições adequadas de trabalho. Em visita ao Brasil no final de fevereiro, Monzane comentou o andamento dessa campanha global.

Em que medida as relações entre bancos e clientes refletem nas demandas sindicais dos bancários?

Nós temos uma campanha mundial por vendas responsáveis e assessoramento financeiro, que tem como princípio o estímulo à negociação coletiva – ou seja, as relações com os clientes também têm de ser objeto de negociações entre as instituições financeiras e seus trabalhadores. A campanha defende também a atuação das entidades sindicais e órgãos de defesa do consumidor junto a entes reguladores dos governos, como os bancos centrais e organismos de defesa econômica. A campanha prioriza a busca pelo diálogo entre todos esses atores.

E o diálogo está acontecendo?

Temos uma carta de princípios que define como deve ser isso que chamamos de venda responsável. A lógica não pode ser orientada pela busca do lucro, mas a necessidade dos clientes. Tanto individualmente quanto em nível local – por exemplo, que tipos de produtos bancários são mais necessários a um determinado entorno social. E isso levando em conta que é perfeitamente possível os negócios bancários serem lucrativos, rentáveis, atendendo às necessidades das pessoas e das comunidades. Então, um programa de metas de um banco, em vez de ser orientado a alcançar o objetivo imediato do lucro, deve ser estabelecido com base num assessoramento financeiro voltado para o atendimento dessas necessidades do público.

Por exemplo?

Por exemplo, um banco que convive com uma carteira de crédito afetada por 5% de inadimplência não vai ter prejuízo de direcionar suas ações para o crédito mais consciente. Uma taxa de inadimplência reduzida a 2% não atrapalha sua rentabilidade. O cliente que deve menos, ou poupa mais, o que estimula os investimentos, ou consome mais, o que estimula a economia local. Mas para isso é necessário um bom assessoramento, as pessoas que vão lidar com isso precisam ser bancários, precisam ser profissionais seguros e qualificados, têm que ter uma relação transparente e não via call center, tem de haver um tempo adequado para um bom atendimento.

Já há algum resultado alcançado por essa campanha em algum país?

Na Comunidade Europeia, agora, está em discussão uma regulamentação do sistema financeiro. Em um dos níveis de discussão estão os critérios para elaboração de um produto financeiro. Conseguimos introduzir num texto a ser apresentado à Comissão Europeia alguns desses princípios relacionados a projeções de metas, assessoramento, treinamento, qualificação, oferecendo parâmetros mais civilizados para formulação de uma eventual nova lei que venha a surgir desse processo. Na Austrália, por exemplo, surgiu um acordo avalizado pelo Ministério da Economia pautado por essa proposta. O fenômeno já estimula debate semelhante na vizinha Nova Zelândia. Na Europa, um acordo entre sindicatos e o Santander na Europa também introduz na relação o tema da assessoria financeira, da qualidade dos produtos e do atendimento ao clientes. Então, já começam a surgir avanços, ainda que pontuais.

Onde mais os sindicatos têm conseguido convencer bancos com essa demanda.

Em Cingapura e nas Filipinas, os sindicatos fizeram pesquisas que comprovam que clientes adquirem produtos que desconhecem, e a discussão da assessoria e do treinamento adequados foi criada. Na Dinamarca a discussão foi criada a partir do conflito ético detectado pela apresentação inadequada de produtos a clientes, e isso tem um peso muito importante nos países nórdicos. E a partir do momento em que os sindicatos comprovaram o conflito ético algumas empresas se abriram para negociar para solucioná-los. Isso aconteceu num banco muito grande na Suécia, o Nordea.

Colaborou: Paulo Donizetti de Souza